domingo, 25 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 71

Saint-Exupéry aterrissa, finalmente

Seu desaparecimento gerou um fascínio agora revivido com a descoberta de destroços de seu avião. Stacy Schiff — The New York Times — abril de 2004

Durante quase 60 anos, a lenda de Antoine de Saint-Exupéry, o aviador e autor de O Pequeno Príncipe, eclipsou a vida. Coisas mais substanciais e valiosas desapareceram - Atlântida, Santo Graal, 18 minutos e meio de uma fita da Casa Branca -, mas poucas geraram o fascínio eternamente associado ao escritor que, tomando emprestado um truque de sua criação mais conhecida, simplesmente desvaneceu-se no ar. 

Às 8h45 de 31 de julho de 1944, Saint-Exupéry decolou da Córsega numa missão de reconhecimento sobre a França ocupada. Devia estar de volta à 0h30. Às 3h30, foi oficialmente dado como desaparecido. Em abril de 1945, uma missa foi celebrada em sua homenagem. 

Mas ele nunca morreu exatamente. Ao ler sobre seu desaparecimento, Anne Morrow Lindbergh pôs o dedo na ferida que isso causou. Há uma terrível diferença, escreveu ela, entre "desaparecido e morto". Há também uma receita não tão secreta do que se transforma numa lenda. 

Os destroços de um avião retirado do Mediterrâneo foram identificados em abril de 2004 como da aeronave de Saint-Exupéry. Já se sabia da probabilidade de que o Lockheed P-38 estivesse a poucos quilômetros da costa de Marselha, de onde, em 1988, um pescador retirou de sua rede o bracelete de prata que identificava o piloto. Esta descoberta soluciona um mistério sobre o fim de Saint-Exupéry: ele estava onde se supunha que estivesse. As instruções que tinha naquele dia o teriam levado a voar sobre Lyon e foi na volta à Córsega que seu P-38 mergulhou no oceano. 

É improvável que o motivo da queda seja resolvido pelos destroços; mas não se pode dizer que o acidente tenha sido inesperado. Saint-Exupéry era o recordista de quase desastres da sua esquadrilha. Tendo se empenhado numa campanha para conseguir sua volta à ativa, pilotava um avião dentro do qual não cabia e no qual não podia voar confortavelmente. Não conseguia se comunicar com a torre de controle em inglês. A operação dos freios hidráulicos eram também um desafio para ele. Costumava confundir pés com metros. 

Os pilotos franceses na Córsega o conheciam como um escritor premiado e pioneiro da aviação. Já para os americanos era apenas um grandalhão desastrado, velho demais e mal treinado, que em apenas oito semanas com eles destroçou uma aeronave de US$ 80 mil. Por causa desse revés, foi impedido de voar sem cerimônia. Ele implorou por clemência; afirmou que estava disposto a morrer pelo seu país. "Não ligo a mínima se você vai morrer ou não pela França", informou-lhe o coronel Leo Gray, "mas não vai fazer isso num de nossos aviões". Era um caso de um tesouro nacional contra outro. 

Também foi um caso no qual Saint-Exupéry conseguiu o que queria. Já passara havia muito da época em que se sentia confortável; não conseguia se imaginar em nenhum outro lugar que não fosse na cabine de uma aeronave. A vida inteira tinha sonhado em escapar, ansiado por horizontes mais amplos, ameaçado trocar de planeta. Sentindo-se cada vez mais afastado de seus conterrâneos, cuja luta interna criticara; ferozmente antinazista, não apoiou nem De Gaulle nem os comunistas. Previu que a libertação não tiraria a França de seu infortúnio. 

Das suas frustrações pessoais e da sua incapacidade para se fazer entender em suas posições políticas surgiu O Pequeno Príncipe. Publicado em 1943, só mais tarde virou best-seller. Seu texto é interpretado sinistramente como uma morte anunciada, sua mística intensificada pela comparação entre o escritor e o assunto: arrogantes inofensivos cujas vidas consistem em partes iguais de voo e amor fracassado, que caem na Terra, ficam pouco impressionados com o que veem e acabam desaparecendo sem deixar rastros. 

Naturalmente que é fácil prever sua própria morte se você está disposto a cometer suicídio e, para aqueles inclinados a tais interpretações, há a mística questão dos pores-do-sol. O pequeno príncipe vive num planeta tão pequeno que consegue ver o sol se pôr precisamente 44 vezes ao dia - por coincidência, a idade de Saint-Exupéry quando morreu. (Por uma razão inexplicável, o príncipe assiste a 44 pores-do-sol somente na tradução inglesa. No original, são 43). O fato de Saint-Exupéry não ter desejo de continuar vivendo era evidente, porém não estava claro que pretendia se matar. 

