domingo, 25 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 71

Saint-Exupéry aterrissa, finalmente

Seu desaparecimento gerou um fascínio agora revivido com a descoberta de destroços de seu avião. Stacy Schiff — The New York Times — abril de 2004

Durante quase 60 anos, a lenda de Antoine de Saint-Exupéry, o aviador e autor de O Pequeno Príncipe, eclipsou a vida. Coisas mais substanciais e valiosas desapareceram - Atlântida, Santo Graal, 18 minutos e meio de uma fita da Casa Branca -, mas poucas geraram o fascínio eternamente associado ao escritor que, tomando emprestado um truque de sua criação mais conhecida, simplesmente desvaneceu-se no ar. 

Às 8h45 de 31 de julho de 1944, Saint-Exupéry decolou da Córsega numa missão de reconhecimento sobre a França ocupada. Devia estar de volta à 0h30. Às 3h30, foi oficialmente dado como desaparecido. Em abril de 1945, uma missa foi celebrada em sua homenagem. 

Mas ele nunca morreu exatamente. Ao ler sobre seu desaparecimento, Anne Morrow Lindbergh pôs o dedo na ferida que isso causou. Há uma terrível diferença, escreveu ela, entre "desaparecido e morto". Há também uma receita não tão secreta do que se transforma numa lenda. 

Os destroços de um avião retirado do Mediterrâneo foram identificados em abril de 2004 como da aeronave de Saint-Exupéry. Já se sabia da probabilidade de que o Lockheed P-38 estivesse a poucos quilômetros da costa de Marselha, de onde, em 1988, um pescador retirou de sua rede o bracelete de prata que identificava o piloto. Esta descoberta soluciona um mistério sobre o fim de Saint-Exupéry: ele estava onde se supunha que estivesse. As instruções que tinha naquele dia o teriam levado a voar sobre Lyon e foi na volta à Córsega que seu P-38 mergulhou no oceano. 

É improvável que o motivo da queda seja resolvido pelos destroços; mas não se pode dizer que o acidente tenha sido inesperado. Saint-Exupéry era o recordista de quase desastres da sua esquadrilha. Tendo se empenhado numa campanha para conseguir sua volta à ativa, pilotava um avião dentro do qual não cabia e no qual não podia voar confortavelmente. Não conseguia se comunicar com a torre de controle em inglês. A operação dos freios hidráulicos eram também um desafio para ele. Costumava confundir pés com metros. 

Os pilotos franceses na Córsega o conheciam como um escritor premiado e pioneiro da aviação. Já para os americanos era apenas um grandalhão desastrado, velho demais e mal treinado, que em apenas oito semanas com eles destroçou uma aeronave de US$ 80 mil. Por causa desse revés, foi impedido de voar sem cerimônia. Ele implorou por clemência; afirmou que estava disposto a morrer pelo seu país. "Não ligo a mínima se você vai morrer ou não pela França", informou-lhe o coronel Leo Gray, "mas não vai fazer isso num de nossos aviões". Era um caso de um tesouro nacional contra outro. 

Também foi um caso no qual Saint-Exupéry conseguiu o que queria. Já passara havia muito da época em que se sentia confortável; não conseguia se imaginar em nenhum outro lugar que não fosse na cabine de uma aeronave. A vida inteira tinha sonhado em escapar, ansiado por horizontes mais amplos, ameaçado trocar de planeta. Sentindo-se cada vez mais afastado de seus conterrâneos, cuja luta interna criticara; ferozmente antinazista, não apoiou nem De Gaulle nem os comunistas. Previu que a libertação não tiraria a França de seu infortúnio. 

Das suas frustrações pessoais e da sua incapacidade para se fazer entender em suas posições políticas surgiu O Pequeno Príncipe. Publicado em 1943, só mais tarde virou best-seller. Seu texto é interpretado sinistramente como uma morte anunciada, sua mística intensificada pela comparação entre o escritor e o assunto: arrogantes inofensivos cujas vidas consistem em partes iguais de voo e amor fracassado, que caem na Terra, ficam pouco impressionados com o que veem e acabam desaparecendo sem deixar rastros. 

Naturalmente que é fácil prever sua própria morte se você está disposto a cometer suicídio e, para aqueles inclinados a tais interpretações, há a mística questão dos pores-do-sol. O pequeno príncipe vive num planeta tão pequeno que consegue ver o sol se pôr precisamente 44 vezes ao dia - por coincidência, a idade de Saint-Exupéry quando morreu. (Por uma razão inexplicável, o príncipe assiste a 44 pores-do-sol somente na tradução inglesa. No original, são 43). O fato de Saint-Exupéry não ter desejo de continuar vivendo era evidente, porém não estava claro que pretendia se matar. 

Mas, com a descoberta da sua aeronave, essa teoria tem sido novamente trazida à tona na mídia da França. Foi para protegê-lo da indignidade de tal acusação - ou para sustentar um mito valioso - que sua família por muito tempo se opôs a todas as buscas. O destino de Saint-Exupéry permanece constante. Parece que o mito sempre será cultivado às custas do homem. 

O que muda é O Pequeno Príncipe, finalmente devolvido ao que foi na vida de seu autor: uma obra de ficção. Por muito tempo, carregou um ônus pesado, mais do que qualquer livro deve ter. Ninguém nunca esperou que P.L. Travers fosse transportado pelo vento oeste. O conto de fadas de Saint-Exupéry está novamente livre para se entrelaçar não com o enigma do autor, mas com os mistérios que tanto o aturdiram: é solitário no meio dos homens; a linguagem continua sendo uma fonte de mal-entendidos; mais do que nunca corremos afoitamente, sem saber bem o que estamos procurando. Pode ser mais difícil agora perder uma aeronave no Mediterrâneo do que era, mas alguns mistérios perduram. 

