sábado, 10 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 27


            O primeiro romance de Saint-Exupéry, Correio Sul, publicado em 1929, e sua coletânea de ensaios, Terra dos Homens, impresso dez anos depois, contêm descrições de acontecimentos semelhantes, porém poderiam ter sido escritos por dois autores diferentes. O primeiro livro evidencia esforço e falta de confiança em si mesmo, enquanto o segundo está repleto de naturalidade e segurança.

            Saint-Exupéry escreveu muito menos que a maioria de seus contemporâneos, especialmente Joseph Kessel, piloto rival, que publicou dez vezes mais romances e recebeu o prêmio da Academia Francesa por Les Rois Aveugles, dois anos antes da publicação de Correio Sul. A obra de Saint-Exupéry foi limitada pela sua busca da perfeição e pela obstinada perseguição de sua concepção de literatura bela. Ele não exagerava ao afirmar que reescrevia cerca de trinta vezes seus manuscritos até ficar satisfeito. Podava e cortava para mostrar apenas o essencial de suas experiências, e freqüentemente o resultado literário era surpreendente.

            Correio Sul é apenas um romance comum; Terra dos Homens é uma obra-prima. O primeiro livro tem cerca de 150 páginas, porém sua construção é desigual, devido a um desequilíbrio entre as cenas de vôo e a aventura sentimental de Jacques Bernis e Geneviève. A situação melodramática é menos elaborada que a intriga, também melodramática, de L’Équipage, de Joseph Kessel, que Saint-Exupéry lera por ocasião de sua publicação, em 1923.

            Terra dos Homens, que recebeu o prêmio da Academia Francesa em 1939 e causou sensação nos Estados Unidos, está escrito com uma simplicidade enganosa, que coloca a obra num nível literário específico, situado entre o relato magistral de viagem e a reflexão romântica sobre a nobreza da humanidade. Enquanto Correio Sul é classificado na categoria de romances inspirados na experiência pessoal, Terra dos Homens gravita numa órbita original e inclassificável.

            Assim como as recordações de infância de Saint-Exupéry, os acontecimentos evocados em Terra dos Homens adquiriram um frescor que aumenta à medida que seu efeito é destilado pela nostalgia. Os dez anos transcorridos entre Correio Sul e Terra dos Homens constituíram um período de provações pessoais extremas para Saint-Exu- péry, mas, desembaraçadas de suas impurezas, só as lições mais comoventes e radiosas ressurgirão em sua pureza essencial.

            O exemplo mais notável está nas primeiras páginas de Terra dos Homens em que ele retoma um trecho de Correio Sul e refere-se a Henri Guillaumet. Este serviu de modelo para Saint-Exupéry no primeiro livro, para o caráter do narrador anônimo que inicia seu amigo, Bernis, nos perigos da travessia aérea da Espanha. O narrador descreve uma paisagem íntima de campos de flores e praias mediterrâneas nas quais um piloto em dificuldades tem de evitar os barcos de pesca na escuridão do crepúsculo.

            Em Terra dos Homens, a mesma cena evocada brevemente torna-se uma recordação de sua relação fraterna com Guillaumet e dos raros momentos que mudaram a percepção de Saint-Exupéry quanto ao transporte de correio para a África do Norte: “Ele fez da Espanha minha amiga”, escreveu. Guillaumet fala dos campos minúsculos, de um laranjal, de uma manada de carneiros e de um riacho que podem ser amigos ou inimigos do aviador, que, segundo os termos de Saint-Exupéry, podia esperar uma falha no motor a qualquer instante. Guillaumet “espalha confiança como uma lâmpada difunde luz” e, ao lado desse “veterano”, Saint-Exupéry sente uma calma de escolar.

            As imagens apresentam a versão de um Guillaumet muito mais velho e humano que Didier Daurat, e permitem imaginar seu passado heróico durante a Primeira Guerra Mundial. Essa impressão teria permanecido se Guillaumet não tivesse se tornado um dos pilotos mais audazes e célebres do período entre as duas guerras. Quando Terra dos Homens foi publicado em 1939, ele era um herói nacional e seu jovem rosto delicado e inocente era familiar aos milhões de leitores de jornais populares. Como Saint-Exupéry, que lhe dedicou o livro, Guillaumet sobrevivera a perigos inimagináveis, e encarnava os valores viris que a intuição de Saint-Exupéry detectara desde seu primeiro encontro.

            No entanto, em 1926, Guillaumet ainda estava longe da lenda. O jovem piloto, de fisionomia agradável e caráter descontraído, provinha de um povoado chamado Bouy, em Champagne, onde seu pai era produtor de leite. Sentiu-se fascinado pelos aviões desde 1908, quando viu Henri Farman decolar de um campo de aviação perto de sua casa para ir a Reims. Oito anos depois, com 14 anos, Guillaumet recebia seu batismo do ar num avião militar. Em 1920 entrou na escola de aviação Roland Nungesser, em Orly, antes de ingressar na aeronáutica.

            Cinco anos depois, após ter vencido uma corrida de 3.000 quilômetros, passou a trabalhar para Latécoère com o apoio de Jean Mermoz, que conhecera durante a carreira militar. Guillaumet já era piloto regular na linha do Senegal quando Saint-Exupéry chegou a Toulouse, e esses poucos meses de experiência que lhe deram um prestígio de veterano iluminam as primeiras páginas de Terra dos Homens. Segundo Didier Daurat, testemunha das primeiras aulas de vôo descritas em Terra dos Homens, “uma rara amizade acabara de nascer”.

            A admiração de Saint-Exupéry por Guillaumet, tanto como homem quanto como piloto, durante os anos que passaram juntos na África do Norte e na América do Sul, é um dos elementos mais notáveis de Terra dos Homens. Em nenhum outro lugar ele reconhecerá com tanta generosidade a nobre grandeza do gênero humano. Guillaumet não é apenas um amigo. Ele personifica todas as qualidades às quais Saint-Exupéry aspira, e no entanto tem-se a impressão fugidia de que essa admiração não é totalmente retribuída por aquele que ele escolheu para substituir seu jovem irmão. Guillaumet possuía dois trunfos que o separavam inevitavelmente desse jovem homem introspectivo e freqüentemente solitário que era Saint-Exupéry. Possuía total confiança em si mesmo e era feliz com sua esposa. Não possuía qualquer pretensão intelectual e tinha pouco tempo para a análise pessoal. Quando regressa à sua aldeia no meio dos vinhedos e das granjas produtoras de leite do Marne, Guillaumet sente-se bem. Consciente dessas lacunas e às voltas com um casamento infeliz, Saint-Exupéry retorna a Saint-Maurice e sente-se um estranho.

            Saint-Exupéry parece estar sempre um passo atrás de Guillaumet, cujas aventuras e tentativas de bater recordes eram mais espetaculares e bem-sucedidas. Essa impressão de estar a reboque do destino transformou-se numa ironia dramática e cruel quando Guillaumet foi abatido num vôo sobre o Mediterrâneo, em 1940, quatro anos antes que o Lightning de Saint-Exupéry se espatifasse nas mesmas águas.




            

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