domingo, 25 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 70


 Por volta do final de 1943, Saint-Exupéry escreveu uma súplica ardente a Consuelo, que ficara em Nova York, pedindo-lhe que se aprontasse para esperá-lo “toda florida” quando ele voltasse da guer­ra. Tinha acabado de receber uma carta dela, que mostrara a André Gide. Este a achara “extraordinariamente comovente”. Ninguém sabe o seu teor, porém a resposta de Antoine não deixa dúvida de que ela queria esquecer suas antigas diferenças. Após ter recebido a men­sagem, ele confiou a Gide estar decidido a romper a ligação com a outra mulher que causara tanto desgosto a Consuelo durante sua vida em Paris.

Nessa carta de doze páginas com letra miúda, na qual chama a mulher de “pintinho”, Antoine falava sobre a necessidade de tê-la como sua musa. Consuelo estivera a seu lado quando ele escreveu seus dois melhores livros de ficção, Voo Noturno e O Pequeno Príncipe, e ele explicava claramente a influência de sua presença inspiradora por meio de uma parábola. “Querida, quero lhe contar um sonho antigo que tive na época de nossa separação. Estava num prado. E a terra estava morta. E as árvores estavam mortas. Nada tinha cheiro nem gosto. E bruscamente, embora aparentemente nada tivesse mu­dado, tudo mudou. A terra ressuscitou, as árvores ressuscitaram. Tudo ficou com tal cheiro e gosto que era forte demais, quase forte demais para mim. E eu sabia por quê. E eu dizia: ‘Consuelo ressus­citou, Consuelo está aqui’. Você era o sal da terra, você despertara meu amor por todas as coisas, ao retornar. Consuelo, compreendi então que a amava por toda a eternidade.”

A rapidez com que a vida privada de Saint-Exupéry retomava encanto e cor unicamente com a mágica de suas lembranças também aparece em seus escritos. Fatos cotidianos ou até mesmo trágicos transformavam-se em acontecimentos repletos de alegria e fantasia. Apesar das tensões das últimas semanas passadas juntos nos Estados Unidos, Consuelo tornara a ser objeto de sua gratidão e adoração. Antoine só tinha que assumir sua própria contrição. “Consuelo, agra­deço a você do fundo do meu coração por ter se esforçado tanto para ser minha companheira. Hoje que estou em guerra e completamente perdido neste imenso planeta, tenho apenas um consolo e uma estrela, que ilumina a casa. Pintinho, conserve-a pura.”

Antoine continuou a sofrer com a separação prolongada du­rante as semanas seguintes. Expressou seu amor pela esposa em um fluxo de correspondência que às vezes ultrapassava uma carta por dia. Consuelo conservou preciosamente todas essas mensagens, e só deixou vazar detalhes insignificantes do seu conteúdo. Negou-se a vendê-las para pagar despesas de hospital ou, em 1964, quando teve de enfrentar um grave problema de impostos (algumas cartas de Saint-Exupéry à esposa foram vendidas após a morte de Consuelo, contra a vontade da família de Antoine).

Nenhum correspondente, mesmo que fosse tão prolixo quanto o próprio Saint-Exupéry, teria conseguido tranquilizar com suas res­postas um homem tão angustiado e dotado de uma imaginação tão atormentada. Ele passava dolorosas eternidades à espera das respos­tas de Consuelo, persuadido de que ela o abandonara, e seus temores provocavam crises de tristeza mescladas com fluxos de recriminações. Como a ausência de Saint-Exupéry prolongava-se, Consuelo habitual­mente respondia com breves mensagens em cartões postais. Pouco antes da morte de Antoine, ela pedia desculpas por sua breve cor­respondência, argumentando que não podia escrever mais longamen­te por causa de um dedo quebrado.

No grupo 2/33, todos puderam perceber a angústia de Saint- Exupéry no período anterior a sua morte, e seus colegas da aero­náutica estavam perfeitamente conscientes dos efeitos desastrosos da separação e da dúvida. Horas massacrantes passadas sozinho, aper­tado num cockpit, dependendo de uma quantidade insuficiente de oxigênio, só podiam acentuar as torturas psicológicas de um homem que falava do futuro em termos sombrios.

Era velho demais para voar no Lightning: a idade-limite dos pilotos desse avião era 30 anos, e o cansaço que sentia após missões em elevada altitude pelos céus da França contribuíram para inquietar seus superiores quanto a sua vontade de lutar para sobreviver. O fotógrafo americano John Phillips, que tirou as últimas fotos de Saint- Exupéry em seu avião, advertiu-o dizendo que as modernas máquinas de guerra podiam ser comparadas com mulheres jovens, e que “ne­nhuma das duas coisas são convenientes para homens que estão en­velhecendo”.