Como acontece com algumas verdades sobre o fim de Saint-Exupéry. A dele foi uma morte nobre. Como observou sua viúva, a saída foi sob encomenda, uma queda meteórica no fim de uma vida perseguindo estrelas. 

Também seu desaparecimento mostra todos os sinais de ter sido o fim que Saint-Exupéry queria. Na década de 1930, foi-lhe perguntado, dada sua já impressionante lista de escapadas por um triz, que tipo de morte preferiria. 

Escolheu a água. "Você não sente que está morrendo. Simplesmente sente que está caindo no sono e começando a sonhar." E lá, certamente, podemos deixá-lo.
  
Notícia do New York Times publicada no O Estado de S. Paulo em 20 de abril de 2004


A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 70


 Por volta do final de 1943, Saint-Exupéry escreveu uma súplica ardente a Consuelo, que ficara em Nova York, pedindo-lhe que se aprontasse para esperá-lo “toda florida” quando ele voltasse da guer­ra. Tinha acabado de receber uma carta dela, que mostrara a André Gide. Este a achara “extraordinariamente comovente”. Ninguém sabe o seu teor, porém a resposta de Antoine não deixa dúvida de que ela queria esquecer suas antigas diferenças. Após ter recebido a men­sagem, ele confiou a Gide estar decidido a romper a ligação com a outra mulher que causara tanto desgosto a Consuelo durante sua vida em Paris.

Nessa carta de doze páginas com letra miúda, na qual chama a mulher de “pintinho”, Antoine falava sobre a necessidade de tê-la como sua musa. Consuelo estivera a seu lado quando ele escreveu seus dois melhores livros de ficção, Voo Noturno e O Pequeno Príncipe, e ele explicava claramente a influência de sua presença inspiradora por meio de uma parábola. “Querida, quero lhe contar um sonho antigo que tive na época de nossa separação. Estava num prado. E a terra estava morta. E as árvores estavam mortas. Nada tinha cheiro nem gosto. E bruscamente, embora aparentemente nada tivesse mu­dado, tudo mudou. A terra ressuscitou, as árvores ressuscitaram. Tudo ficou com tal cheiro e gosto que era forte demais, quase forte demais para mim. E eu sabia por quê. E eu dizia: ‘Consuelo ressus­citou, Consuelo está aqui’. Você era o sal da terra, você despertara meu amor por todas as coisas, ao retornar. Consuelo, compreendi então que a amava por toda a eternidade.”

A rapidez com que a vida privada de Saint-Exupéry retomava encanto e cor unicamente com a mágica de suas lembranças também aparece em seus escritos. Fatos cotidianos ou até mesmo trágicos transformavam-se em acontecimentos repletos de alegria e fantasia. Apesar das tensões das últimas semanas passadas juntos nos Estados Unidos, Consuelo tornara a ser objeto de sua gratidão e adoração. Antoine só tinha que assumir sua própria contrição. “Consuelo, agra­deço a você do fundo do meu coração por ter se esforçado tanto para ser minha companheira. Hoje que estou em guerra e completamente perdido neste imenso planeta, tenho apenas um consolo e uma estrela, que ilumina a casa. Pintinho, conserve-a pura.”

Antoine continuou a sofrer com a separação prolongada du­rante as semanas seguintes. Expressou seu amor pela esposa em um fluxo de correspondência que às vezes ultrapassava uma carta por dia. Consuelo conservou preciosamente todas essas mensagens, e só deixou vazar detalhes insignificantes do seu conteúdo. Negou-se a vendê-las para pagar despesas de hospital ou, em 1964, quando teve de enfrentar um grave problema de impostos (algumas cartas de Saint-Exupéry à esposa foram vendidas após a morte de Consuelo, contra a vontade da família de Antoine).

Nenhum correspondente, mesmo que fosse tão prolixo quanto o próprio Saint-Exupéry, teria conseguido tranquilizar com suas res­postas um homem tão angustiado e dotado de uma imaginação tão atormentada. Ele passava dolorosas eternidades à espera das respos­tas de Consuelo, persuadido de que ela o abandonara, e seus temores provocavam crises de tristeza mescladas com fluxos de recriminações. Como a ausência de Saint-Exupéry prolongava-se, Consuelo habitual­mente respondia com breves mensagens em cartões postais. Pouco antes da morte de Antoine, ela pedia desculpas por sua breve cor­respondência, argumentando que não podia escrever mais longamen­te por causa de um dedo quebrado.

No grupo 2/33, todos puderam perceber a angústia de Saint- Exupéry no período anterior a sua morte, e seus colegas da aero­náutica estavam perfeitamente conscientes dos efeitos desastrosos da separação e da dúvida. Horas massacrantes passadas sozinho, aper­tado num cockpit, dependendo de uma quantidade insuficiente de oxigênio, só podiam acentuar as torturas psicológicas de um homem que falava do futuro em termos sombrios.

Era velho demais para voar no Lightning: a idade-limite dos pilotos desse avião era 30 anos, e o cansaço que sentia após missões em elevada altitude pelos céus da França contribuíram para inquietar seus superiores quanto a sua vontade de lutar para sobreviver. O fotógrafo americano John Phillips, que tirou as últimas fotos de Saint- Exupéry em seu avião, advertiu-o dizendo que as modernas máquinas de guerra podiam ser comparadas com mulheres jovens, e que “ne­nhuma das duas coisas são convenientes para homens que estão en­velhecendo”.

A princípio, Saint-Exupéry apenas recebera autorização para cin­co saídas de reconhecimento e, em condições normais, ele teria tido que parar de voar bem antes de seu último voo. Porém, era impos­sível impor o regulamento a um homem que passava por cima das ordens que freavam sua busca constante de honra, determinação que já havia lhe valido três Cruzes de Guerra.