Mas, com a descoberta da sua aeronave, essa teoria tem sido novamente trazida à tona na mídia da França. Foi para protegê-lo da indignidade de tal acusação - ou para sustentar um mito valioso - que sua família por muito tempo se opôs a todas as buscas. O destino de Saint-Exupéry permanece constante. Parece que o mito sempre será cultivado às custas do homem. 

O que muda é O Pequeno Príncipe, finalmente devolvido ao que foi na vida de seu autor: uma obra de ficção. Por muito tempo, carregou um ônus pesado, mais do que qualquer livro deve ter. Ninguém nunca esperou que P.L. Travers fosse transportado pelo vento oeste. O conto de fadas de Saint-Exupéry está novamente livre para se entrelaçar não com o enigma do autor, mas com os mistérios que tanto o aturdiram: é solitário no meio dos homens; a linguagem continua sendo uma fonte de mal-entendidos; mais do que nunca corremos afoitamente, sem saber bem o que estamos procurando. Pode ser mais difícil agora perder uma aeronave no Mediterrâneo do que era, mas alguns mistérios perduram. 

Como acontece com algumas verdades sobre o fim de Saint-Exupéry. A dele foi uma morte nobre. Como observou sua viúva, a saída foi sob encomenda, uma queda meteórica no fim de uma vida perseguindo estrelas. 

Também seu desaparecimento mostra todos os sinais de ter sido o fim que Saint-Exupéry queria. Na década de 1930, foi-lhe perguntado, dada sua já impressionante lista de escapadas por um triz, que tipo de morte preferiria. 

Escolheu a água. "Você não sente que está morrendo. Simplesmente sente que está caindo no sono e começando a sonhar." E lá, certamente, podemos deixá-lo.
  
Notícia do New York Times publicada no O Estado de S. Paulo em 20 de abril de 2004


A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 70


 Por volta do final de 1943, Saint-Exupéry escreveu uma súplica ardente a Consuelo, que ficara em Nova York, pedindo-lhe que se aprontasse para esperá-lo “toda florida” quando ele voltasse da guer­ra. Tinha acabado de receber uma carta dela, que mostrara a André Gide. Este a achara “extraordinariamente comovente”. Ninguém sabe o seu teor, porém a resposta de Antoine não deixa dúvida de que ela queria esquecer suas antigas diferenças. Após ter recebido a men­sagem, ele confiou a Gide estar decidido a romper a ligação com a outra mulher que causara tanto desgosto a Consuelo durante sua vida em Paris.

Nessa carta de doze páginas com letra miúda, na qual chama a mulher de “pintinho”, Antoine falava sobre a necessidade de tê-la como sua musa. Consuelo estivera a seu lado quando ele escreveu seus dois melhores livros de ficção, Voo Noturno e O Pequeno Príncipe, e ele explicava claramente a influência de sua presença inspiradora por meio de uma parábola. “Querida, quero lhe contar um sonho antigo que tive na época de nossa separação. Estava num prado. E a terra estava morta. E as árvores estavam mortas. Nada tinha cheiro nem gosto. E bruscamente, embora aparentemente nada tivesse mu­dado, tudo mudou. A terra ressuscitou, as árvores ressuscitaram. Tudo ficou com tal cheiro e gosto que era forte demais, quase forte demais para mim. E eu sabia por quê. E eu dizia: ‘Consuelo ressus­citou, Consuelo está aqui’. Você era o sal da terra, você despertara meu amor por todas as coisas, ao retornar. Consuelo, compreendi então que a amava por toda a eternidade.”

A rapidez com que a vida privada de Saint-Exupéry retomava encanto e cor unicamente com a mágica de suas lembranças também aparece em seus escritos. Fatos cotidianos ou até mesmo trágicos transformavam-se em acontecimentos repletos de alegria e fantasia. Apesar das tensões das últimas semanas passadas juntos nos Estados Unidos, Consuelo tornara a ser objeto de sua gratidão e adoração. Antoine só tinha que assumir sua própria contrição. “Consuelo, agra­deço a você do fundo do meu coração por ter se esforçado tanto para ser minha companheira. Hoje que estou em guerra e completamente perdido neste imenso planeta, tenho apenas um consolo e uma estrela, que ilumina a casa. Pintinho, conserve-a pura.”

