O primeiro
romance de Saint-Exupéry, Correio Sul,
publicado em 1929, e sua coletânea de ensaios, Terra dos Homens, impresso dez anos depois, contêm descrições de
acontecimentos semelhantes, porém poderiam ter sido escritos por dois autores
diferentes. O primeiro livro evidencia esforço e falta de confiança em si
mesmo, enquanto o segundo está repleto de naturalidade e segurança.
Saint-Exupéry
escreveu muito menos que a maioria de seus contemporâneos, especialmente Joseph
Kessel, piloto rival, que publicou dez vezes mais romances e recebeu o prêmio
da Academia Francesa por Les Rois Aveugles, dois anos antes da publicação de Correio Sul. A obra de Saint-Exupéry foi
limitada pela sua busca da perfeição e pela obstinada perseguição de sua
concepção de literatura bela. Ele não exagerava ao afirmar que reescrevia cerca
de trinta vezes seus manuscritos até ficar satisfeito. Podava e cortava para
mostrar apenas o essencial de suas experiências, e freqüentemente o resultado
literário era surpreendente.
Correio Sul é apenas um romance comum; Terra dos Homens é uma obra-prima. O
primeiro livro tem cerca de 150 páginas, porém sua construção é desigual,
devido a um desequilíbrio entre as cenas de vôo e a aventura sentimental de
Jacques Bernis e Geneviève. A situação melodramática é menos elaborada que a
intriga, também melodramática, de L’Équipage, de Joseph Kessel, que
Saint-Exupéry lera por ocasião de sua publicação, em 1923.
Terra dos Homens, que recebeu o prêmio
da Academia Francesa em 1939 e causou sensação nos Estados Unidos, está escrito
com uma simplicidade enganosa, que coloca a obra num nível literário
específico, situado entre o relato magistral de viagem e a reflexão romântica
sobre a nobreza da humanidade. Enquanto Correio
Sul é classificado na categoria de romances inspirados na experiência pessoal,
Terra dos Homens gravita numa órbita
original e inclassificável.
Assim
como as recordações de infância de Saint-Exupéry, os acontecimentos evocados em
Terra dos Homens adquiriram um frescor
que aumenta à medida que seu efeito é destilado pela nostalgia. Os dez anos
transcorridos entre Correio Sul e Terra dos Homens constituíram um período
de provações pessoais extremas para Saint-Exu- péry, mas, desembaraçadas de
suas impurezas, só as lições mais comoventes e radiosas ressurgirão em sua
pureza essencial.
O
exemplo mais notável está nas primeiras páginas de Terra dos Homens em que ele retoma um trecho de Correio Sul e refere-se a Henri
Guillaumet. Este serviu de modelo para Saint-Exupéry no primeiro livro, para o
caráter do narrador anônimo que inicia seu amigo, Bernis, nos perigos da
travessia aérea da Espanha. O narrador descreve uma paisagem íntima de campos
de flores e praias mediterrâneas nas quais um piloto em dificuldades tem de
evitar os barcos de pesca na escuridão do crepúsculo.
Em Terra dos Homens, a mesma cena evocada
brevemente torna-se uma recordação de sua relação fraterna com Guillaumet e dos
raros momentos que mudaram a percepção de Saint-Exupéry quanto ao transporte de
correio para a África do Norte: “Ele fez da Espanha minha amiga”, escreveu.
Guillaumet fala dos campos minúsculos, de um laranjal, de uma manada de
carneiros e de um riacho que podem ser amigos ou inimigos do aviador, que,
segundo os termos de Saint-Exupéry, podia esperar uma falha no motor a qualquer
instante. Guillaumet “espalha confiança como uma lâmpada difunde luz” e, ao
lado desse “veterano”, Saint-Exupéry sente uma calma de escolar.
As
imagens apresentam a versão de um Guillaumet muito mais velho e humano que
Didier Daurat, e permitem imaginar seu passado heróico durante a Primeira
Guerra Mundial. Essa impressão teria permanecido se Guillaumet não tivesse se
tornado um dos pilotos mais audazes e célebres do período entre as duas
guerras. Quando Terra dos Homens foi
publicado em 1939, ele era um herói nacional e seu jovem rosto delicado e
inocente era familiar aos milhões de leitores de jornais populares. Como
Saint-Exupéry, que lhe dedicou o livro, Guillaumet sobrevivera a perigos
inimagináveis, e encarnava os valores viris que a intuição de Saint-Exupéry detectara
desde seu primeiro encontro.
No
entanto, em 1926, Guillaumet ainda estava longe da lenda. O jovem piloto, de
fisionomia agradável e caráter descontraído, provinha de um povoado chamado
Bouy, em Champagne, onde seu pai era produtor de leite. Sentiu-se fascinado
pelos aviões desde 1908, quando viu Henri Farman decolar de um campo de aviação
perto de sua casa para ir a Reims. Oito anos depois, com 14 anos, Guillaumet
recebia seu batismo do ar num avião militar. Em 1920 entrou na escola de
aviação Roland Nungesser, em Orly, antes de ingressar na aeronáutica.
Cinco
anos depois, após ter vencido uma corrida de 3.000 quilômetros, passou a
trabalhar para Latécoère com o apoio de Jean Mermoz, que conhecera durante a
carreira militar. Guillaumet já era piloto regular na linha do Senegal quando
Saint-Exupéry chegou a Toulouse, e esses poucos meses de experiência que lhe
deram um prestígio de veterano iluminam as primeiras páginas de Terra dos Homens. Segundo Didier Daurat,
testemunha das primeiras aulas de vôo descritas em Terra dos Homens, “uma rara amizade acabara de nascer”.
A
admiração de Saint-Exupéry por Guillaumet, tanto como homem quanto como piloto,
durante os anos que passaram juntos na África do Norte e na América do Sul, é
um dos elementos mais notáveis de Terra
dos Homens. Em nenhum outro lugar ele reconhecerá com tanta generosidade a
nobre grandeza do gênero humano. Guillaumet não é apenas um amigo. Ele
personifica todas as qualidades às quais Saint-Exupéry aspira, e no entanto tem-se
a impressão fugidia de que essa admiração não é totalmente retribuída por aquele
que ele escolheu para substituir seu jovem irmão. Guillaumet possuía dois
trunfos que o separavam inevitavelmente desse jovem homem introspectivo e freqüentemente
solitário que era Saint-Exupéry. Possuía total confiança em si mesmo e era
feliz com sua esposa. Não possuía qualquer pretensão intelectual e tinha pouco
tempo para a análise pessoal. Quando regressa à sua aldeia no meio dos vinhedos
e das granjas produtoras de leite do Marne, Guillaumet sente-se bem. Consciente
dessas lacunas e às voltas com um casamento infeliz, Saint-Exupéry retorna a
Saint-Maurice e sente-se um estranho.
Saint-Exupéry
parece estar sempre um passo atrás de Guillaumet, cujas aventuras e tentativas
de bater recordes eram mais espetaculares e bem-sucedidas. Essa impressão de
estar a reboque do destino transformou-se numa ironia dramática e cruel quando
Guillaumet foi abatido num vôo sobre o Mediterrâneo, em 1940, quatro anos antes
que o Lightning de Saint-Exupéry se espatifasse nas mesmas águas.
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