Seu comandante, René Cavile, revelou ao escritor Jules Roy, pouco depois da morte de Saint-Exupéry, que algumas vezes Antoine lhe fizera confidências. Roy, que escreveu uma longa homena­gem póstuma ao aviador, gravou uma entrevista não publicada, con­servada nos arquivos da biblioteca de Marseille, na qual Gavoille fala do estado depressivo de Saint-Exupéry nos dias anteriores a seu último voo, e de seus temores de que Consuelo não o amasse mais.

Com frequência as relações com Gavoille eram tensas devido ao temperamento de Saint-Exupéry, amigo encantador porém subordi­nado pouco disciplinado, como demonstra o acidente durante uma missão na qual ele se perdeu na região de Nancy, em 29 de junho, dia do seu 44º  aniversário. Gavoille lembra-se que ele insistiu em realizar esse reconhecimento, embora não estivesse previsto no pla­nejamento das saídas, pois seria no céu da Saboia, que ele conhecia desde a infância. Perto de Annecy, o motor esquerdo sofreu uma pane e o piloto decidiu virar rumo aos Alpes para se refugiar dos caças alemães. Num inexplicável erro de aviação, ele voou tão longe para o leste que chegou à Itália, acima do vale do Pó, e teve que sobrevoar as cidades de Turim e de Gênova, fortemente defendidas pela DCA. Foi interceptado por dois caças inimigos e, convencido de que ia morrer, relatou a Gavoille que “encolheu-se todo”. Só escapou graças à sorte, mas sentiu-se tão envergonhado com esse incidente que tentou mantê-lo em segredo antes de admitir o erro, quando lhe foram apresentadas as fotografias de reconhecimento. “Quando lhe pedi explicações”, contou Gavoille em sua entrevista com Jules Roy, “ele enrubesceu até as orelhas e negou-se a falar com qualquer pessoa durante três dias. Pensei proibi-lo de voar por incompetência.”

A amizade entre comandante e subordinado não foi afetada por esse enfrentamento, já que Gavoille pediu a Saint-Exupéry que fosse padrinho de seu filho, batizado em Túnis uma semana depois. Du­rante os últimos dias da vida de Saint-Exupéry, Gavoille foi seu in­terlocutor privilegiado em longas conversas nas quais Antoine lem­brava seus sentimentos pela esposa. Assim como em seus bilhetes redigidos apressadamente, Saint-Exupéry usava fórmulas para falar de Consuelo que podiam passar, sem transição, do insulto ao elogio mais exagerado.

 No final do mês de julho era evidente que ele não suportaria por muito tempo essa pressão sentimental, física e intelectual. Esca­para por pouco da morte em diversos voos de reconhecimento e, no dia anterior ao seu desaparecimento, a Luftwaffe abatera um pi­loto americano de Lightning a pouca distância do aeródromo corso, no momento em que ele estava chegando à base.

Desde sua partida de Nova York, o equilíbrio de suas relações com Consuelo modificara-se. Antoine deixara de ser o pequeno prín­cipe encantador tentando distrair sua caprichosa flor. Ele agora era uma criança perdida na imensidão, procurando apaixonadamente uma fonte de amor que o impedisse de ultrapassar a frágil fronteira que o separava do desespero. Precisava de um anjo da guarda, cuja generosidade o ajudasse a recriar a sensação de segurança e recon­forto dos braços da mãe. Alguns meses antes de morrer, praticamen­te suplicou que Consuelo desempenhasse o papel maternal assumido por Marie de Saint-Exupéry no castelo de Saint-Maurice-de-Rémens, quarenta anos antes. “Consuelo querida, seja minha proteção”, es­crevia no cantinho de uma mesa, na ruidosa animação de uma base aérea do deserto da Tunísia. “Faça para mim um manto com seu amor. Seu marido, Antoine.”

Ninguém saberá jamais se Consuelo ocupava seus pensamentos no momento da morte. O rádio do Lightning calou-se bem antes de o avião mergulhar no mar.


sábado, 10 de março de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 27


            O primeiro romance de Saint-Exupéry, Correio Sul, publicado em 1929, e sua coletânea de ensaios, Terra dos Homens, impresso dez anos depois, contêm descrições de acontecimentos semelhantes, porém poderiam ter sido escritos por dois autores diferentes. O primeiro livro evidencia esforço e falta de confiança em si mesmo, enquanto o segundo está repleto de naturalidade e segurança.

            Saint-Exupéry escreveu muito menos que a maioria de seus contemporâneos, especialmente Joseph Kessel, piloto rival, que publicou dez vezes mais romances e recebeu o prêmio da Academia Francesa por Les Rois Aveugles, dois anos antes da publicação de Correio Sul. A obra de Saint-Exupéry foi limitada pela sua busca da perfeição e pela obstinada perseguição de sua concepção de literatura bela. Ele não exagerava ao afirmar que reescrevia cerca de trinta vezes seus manuscritos até ficar satisfeito. Podava e cortava para mostrar apenas o essencial de suas experiências, e freqüentemente o resultado literário era surpreendente.

            Correio Sul é apenas um romance comum; Terra dos Homens é uma obra-prima. O primeiro livro tem cerca de 150 páginas, porém sua construção é desigual, devido a um desequilíbrio entre as cenas de vôo e a aventura sentimental de Jacques Bernis e Geneviève. A situação melodramática é menos elaborada que a intriga, também melodramática, de L’Équipage, de Joseph Kessel, que Saint-Exupéry lera por ocasião de sua publicação, em 1923.

            Terra dos Homens, que recebeu o prêmio da Academia Francesa em 1939 e causou sensação nos Estados Unidos, está escrito com uma simplicidade enganosa, que coloca a obra num nível literário específico, situado entre o relato magistral de viagem e a reflexão romântica sobre a nobreza da humanidade. Enquanto Correio Sul é classificado na categoria de romances inspirados na experiência pessoal, Terra dos Homens gravita numa órbita original e inclassificável.

