Saint-Exupéry aterrissa,
finalmente
Seu desaparecimento gerou um fascínio agora
revivido com a descoberta de destroços de seu avião. Stacy Schiff — The New York Times — abril de 2004
Durante quase 60 anos, a lenda de Antoine de
Saint-Exupéry, o aviador e autor de O Pequeno Príncipe, eclipsou a vida. Coisas
mais substanciais e valiosas desapareceram - Atlântida, Santo Graal, 18 minutos
e meio de uma fita da Casa Branca -, mas poucas geraram o fascínio eternamente
associado ao escritor que, tomando emprestado um truque de sua criação mais
conhecida, simplesmente desvaneceu-se no ar.
Às 8h45 de 31 de julho de 1944, Saint-Exupéry
decolou da Córsega numa missão de reconhecimento sobre a França ocupada. Devia
estar de volta à 0h30. Às 3h30, foi oficialmente dado como desaparecido. Em
abril de 1945, uma missa foi celebrada em sua homenagem.
Mas ele nunca morreu exatamente. Ao ler sobre seu
desaparecimento, Anne Morrow Lindbergh pôs o dedo na ferida que isso causou. Há
uma terrível diferença, escreveu ela, entre "desaparecido e morto".
Há também uma receita não tão secreta do que se transforma numa lenda.
Os destroços de um avião retirado do Mediterrâneo
foram identificados em abril de 2004 como da aeronave de Saint-Exupéry. Já se
sabia da probabilidade de que o Lockheed P-38 estivesse a poucos quilômetros da
costa de Marselha, de onde, em 1988, um pescador retirou de sua rede o
bracelete de prata que identificava o piloto. Esta descoberta soluciona um
mistério sobre o fim de Saint-Exupéry: ele estava onde se supunha que
estivesse. As instruções que tinha naquele dia o teriam levado a voar sobre
Lyon e foi na volta à Córsega que seu P-38 mergulhou no oceano.
É improvável que o motivo da queda seja resolvido
pelos destroços; mas não se pode dizer que o acidente tenha sido inesperado.
Saint-Exupéry era o recordista de quase desastres da sua esquadrilha. Tendo se
empenhado numa campanha para conseguir sua volta à ativa, pilotava um avião
dentro do qual não cabia e no qual não podia voar confortavelmente. Não
conseguia se comunicar com a torre de controle em inglês. A operação dos freios
hidráulicos eram também um desafio para ele. Costumava confundir pés com
metros.
Os pilotos franceses na Córsega o conheciam como um
escritor premiado e pioneiro da aviação. Já para os americanos era apenas um
grandalhão desastrado, velho demais e mal treinado, que em apenas oito semanas
com eles destroçou uma aeronave de US$ 80 mil. Por causa desse revés, foi
impedido de voar sem cerimônia. Ele implorou por clemência; afirmou que estava
disposto a morrer pelo seu país. "Não ligo a mínima se você vai morrer ou
não pela França", informou-lhe o coronel Leo Gray, "mas não vai fazer
isso num de nossos aviões". Era um caso de um tesouro nacional contra
outro.
Também foi um caso no qual Saint-Exupéry conseguiu
o que queria. Já passara havia muito da época em que se sentia confortável; não
conseguia se imaginar em nenhum outro lugar que não fosse na cabine de uma
aeronave. A vida inteira tinha sonhado em escapar, ansiado por horizontes mais
amplos, ameaçado trocar de planeta. Sentindo-se cada vez mais afastado de seus
conterrâneos, cuja luta interna criticara; ferozmente antinazista, não apoiou
nem De Gaulle nem os comunistas. Previu que a libertação não tiraria a França
de seu infortúnio.
Das suas frustrações pessoais e da sua incapacidade
para se fazer entender em suas posições políticas surgiu O Pequeno Príncipe.
Publicado em 1943, só mais tarde virou best-seller. Seu texto é interpretado sinistramente
como uma morte anunciada, sua mística intensificada pela comparação entre o
escritor e o assunto: arrogantes inofensivos cujas vidas consistem em partes
iguais de voo e amor fracassado, que caem na Terra, ficam pouco impressionados
com o que veem e acabam desaparecendo sem deixar rastros.
Naturalmente que é fácil prever sua própria morte
se você está disposto a cometer suicídio e, para aqueles inclinados a tais
interpretações, há a mística questão dos pores-do-sol. O pequeno príncipe vive
num planeta tão pequeno que consegue ver o sol se pôr precisamente 44 vezes ao
dia - por coincidência, a idade de Saint-Exupéry quando morreu. (Por uma razão
inexplicável, o príncipe assiste a 44 pores-do-sol somente na tradução inglesa.
No original, são 43). O fato de Saint-Exupéry não ter desejo de continuar
vivendo era evidente, porém não estava claro que pretendia se matar.
Mas, com a descoberta da sua aeronave, essa teoria
tem sido novamente trazida à tona na mídia da França. Foi para protegê-lo da
indignidade de tal acusação - ou para sustentar um mito valioso - que sua
família por muito tempo se opôs a todas as buscas. O destino de Saint-Exupéry
permanece constante. Parece que o mito sempre será cultivado às custas do
homem.
O que muda é O Pequeno Príncipe, finalmente
devolvido ao que foi na vida de seu autor: uma obra de ficção. Por muito tempo,
carregou um ônus pesado, mais do que qualquer livro deve ter. Ninguém nunca
esperou que P.L. Travers fosse transportado pelo vento oeste. O conto de fadas
de Saint-Exupéry está novamente livre para se entrelaçar não com o enigma do
autor, mas com os mistérios que tanto o aturdiram: é solitário no meio dos
homens; a linguagem continua sendo uma fonte de mal-entendidos; mais do que
nunca corremos afoitamente, sem saber bem o que estamos procurando. Pode ser mais
difícil agora perder uma aeronave no Mediterrâneo do que era, mas alguns
mistérios perduram.
Como acontece com algumas verdades sobre o fim de
Saint-Exupéry. A dele foi uma morte nobre. Como observou sua viúva, a saída foi
sob encomenda, uma queda meteórica no fim de uma vida perseguindo
estrelas.
Também seu desaparecimento mostra todos os sinais
de ter sido o fim que Saint-Exupéry queria. Na década de 1930, foi-lhe
perguntado, dada sua já impressionante lista de escapadas por um triz, que tipo
de morte preferiria.
Escolheu
a água. "Você não sente que está morrendo. Simplesmente sente que está
caindo no sono e começando a sonhar." E lá, certamente, podemos deixá-lo.
Notícia do New York Times publicada no O Estado de S. Paulo em 20 de abril de 2004
Notícia do New York Times publicada no O Estado de S. Paulo em 20 de abril de 2004