A princípio, Saint-Exupéry apenas recebera autorização para cin­co saídas de reconhecimento e, em condições normais, ele teria tido que parar de voar bem antes de seu último voo. Porém, era impos­sível impor o regulamento a um homem que passava por cima das ordens que freavam sua busca constante de honra, determinação que já havia lhe valido três Cruzes de Guerra.

Seu comandante, René Cavile, revelou ao escritor Jules Roy, pouco depois da morte de Saint-Exupéry, que algumas vezes Antoine lhe fizera confidências. Roy, que escreveu uma longa homena­gem póstuma ao aviador, gravou uma entrevista não publicada, con­servada nos arquivos da biblioteca de Marseille, na qual Gavoille fala do estado depressivo de Saint-Exupéry nos dias anteriores a seu último voo, e de seus temores de que Consuelo não o amasse mais.

Com frequência as relações com Gavoille eram tensas devido ao temperamento de Saint-Exupéry, amigo encantador porém subordi­nado pouco disciplinado, como demonstra o acidente durante uma missão na qual ele se perdeu na região de Nancy, em 29 de junho, dia do seu 44º  aniversário. Gavoille lembra-se que ele insistiu em realizar esse reconhecimento, embora não estivesse previsto no pla­nejamento das saídas, pois seria no céu da Saboia, que ele conhecia desde a infância. Perto de Annecy, o motor esquerdo sofreu uma pane e o piloto decidiu virar rumo aos Alpes para se refugiar dos caças alemães. Num inexplicável erro de aviação, ele voou tão longe para o leste que chegou à Itália, acima do vale do Pó, e teve que sobrevoar as cidades de Turim e de Gênova, fortemente defendidas pela DCA. Foi interceptado por dois caças inimigos e, convencido de que ia morrer, relatou a Gavoille que “encolheu-se todo”. Só escapou graças à sorte, mas sentiu-se tão envergonhado com esse incidente que tentou mantê-lo em segredo antes de admitir o erro, quando lhe foram apresentadas as fotografias de reconhecimento. “Quando lhe pedi explicações”, contou Gavoille em sua entrevista com Jules Roy, “ele enrubesceu até as orelhas e negou-se a falar com qualquer pessoa durante três dias. Pensei proibi-lo de voar por incompetência.”

A amizade entre comandante e subordinado não foi afetada por esse enfrentamento, já que Gavoille pediu a Saint-Exupéry que fosse padrinho de seu filho, batizado em Túnis uma semana depois. Du­rante os últimos dias da vida de Saint-Exupéry, Gavoille foi seu in­terlocutor privilegiado em longas conversas nas quais Antoine lem­brava seus sentimentos pela esposa. Assim como em seus bilhetes redigidos apressadamente, Saint-Exupéry usava fórmulas para falar de Consuelo que podiam passar, sem transição, do insulto ao elogio mais exagerado.

 No final do mês de julho era evidente que ele não suportaria por muito tempo essa pressão sentimental, física e intelectual. Esca­para por pouco da morte em diversos voos de reconhecimento e, no dia anterior ao seu desaparecimento, a Luftwaffe abatera um pi­loto americano de Lightning a pouca distância do aeródromo corso, no momento em que ele estava chegando à base.

Desde sua partida de Nova York, o equilíbrio de suas relações com Consuelo modificara-se. Antoine deixara de ser o pequeno prín­cipe encantador tentando distrair sua caprichosa flor. Ele agora era uma criança perdida na imensidão, procurando apaixonadamente uma fonte de amor que o impedisse de ultrapassar a frágil fronteira que o separava do desespero. Precisava de um anjo da guarda, cuja generosidade o ajudasse a recriar a sensação de segurança e recon­forto dos braços da mãe. Alguns meses antes de morrer, praticamen­te suplicou que Consuelo desempenhasse o papel maternal assumido por Marie de Saint-Exupéry no castelo de Saint-Maurice-de-Rémens, quarenta anos antes. “Consuelo querida, seja minha proteção”, es­crevia no cantinho de uma mesa, na ruidosa animação de uma base aérea do deserto da Tunísia. “Faça para mim um manto com seu amor. Seu marido, Antoine.”

Ninguém saberá jamais se Consuelo ocupava seus pensamentos no momento da morte. O rádio do Lightning calou-se bem antes de o avião mergulhar no mar.


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