            Assim como as recordações de infância de Saint-Exupéry, os acontecimentos evocados em Terra dos Homens adquiriram um frescor que aumenta à medida que seu efeito é destilado pela nostalgia. Os dez anos transcorridos entre Correio Sul e Terra dos Homens constituíram um período de provações pessoais extremas para Saint-Exu- péry, mas, desembaraçadas de suas impurezas, só as lições mais comoventes e radiosas ressurgirão em sua pureza essencial.

            O exemplo mais notável está nas primeiras páginas de Terra dos Homens em que ele retoma um trecho de Correio Sul e refere-se a Henri Guillaumet. Este serviu de modelo para Saint-Exupéry no primeiro livro, para o caráter do narrador anônimo que inicia seu amigo, Bernis, nos perigos da travessia aérea da Espanha. O narrador descreve uma paisagem íntima de campos de flores e praias mediterrâneas nas quais um piloto em dificuldades tem de evitar os barcos de pesca na escuridão do crepúsculo.

            Em Terra dos Homens, a mesma cena evocada brevemente torna-se uma recordação de sua relação fraterna com Guillaumet e dos raros momentos que mudaram a percepção de Saint-Exupéry quanto ao transporte de correio para a África do Norte: “Ele fez da Espanha minha amiga”, escreveu. Guillaumet fala dos campos minúsculos, de um laranjal, de uma manada de carneiros e de um riacho que podem ser amigos ou inimigos do aviador, que, segundo os termos de Saint-Exupéry, podia esperar uma falha no motor a qualquer instante. Guillaumet “espalha confiança como uma lâmpada difunde luz” e, ao lado desse “veterano”, Saint-Exupéry sente uma calma de escolar.

            As imagens apresentam a versão de um Guillaumet muito mais velho e humano que Didier Daurat, e permitem imaginar seu passado heróico durante a Primeira Guerra Mundial. Essa impressão teria permanecido se Guillaumet não tivesse se tornado um dos pilotos mais audazes e célebres do período entre as duas guerras. Quando Terra dos Homens foi publicado em 1939, ele era um herói nacional e seu jovem rosto delicado e inocente era familiar aos milhões de leitores de jornais populares. Como Saint-Exupéry, que lhe dedicou o livro, Guillaumet sobrevivera a perigos inimagináveis, e encarnava os valores viris que a intuição de Saint-Exupéry detectara desde seu primeiro encontro.

            No entanto, em 1926, Guillaumet ainda estava longe da lenda. O jovem piloto, de fisionomia agradável e caráter descontraído, provinha de um povoado chamado Bouy, em Champagne, onde seu pai era produtor de leite. Sentiu-se fascinado pelos aviões desde 1908, quando viu Henri Farman decolar de um campo de aviação perto de sua casa para ir a Reims. Oito anos depois, com 14 anos, Guillaumet recebia seu batismo do ar num avião militar. Em 1920 entrou na escola de aviação Roland Nungesser, em Orly, antes de ingressar na aeronáutica.

            Cinco anos depois, após ter vencido uma corrida de 3.000 quilômetros, passou a trabalhar para Latécoère com o apoio de Jean Mermoz, que conhecera durante a carreira militar. Guillaumet já era piloto regular na linha do Senegal quando Saint-Exupéry chegou a Toulouse, e esses poucos meses de experiência que lhe deram um prestígio de veterano iluminam as primeiras páginas de Terra dos Homens. Segundo Didier Daurat, testemunha das primeiras aulas de vôo descritas em Terra dos Homens, “uma rara amizade acabara de nascer”.

            A admiração de Saint-Exupéry por Guillaumet, tanto como homem quanto como piloto, durante os anos que passaram juntos na África do Norte e na América do Sul, é um dos elementos mais notáveis de Terra dos Homens. Em nenhum outro lugar ele reconhecerá com tanta generosidade a nobre grandeza do gênero humano. Guillaumet não é apenas um amigo. Ele personifica todas as qualidades às quais Saint-Exupéry aspira, e no entanto tem-se a impressão fugidia de que essa admiração não é totalmente retribuída por aquele que ele escolheu para substituir seu jovem irmão. Guillaumet possuía dois trunfos que o separavam inevitavelmente desse jovem homem introspectivo e freqüentemente solitário que era Saint-Exupéry. Possuía total confiança em si mesmo e era feliz com sua esposa. Não possuía qualquer pretensão intelectual e tinha pouco tempo para a análise pessoal. Quando regressa à sua aldeia no meio dos vinhedos e das granjas produtoras de leite do Marne, Guillaumet sente-se bem. Consciente dessas lacunas e às voltas com um casamento infeliz, Saint-Exupéry retorna a Saint-Maurice e sente-se um estranho.

            Saint-Exupéry parece estar sempre um passo atrás de Guillaumet, cujas aventuras e tentativas de bater recordes eram mais espetaculares e bem-sucedidas. Essa impressão de estar a reboque do destino transformou-se numa ironia dramática e cruel quando Guillaumet foi abatido num vôo sobre o Mediterrâneo, em 1940, quatro anos antes que o Lightning de Saint-Exupéry se espatifasse nas mesmas águas.