Antoine continuou a sofrer com a separação prolongada du­rante as semanas seguintes. Expressou seu amor pela esposa em um fluxo de correspondência que às vezes ultrapassava uma carta por dia. Consuelo conservou preciosamente todas essas mensagens, e só deixou vazar detalhes insignificantes do seu conteúdo. Negou-se a vendê-las para pagar despesas de hospital ou, em 1964, quando teve de enfrentar um grave problema de impostos (algumas cartas de Saint-Exupéry à esposa foram vendidas após a morte de Consuelo, contra a vontade da família de Antoine).

Nenhum correspondente, mesmo que fosse tão prolixo quanto o próprio Saint-Exupéry, teria conseguido tranquilizar com suas res­postas um homem tão angustiado e dotado de uma imaginação tão atormentada. Ele passava dolorosas eternidades à espera das respos­tas de Consuelo, persuadido de que ela o abandonara, e seus temores provocavam crises de tristeza mescladas com fluxos de recriminações. Como a ausência de Saint-Exupéry prolongava-se, Consuelo habitual­mente respondia com breves mensagens em cartões postais. Pouco antes da morte de Antoine, ela pedia desculpas por sua breve cor­respondência, argumentando que não podia escrever mais longamen­te por causa de um dedo quebrado.

No grupo 2/33, todos puderam perceber a angústia de Saint- Exupéry no período anterior a sua morte, e seus colegas da aero­náutica estavam perfeitamente conscientes dos efeitos desastrosos da separação e da dúvida. Horas massacrantes passadas sozinho, aper­tado num cockpit, dependendo de uma quantidade insuficiente de oxigênio, só podiam acentuar as torturas psicológicas de um homem que falava do futuro em termos sombrios.

Era velho demais para voar no Lightning: a idade-limite dos pilotos desse avião era 30 anos, e o cansaço que sentia após missões em elevada altitude pelos céus da França contribuíram para inquietar seus superiores quanto a sua vontade de lutar para sobreviver. O fotógrafo americano John Phillips, que tirou as últimas fotos de Saint- Exupéry em seu avião, advertiu-o dizendo que as modernas máquinas de guerra podiam ser comparadas com mulheres jovens, e que “ne­nhuma das duas coisas são convenientes para homens que estão en­velhecendo”.

A princípio, Saint-Exupéry apenas recebera autorização para cin­co saídas de reconhecimento e, em condições normais, ele teria tido que parar de voar bem antes de seu último voo. Porém, era impos­sível impor o regulamento a um homem que passava por cima das ordens que freavam sua busca constante de honra, determinação que já havia lhe valido três Cruzes de Guerra.

Seu comandante, René Cavile, revelou ao escritor Jules Roy, pouco depois da morte de Saint-Exupéry, que algumas vezes Antoine lhe fizera confidências. Roy, que escreveu uma longa homena­gem póstuma ao aviador, gravou uma entrevista não publicada, con­servada nos arquivos da biblioteca de Marseille, na qual Gavoille fala do estado depressivo de Saint-Exupéry nos dias anteriores a seu último voo, e de seus temores de que Consuelo não o amasse mais.

Com frequência as relações com Gavoille eram tensas devido ao temperamento de Saint-Exupéry, amigo encantador porém subordi­nado pouco disciplinado, como demonstra o acidente durante uma missão na qual ele se perdeu na região de Nancy, em 29 de junho, dia do seu 44º  aniversário. Gavoille lembra-se que ele insistiu em realizar esse reconhecimento, embora não estivesse previsto no pla­nejamento das saídas, pois seria no céu da Saboia, que ele conhecia desde a infância. Perto de Annecy, o motor esquerdo sofreu uma pane e o piloto decidiu virar rumo aos Alpes para se refugiar dos caças alemães. Num inexplicável erro de aviação, ele voou tão longe para o leste que chegou à Itália, acima do vale do Pó, e teve que sobrevoar as cidades de Turim e de Gênova, fortemente defendidas pela DCA. Foi interceptado por dois caças inimigos e, convencido de que ia morrer, relatou a Gavoille que “encolheu-se todo”. Só escapou graças à sorte, mas sentiu-se tão envergonhado com esse incidente que tentou mantê-lo em segredo antes de admitir o erro, quando lhe foram apresentadas as fotografias de reconhecimento. “Quando lhe pedi explicações”, contou Gavoille em sua entrevista com Jules Roy, “ele enrubesceu até as orelhas e negou-se a falar com qualquer pessoa durante três dias. Pensei proibi-lo de voar por incompetência.”