            

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 7

As verdadeiras mudanças de Saint-Maurice não são aparentes. O pequeno povoado já não vive segundo o ritmo dos castelões, e o senso de solidariedade que unia os habitantes desapareceu com o êxodo rural e a chegada de habitantes das cidades, que lá adquiriram sua segunda residência. Na época da infância de Saint-Exupéry, como os meios de transporte eram raros, a visita a Ambérieu-en- Bugey, o povoado mais próximo, transformava-se em expedição. Os aldeães viviam da mesma forma há séculos, fechados sobre si mesmos. Os castelões compartilhavam com os diaristas agrícolas recordações comuns que remontavam a gerações passadas, e cada um deles assumia o papel que lhe fora atribuído por Deus. As referências de Antoine à sua infância nos parecem ainda mais pungentes porque atualmente sabemos que essa comunidade já estava condenada a desaparecer e que os privilégios de uma aristocracia confiante em sua perenidade estavam ameaçados pela Grande Guerra.
Naquela época, sua irmã Simone mantinha um diário que posteriormente utilizaria para escrever Cinco Crianças em um Parque, uma descrição da vida em Saint-Maurice. O relato era dominado por uma das personalidades mais imponentes de sua infância, a castelã condessa de Tricaud, conhecida habitualmente pelo nome de Tante (tia). A castelã, viúva havia quinze anos, tinha 67 quando Antoine foi batizado. Sua vida conjugal fora marcada pelo falecimento da filha única, que morreu com difteria aos 3 anos, deixando-lhe a única missão de reinar sobre uma complicada rede de parentes a partir do castelo e o apartamento lionês herdados do marido, um diplomata. O pivô de sua família adotiva era a mãe de Antoine, Marie, sua sobrinha-neta, e foi Gabrielle de Tricaud quem presidiu as negociações que selaram o casamento com o pai de Antoine, em 1896.
O meio aristocrático daqueles tempos oferecia mais que uma vantagem social. Representava também uma rede benévola de beneficência baseada na lealdade e na propriedade, e toda a família Saint- Exupéry foi adotada por tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em 1904. Tinham de viver principalmente da renda de sua quinta de 250 hectares, que se estendiam pelos três lados do castelo. A condessa foi aceita como a autoridade incontestável de uma família dominada pelas mulheres e familiares.
Gabrielle de Tricaud tinha a dimensão de um personagem de romance. Vestida de preto, caminhando com a ajuda de uma bengala, ela podia ser ao mesmo tempo generosa e tirânica. Nascida numa época em que as moças de boa família eram ajudadas por serviçais até mesmo para escovar os cabelos, possuía uma criada, também viúva. Em dias fixos, algumas pessoas eram convidadas para partidas de dominó ou bridge, à luz dos lampiões de querosene, ou para assistir aos saraus musicais que ela oferecia em seu apartamento de Lyon quando a família lá passava o inverno.
O sacerdote de Saint-Maurice, padre Montessuy, era considerado seu confessor pessoal. Ele não tinha outra alternativa senão a de aprovar sua maneira peremptória de rezar em latim na capela do castelo, após o jantar. Também podia ser contemplado com uma homilia sobre a forma como devia proceder com os aldeães. Ela reinava com direito divino sobre a comunidade e conhecia todos seus súditos pelo nome. Gabrielle de Tricaud adorava a irmã mais velha de Antoine, Marie-Madeleine, mas não tinha tempo a perder com os meninos mais moços nem com os animais. Antoine e Fran- çois tinham o direito de estar presentes, mas não de ser ouvidos, e os numerosos animais domésticos não eram aceitos na casa, com exceção dos pássaros aprisionados de Madeleine.
Simone refere-se com grande afeição a essa tia dominadora, ressaltando-lhe originalidade que às vezes escondia um grande coração. Também admirava sua capacidade de escolher empregados tão excêntricos quanto ela. Possuía pelo menos oito, permanentemente a seu serviço em Saint-Maurice. Tratadas freqüentemente como crianças, as criadas desempenhavam o papel de intermediárias entre os irmãos e irmãs e os adultos condescendentes. Às vezes as crianças é que tinham que consolar os empregados, particularmente quando a cozinheira recebia duras reprimendas públicas de tia Gabrielle, com o pretexto de que a refeição fora servida com alguns minutos de atraso, ou considerada indigna dos convidados, cujo fluxo era inesgotável.
De todos os personagens presentes nas sombras do castelo, o mais comovente era sem dúvida o mordomo, Cyprien, um suíço de triste figura com uniforme preto. Suas propostas de casamento tinham sido recusadas pela criada da tia (Gabrielle), Noémi, e ele buscara consolo no álcool. Era tão sensível que às vezes servia a mesa com o rosto encharcado de lágrimas produzidas por sua desgraça amorosa. No entanto, foi sobre Marguerite Chapays, mais conhecida pelo nome de Moisy, ou Mademoiselle, que Antoine e Simone mais escreveram. Ela aparece “trotando como um rato” em Terra dos Homens. “Oh Deus, que infelicidade!”, diz ela, desesperada, ao examinar as roupas gastas da família. Após alguns anos, fora promovida de criada a governanta. Os quatro armários de roupa que ela passava em revista com um olhar escrutador, arrumando a disposição dos lençóis e toalhas de mesa para assegurar sua deterioração harmoniosa, eram para ela reinos secretos, como os espaços para brincadeiras que Antoine encontrava no jardim e no sótão. O conteúdo desses quatro armários aparece diversas vezes na obra literária de Saint-Exupéry. A partir de Correio Sul surgem referências às virtudes apaziguadoras dos lençóis brancos, ou evocações metafóricas das toalhas de mesa.
Moisy era a aliada dos meninos em sua luta contra os adultos incomprensivos, tendo chegado a esconder Antoine embaixo de sua cama para evitar uma surra. Era mais babá das crianças do que governanta. À noite, Antoine introduzia-se de bom grado no seu quarto para se regalar com bocados de açúcar mergulhados em aguardente. Quando os outros perceberam, ela comprou um estoque de açúcar para agradar a todos, porém sua pequena reserva de álcool foi mais de uma vez substituída pelo vinho de missa do padre Mon- tessuy. Ela era uma eterna filha do campo, com faces vermelhas como maçãs, que buscara refúgio em Saint-Maurice por meio de um emprego de criada, após a difícil experiência de trabalhar dez horas por dia numa fiação lionesa. Enquanto as tias e os tios falavam apenas de finanças, propriedade e religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores do campo e as levava para colher frutas para fazer geléia.
Moisy era frágil e miúda, e em pouco tempo Antoine tornou-se mais alto que ela. Ele a levantava do chão com facilidade para convencê-la a preparar seus pratos preferidos, mimando-a e balançando-a nos seus braços. Adulto, Antoine desempenharia o papel de anjo da guarda de Moisy, permitindo-lhe realizar o sonho de sua vida, a aquisição de uma pequena casa na sua aldeia natal, Drôme. Saint- Exupéry enviava-lhe dinheiro para a manutenção da casa, visitando-a sempre que possível, até sua mobilização em 1939. Eles exploravam juntos, com uma nostalgia comum, os tesouros da caixa de fotografias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.


Antoine de Saint-Exupéry com nove anos de idade

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 2

Antoine de Saint-Exupéry estava com 44 anos quando seu avião mergulhou no mar. Sua reputação como escritor era sólida, embora tivesse publicado apenas cinco obras breves, cujo texto total em fran­cês não superava 1.000 páginas. No entanto, sua celebridade em vida não pode ser comparada à sua imensa popularidade póstuma. Ele não ficaria sabendo que sua obra mais conhecida, O Pequeno Príncipe, editada um ano antes de sua morte, se tornaria uma das obras ou talvez a obra francesa mais traduzida, pelo menos para oitenta línguas. Essa fábula para crianças também figura, em com­panhia de outros dois livros seus, Voo Noturno e Terra dos Homens, na lista das dez obras francesas mais lidas do século. Todos os livros editados durante sua vida, entre eles Correio Sul e Piloto de Guerra, inspiraram-se em suas experiências como piloto na aviação civil ou durante a batalha da França. Quando La Plêiade publicou uma an­tologia de suas obras, a mesma ultrapassou em sucesso de vendas todas as coleções semelhantes de todos os autores franceses, clássicos ou contemporâneos.
O conjunto de sua obra revela uma surpreendente diversidade. Somente os dois primeiros livros de Saint-Exupéry, Correio Sul e Voo Noturno, são romances, enquanto os outros três não se classificam em qualquer categoria identificável. Seria demasiadamente simplista qualificar Terra dos Homens de relato de viagem, Piloto de Guerra de recordações de combate, ou transformar O Pequeno Príncipe num con­to para crianças. Todos contêm temas filosóficos e morais que o autor tinha a intenção de desenvolver em seu último livro, Cidadela, antologia inacabada de parábolas publicada, a partir de anotações, após sua morte.
A vida aventureira de Saint-Exupéry e suas observações éticas ou místicas ocupam lugar tão significativo em seus livros que uma das principais qualidades de sua obra, a limpidez da escrita, frequentemente é minimizada ou nem sequer é notada. Na verdade, ele era um escritor excepcional, fascinado, no plano profissional e estético, pelo uso e riqueza da língua escrita. A concisão dos seus livros, com exceção de Cidadela, reflete uma precisão de ourives na escolha das palavras, realçando sua beleza e a emoção produzida. O autor mais admirado por ele era Blaise Pascal. Em busca de uma perfeição comparável à do escritor-filósofo, Saint-Exupéry empreen­dia um árduo processo de revisão e reescrita, que reduzia em duas terças partes seus manuscritos originais.

Essa paciência de artesão na elaboração literária, comparável em sua opinião à extração de uma pedra preciosa da ganga, deveria colocá-lo no mesmo nível dos maiores escritores de uma das idades de ouro da literatura francesa. Até mesmo os críticos embaraçados pela insistência de Saint-Exupéry no dever e no sacrifício, em Voo Noturno ou Piloto de Guerra., ou irritados pelo suave idealismo de O Pequeno Príncipe, não puderam dissimular seu entusiasmo diante da mais evocadora das prosas jamais escrita em língua francesa.


Enrico Caruso o maior cantor de todos os tempos - segundo Pavarotti

Enrico Caruso (Nápoles25 de fevereiro de 1873 — Nápoles2 de agosto de 1921) foi um tenor italiano, considerado, inclusive pelo ilustre Luciano Pavarotti, o maior intérprete da música erudita de todos os tempos. Com vasto repertório, Caruso foi o primeiro cantor clássico a atrair grandes plateias em todo o mundo e ainda hoje figura entre os maiores intérpretes clássicos da história. Sua interpretação de Vesti la giubba, da ópera Pagliacci, foi a primeira gravação na história a vender 1 milhão de cópias.
Começou a carreira em 1894, aos 21 anos de idade, na cidade natal. Recebeu as primeiras aulas de canto de Guglielmo Vergine. Atuou, entre outras óperas, na estreia de Fedora e La Fanciulla del West, do compositor italiano Giacomo Puccini. As mais famosas interpretações foram como Canio na ópera I Pagliacci, de Leoncavallo e como Radamés, em Aida, de Giuseppe Verdi. Na metade da década de 1910 já era conhecido internacionalmente. Era constantemente contratado pelo Metropolitan de Nova Iorque, relação que persistiu até 1920. Caruso foi eternizado pelo agudo mais potente já conhecido, e por muitos considerado o melhor cantor de ópera de todos os tempos.
O compositor lírico Giacomo Puccini e o compositor de canções populares Paolo Tosti foram seus amigos e compuseram obras especialmente para ele.
Caruso apostou na nova tecnologia de gravação de som em discos de cera e fez as primeiras 20 gravações em Milão, em 1895. Em 1903, foi para Nova Iorque e, no mesmo ano, deu início a gravações fonográficas pela Victor Talking Machine Company, antecessora da RCA-Victor. Caruso foi um dos primeiros cantores a gravar discos em grande escala. A indústria fonográfica e o cantor tiveram uma estreita relação, que ajudou a promover comercialmente a ambos, nas duas primeiras décadas do século XX. Suas gravações foram recuperadas e, remasterizadas, encontraram o meio moderno e duradouro de divulgação de sua arte no disco compacto, CD.
O repertório de Caruso incluía cerca de sessenta óperas, a maioria delas em italiano, embora ele tenha cantado também em francês, inglês, espanhol e latim, além do dialeto napolitano, das canções populares de sua terra natal. Cantou perto de 500 canções, que variaram das tradicionais italianas até as canções populares do momento.
Sua vida foi tema de um filme norte-americano, permeado de ficção, intitulado O Grande Caruso (The Great Caruso), de 1951, com o cantor lírico Mario Lanza interpretando Caruso. Devido ao seu conteúdo altamente ficcional, o filme foi proibido na Itália.
No filme Fitzcarraldo de Werner Herzog, com Klaus Kinski no papel de Fitzcarraldo, aparece, no início da projeção, uma entrada de Caruso na Ópera de Manaus, no Brasil, onde Caruso de fato nunca se apresentou.
Os últimos dias da sua vida são narrados de forma romantizada na canção Caruso, de Lucio Dalla (1986).