A amizade entre comandante e subordinado não foi afetada por esse enfrentamento, já que Gavoille pediu a Saint-Exupéry que fosse padrinho de seu filho, batizado em Túnis uma semana depois. Du­rante os últimos dias da vida de Saint-Exupéry, Gavoille foi seu in­terlocutor privilegiado em longas conversas nas quais Antoine lem­brava seus sentimentos pela esposa. Assim como em seus bilhetes redigidos apressadamente, Saint-Exupéry usava fórmulas para falar de Consuelo que podiam passar, sem transição, do insulto ao elogio mais exagerado.

 No final do mês de julho era evidente que ele não suportaria por muito tempo essa pressão sentimental, física e intelectual. Esca­para por pouco da morte em diversos voos de reconhecimento e, no dia anterior ao seu desaparecimento, a Luftwaffe abatera um pi­loto americano de Lightning a pouca distância do aeródromo corso, no momento em que ele estava chegando à base.

Desde sua partida de Nova York, o equilíbrio de suas relações com Consuelo modificara-se. Antoine deixara de ser o pequeno prín­cipe encantador tentando distrair sua caprichosa flor. Ele agora era uma criança perdida na imensidão, procurando apaixonadamente uma fonte de amor que o impedisse de ultrapassar a frágil fronteira que o separava do desespero. Precisava de um anjo da guarda, cuja generosidade o ajudasse a recriar a sensação de segurança e recon­forto dos braços da mãe. Alguns meses antes de morrer, praticamen­te suplicou que Consuelo desempenhasse o papel maternal assumido por Marie de Saint-Exupéry no castelo de Saint-Maurice-de-Rémens, quarenta anos antes. “Consuelo querida, seja minha proteção”, es­crevia no cantinho de uma mesa, na ruidosa animação de uma base aérea do deserto da Tunísia. “Faça para mim um manto com seu amor. Seu marido, Antoine.”

Ninguém saberá jamais se Consuelo ocupava seus pensamentos no momento da morte. O rádio do Lightning calou-se bem antes de o avião mergulhar no mar.


sábado, 10 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 27


            O primeiro romance de Saint-Exupéry, Correio Sul, publicado em 1929, e sua coletânea de ensaios, Terra dos Homens, impresso dez anos depois, contêm descrições de acontecimentos semelhantes, porém poderiam ter sido escritos por dois autores diferentes. O primeiro livro evidencia esforço e falta de confiança em si mesmo, enquanto o segundo está repleto de naturalidade e segurança.

            Saint-Exupéry escreveu muito menos que a maioria de seus contemporâneos, especialmente Joseph Kessel, piloto rival, que publicou dez vezes mais romances e recebeu o prêmio da Academia Francesa por Les Rois Aveugles, dois anos antes da publicação de Correio Sul. A obra de Saint-Exupéry foi limitada pela sua busca da perfeição e pela obstinada perseguição de sua concepção de literatura bela. Ele não exagerava ao afirmar que reescrevia cerca de trinta vezes seus manuscritos até ficar satisfeito. Podava e cortava para mostrar apenas o essencial de suas experiências, e freqüentemente o resultado literário era surpreendente.

            Correio Sul é apenas um romance comum; Terra dos Homens é uma obra-prima. O primeiro livro tem cerca de 150 páginas, porém sua construção é desigual, devido a um desequilíbrio entre as cenas de vôo e a aventura sentimental de Jacques Bernis e Geneviève. A situação melodramática é menos elaborada que a intriga, também melodramática, de L’Équipage, de Joseph Kessel, que Saint-Exupéry lera por ocasião de sua publicação, em 1923.

            Terra dos Homens, que recebeu o prêmio da Academia Francesa em 1939 e causou sensação nos Estados Unidos, está escrito com uma simplicidade enganosa, que coloca a obra num nível literário específico, situado entre o relato magistral de viagem e a reflexão romântica sobre a nobreza da humanidade. Enquanto Correio Sul é classificado na categoria de romances inspirados na experiência pessoal, Terra dos Homens gravita numa órbita original e inclassificável.

            Assim como as recordações de infância de Saint-Exupéry, os acontecimentos evocados em Terra dos Homens adquiriram um frescor que aumenta à medida que seu efeito é destilado pela nostalgia. Os dez anos transcorridos entre Correio Sul e Terra dos Homens constituíram um período de provações pessoais extremas para Saint-Exu- péry, mas, desembaraçadas de suas impurezas, só as lições mais comoventes e radiosas ressurgirão em sua pureza essencial.