'O Sole Mio

Che bella cosa na jurnata 'e sole,
N'aria serena doppo na tempesta!
Pe' ll'aria fresca pare gia' na festa...
Che bella cosa na jurnata 'e sole.

Ma n'atu sole
Cchiu' bello, oi ne'.
'O sole mio
Sta 'nfronte a te!
'O sole, 'o sole mio
Sta 'nfronte a te!
Sta 'nfronte a te!

Quanno fa notte e 'o sole
Se ne scenne,
Me vene quase 'na malincunia;
Sotto 'a fenesta toia restarria
Quanno fa notte e 'o sole
Se ne scenne.

Ma n'atu sole
Cchiu' bello, oi ne'.
'O sole mio
Sta 'nfronte a te!
'O sole, 'o sole mio
Sta 'nfronte a te!
Sta 'nfronte a te!

Ma n'atu sole
Cchiu' bello, oi ne'.
'O sole mio
Sta 'nfronte a te!
'O sole, 'o sole mio
Sta 'nfronte a te!
Sta 'nfronte a te!

TRADUÇÃO

Oh, meu sol
Que bela coisa uma jornada de sol
Um ar sereno depois da tempestade
Pelo ar fresco parece já uma festa
Que bela coisa uma jornada de sol

Mas um outro sol
Mais belo, oh garota
O meu sol
Está na sua frente
O sol, o meu sol
Está na sua frente
Está na sua frente

Apaga-se a luz e fecha-se a sua janela
A lavadeira canta e não se vai
Somente torce, lava e canta
Apaga-se a luz e fecha-se a sua janela

Mas um outro sol
Mais belo, oh garota
O meu sol
Está na sua fronte!
O sol, o meu sol
Está na sua frente
Está na sua frente

Quando desce a noite e o sol
Se põe
Me dá quase uma melancolia
Ficaria embaixo da sua janela
Quando desce a noite e o sol
Se põe

Mas um outro sol
Mais belo, oh garota
O meu sol
Está na sua fronte!
O sol, o meu sol
Está na sua frente
Está na sua frente


O poder do Czar se enfraquece e a Rússia caminha para a Revolução

O poder do Czar se enfraquece e a Rússia caminha para a Revolução
A marcha inexorável da Rússia em direção à Revolução Comunista começou em 1904. Dois fatores contribuíram para a queda do regime do Czar: a derrota inesperada na guerra contra o Japão e as decisões políticas desastradas feitas pelo czar desde o começo do século até a vitória da Revolução em 1917.
Mapa mostra principais batalhas da Guerra Russia - Japão
A Guerra entre os Impérios do Japão e da Russia ocorreu entre 1904 e 1905  no nordeste asiático, e a derrota da Rússia permitiu que o regime político do czar Nicolau II da Rússia fosse abalado por uma série de revoltas internas (em 1905), envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no couraçado Potemkin) e soldados do exército. Greves e protestos contra o regime absolutista do czar explodiram em diversas regiões da Rússia. Os líderes socialistas procuraram organizar os trabalhadores, nos quais se debatiam as decisões políticas a serem tomadas.
O Japão era um país de tradições militares, apesar de enfrentar severas crises econômicas. Com navios menores, mas com grande mobilidade e poder de fogo muito superior aos pesados e antigos navios russos, a Marinha japonesa impôs uma derrota humilhante ao inimigo. Esta guerra marcou o reconhecimento do Japão como potência imperialista, pelas diversas nações da Europa, enquanto a derrota russa, por sua vez, patenteou a fraqueza do regime czarista e iniciou a sua queda, concretizada na Revolução de 1917. A guerra também foi conhecida como a "primeira maior guerra do século XX".
Após a  Restauração Meiji      o Japão iniciou um programa de desenvolvimento industrial e militar para que não caísse no Imperialismo europeu na Ásia.
Em dezembro de 1897, uma frota russa ancorou em Port Arthur e três meses depois em 1898, a China arrendou Port Arthur para os russos que precisavam de uma base naval no Extremo Oriente, pois a atual base de Vladivostok ficava paralisada de novembro a março, durante o inverno, por causa do gelo, impedindo a navegação mercante e de guerra, e Port Arthur tinha águas quentes e seu porto funcionava o ano todo,  perfeito para os russos criarem a sua base naval
Bombardeio japonês a Port Arthur
O Japão continuava insatisfeito pelo avanço russo no Extremo Oriente e decidiu que somente uma guerra poderia assegurar a Coreia e ainda conquistar Port Arthur. Em 8 de fevereiro de 1904, a Marinha Imperial Japonesa lança um ataque surpresa à frota russa ancorada em Port Arthur. Três horas depois, em São Petersburgo, o Czar Nicolau II recebe a notícia do ataque japonês - ficou atordoado, pois de acordo com os seus ministros, o Japão nunca atacaria uma potência europeia que tinha quase o dobro de soldados e a sexta marinha de guerra mais poderosa do mundo. O ataque sem declaração formal de guerra foi justificado pelos japoneses, tendo em vista que a Rússia havia invadido a Finlândia em 1809.
O Exército Japonês iniciou ofensivas na Manchúria, enquanto o Exército Imperial Russo utilizou táticas defensivas para tentar atrasar o avanço japonês enquanto os reforços russos ainda estavam sendo transportados pela ferrovia Transiberiana que ainda não havia sido terminada chegando até Irkutsk perto do Lago Baikal.
Em 1 de maio de 1904, as tropas japonesas atravessaram o rio Yalu e atacaram as posições russas. Os russos acreditavam que seria uma guerra fácil e rápida com uma grande vitória russa, mas após a Batalha do Rio Yalu os japoneses derrotam os russos que recuam para Port Arthur.
Em 10 de agosto, os russos tentam furar o bloqueio de Port Arthur e ir para Vladivostok, russos e japoneses se enfrentaram e o Almirante Togo derrota os russos.
Enquanto isso o Exército Japonês iniciou vários ataques no alto das colinas fortificadas, e depois de milhares de mortes, os japoneses conseguem conquistar as colinas e sua artilharia bombardeia os navios russos. Todos os navios da Frota do Pacífico são afundados pela primeira vez por uma artilharia terrestre.  
Após a Batalha de Liaoyang, os russos recuam para Mukden desistindo de aliviar Port Arthur. O Major General Anatoly Stessel acreditou que não teria chances sem  reforços e com os navios afundados, e se rendeu em 2 de janeiro de 1905, sem se reunir com os outros militares nem avisar ao Czar. Por isso Stessel foi julgado por uma corte marcial em 1908 e condenado à morte, mas foi perdoado pouco depois.
Após a destruição da Frota do Pacífico, os russos decidiram enviar a sua Frota do Báltico sob o comando do Almirante Zinovy Rozhestvensky para enfrentar os japoneses, dentre os navios da Frota, havia os da Classe Borodino,  seus navios mais modernos, adquiridos há pouco tempo.
Ilustração da batalha de Mukden
Em 20 de fevereiro de 1905, iniciou-se a Batalha de Mukden, quando  os japoneses atacaram o flanco direito russo na cidade chinesa de Mukden.
Com uma força de quase meio milhão de soldados e ambos os lados bem entrincheirados apoiados por centenas de peças de artilharia. Após alguns dias, os japoneses pressionam os flancos, quando os russos perceberam que estavam sendo cercados decidem se retirarar.
Cerca de 90.000 russos foram perdidos em Mukden, apesar dessa grande derrota russa, a vitória japonesa só viria no final de maio de 1905, graças à marinha.
A Frota Russa do Báltico, após navegar 33 mil quilômetros, chegou ao Extremo Oriente. O Almirante Rozhestvensky decidiu passar pelo estreito de Tsushima por ser o local mais perto de Vladivostok, mas também o mais perigoso.
O Almirante Togo já sabia do percurso russo após receber mensagens de um navio mercante japonês que avistou as luzes dos dois navios-hospitais russos à noite, pois os russos preferiam seguir as regras da guerra que proibia desligar as luzes de navios-hospitais para a segurança dos navios.
Togo posicionou seus navios no estreito de Tsushima, após reparar alguns danificados, inclusive o seu navio, o Mikasa. Durante a travessia do estreito, os russos foram surpreendidos pela frota japonesa, que atacou os russos em 27 de maio. Isso a despeito de que navios russos eram maiores.
Mesmo com poder de fogo maior, possuindo canhões de diversos calibres, a frota russa estava em péssimo estado de conservação, depois de navegar milhares de quilômetros. Além disso, seus marinheiros estavam exaustos com a longa viagem até o Extremo Oriente.
Na batalha, os japoneses afundam importantes navios, como o Encouraçado Borodino que, ao ser atingido em uma de suas baterias, iniciou uma série de explosões internas, que abriram um buraco em seu casco, resultando no seu naufrágio; apenas um marinheiro sobreviveu.
Almirante Togo a bordo de seu navio capitânea, o Mikasa
O encouraçado Imperador Alexandre III também foi bombardeado, causando grave incêndio e inundações que o fizeram virar, matando todos os marinheiros. O Knyaz Suvorov foi atingido e Rozhestvensky ficou gravemente ferido.
À noite, o contra-almirante Nikolai Nebogatov assumiu o comando da frota. Os japoneses lançaram torpedos contra os russos que se dispersavam. No dia seguinte, os seis navios restantes renderam-se, sob as ordens de Nebogatov.
Com a destruição das Frotas do Pacífico e do Báltico e com o Exército Imperial Russo em retirada na Manchúria, o governo encontrou dificuldades para enviar reforços. Enquanto a economia estava arruinada, a guerra havia se tornado impopular.
Então o Czar aceitou a rendição pelo Tratado de Portsmouth. Em 5 de setembro de 1905, russos e japoneses assinaram os termos de paz. A Rússia reconheceu a soberania japonesa sobre a Coreia, teve que abandonar a Manchúria, ceder Port Arthur, a península de Liaodong e metade da ilha Sacalina para o Japão.
Consequências
O Império Russo ficou desprestigiado com a derrota e o Japão foi reconhecido como uma nova super-potência. A Rússia teve que se rearmar, gastando grande parte de seu dinheiro.
Teve que pedir dois empréstimos franceses: o primeiro, de 800 milhões de francos e o segundo, de 600 milhões de francos. Além disso, o Czar solicitou um empréstimo alemão de 500 milhões de marcos após a destruição das duas frotas, restando apenas a Frota do Mar Negro.
Os marinheiros do encouraçado Potemkin se revoltaram enquanto ocorria a Revolução Russa de 1905.
A Rússia Czarista entrou em decadência: o povo perdeu a confiança no Imperador enquanto o regime entrou em colapso completamente durante a Primeira Guerra Mundial.