            O exemplo mais notável está nas primeiras páginas de Terra dos Homens em que ele retoma um trecho de Correio Sul e refere-se a Henri Guillaumet. Este serviu de modelo para Saint-Exupéry no primeiro livro, para o caráter do narrador anônimo que inicia seu amigo, Bernis, nos perigos da travessia aérea da Espanha. O narrador descreve uma paisagem íntima de campos de flores e praias mediterrâneas nas quais um piloto em dificuldades tem de evitar os barcos de pesca na escuridão do crepúsculo.

            Em Terra dos Homens, a mesma cena evocada brevemente torna-se uma recordação de sua relação fraterna com Guillaumet e dos raros momentos que mudaram a percepção de Saint-Exupéry quanto ao transporte de correio para a África do Norte: “Ele fez da Espanha minha amiga”, escreveu. Guillaumet fala dos campos minúsculos, de um laranjal, de uma manada de carneiros e de um riacho que podem ser amigos ou inimigos do aviador, que, segundo os termos de Saint-Exupéry, podia esperar uma falha no motor a qualquer instante. Guillaumet “espalha confiança como uma lâmpada difunde luz” e, ao lado desse “veterano”, Saint-Exupéry sente uma calma de escolar.

            As imagens apresentam a versão de um Guillaumet muito mais velho e humano que Didier Daurat, e permitem imaginar seu passado heróico durante a Primeira Guerra Mundial. Essa impressão teria permanecido se Guillaumet não tivesse se tornado um dos pilotos mais audazes e célebres do período entre as duas guerras. Quando Terra dos Homens foi publicado em 1939, ele era um herói nacional e seu jovem rosto delicado e inocente era familiar aos milhões de leitores de jornais populares. Como Saint-Exupéry, que lhe dedicou o livro, Guillaumet sobrevivera a perigos inimagináveis, e encarnava os valores viris que a intuição de Saint-Exupéry detectara desde seu primeiro encontro.

            No entanto, em 1926, Guillaumet ainda estava longe da lenda. O jovem piloto, de fisionomia agradável e caráter descontraído, provinha de um povoado chamado Bouy, em Champagne, onde seu pai era produtor de leite. Sentiu-se fascinado pelos aviões desde 1908, quando viu Henri Farman decolar de um campo de aviação perto de sua casa para ir a Reims. Oito anos depois, com 14 anos, Guillaumet recebia seu batismo do ar num avião militar. Em 1920 entrou na escola de aviação Roland Nungesser, em Orly, antes de ingressar na aeronáutica.

            Cinco anos depois, após ter vencido uma corrida de 3.000 quilômetros, passou a trabalhar para Latécoère com o apoio de Jean Mermoz, que conhecera durante a carreira militar. Guillaumet já era piloto regular na linha do Senegal quando Saint-Exupéry chegou a Toulouse, e esses poucos meses de experiência que lhe deram um prestígio de veterano iluminam as primeiras páginas de Terra dos Homens. Segundo Didier Daurat, testemunha das primeiras aulas de vôo descritas em Terra dos Homens, “uma rara amizade acabara de nascer”.

            A admiração de Saint-Exupéry por Guillaumet, tanto como homem quanto como piloto, durante os anos que passaram juntos na África do Norte e na América do Sul, é um dos elementos mais notáveis de Terra dos Homens. Em nenhum outro lugar ele reconhecerá com tanta generosidade a nobre grandeza do gênero humano. Guillaumet não é apenas um amigo. Ele personifica todas as qualidades às quais Saint-Exupéry aspira, e no entanto tem-se a impressão fugidia de que essa admiração não é totalmente retribuída por aquele que ele escolheu para substituir seu jovem irmão. Guillaumet possuía dois trunfos que o separavam inevitavelmente desse jovem homem introspectivo e freqüentemente solitário que era Saint-Exupéry. Possuía total confiança em si mesmo e era feliz com sua esposa. Não possuía qualquer pretensão intelectual e tinha pouco tempo para a análise pessoal. Quando regressa à sua aldeia no meio dos vinhedos e das granjas produtoras de leite do Marne, Guillaumet sente-se bem. Consciente dessas lacunas e às voltas com um casamento infeliz, Saint-Exupéry retorna a Saint-Maurice e sente-se um estranho.

            Saint-Exupéry parece estar sempre um passo atrás de Guillaumet, cujas aventuras e tentativas de bater recordes eram mais espetaculares e bem-sucedidas. Essa impressão de estar a reboque do destino transformou-se numa ironia dramática e cruel quando Guillaumet foi abatido num vôo sobre o Mediterrâneo, em 1940, quatro anos antes que o Lightning de Saint-Exupéry se espatifasse nas mesmas águas.