quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 7

As verdadeiras mudanças de Saint-Maurice não são aparentes. O pequeno povoado já não vive segundo o ritmo dos castelões, e o senso de solidariedade que unia os habitantes desapareceu com o êxodo rural e a chegada de habitantes das cidades, que lá adquiriram sua segunda residência. Na época da infância de Saint-Exupéry, como os meios de transporte eram raros, a visita a Ambérieu-en- Bugey, o povoado mais próximo, transformava-se em expedição. Os aldeães viviam da mesma forma há séculos, fechados sobre si mesmos. Os castelões compartilhavam com os diaristas agrícolas recordações comuns que remontavam a gerações passadas, e cada um deles assumia o papel que lhe fora atribuído por Deus. As referências de Antoine à sua infância nos parecem ainda mais pungentes porque atualmente sabemos que essa comunidade já estava condenada a desaparecer e que os privilégios de uma aristocracia confiante em sua perenidade estavam ameaçados pela Grande Guerra.
Naquela época, sua irmã Simone mantinha um diário que posteriormente utilizaria para escrever Cinco Crianças em um Parque, uma descrição da vida em Saint-Maurice. O relato era dominado por uma das personalidades mais imponentes de sua infância, a castelã condessa de Tricaud, conhecida habitualmente pelo nome de Tante (tia). A castelã, viúva havia quinze anos, tinha 67 quando Antoine foi batizado. Sua vida conjugal fora marcada pelo falecimento da filha única, que morreu com difteria aos 3 anos, deixando-lhe a única missão de reinar sobre uma complicada rede de parentes a partir do castelo e o apartamento lionês herdados do marido, um diplomata. O pivô de sua família adotiva era a mãe de Antoine, Marie, sua sobrinha-neta, e foi Gabrielle de Tricaud quem presidiu as negociações que selaram o casamento com o pai de Antoine, em 1896.
O meio aristocrático daqueles tempos oferecia mais que uma vantagem social. Representava também uma rede benévola de beneficência baseada na lealdade e na propriedade, e toda a família Saint- Exupéry foi adotada por tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em 1904. Tinham de viver principalmente da renda de sua quinta de 250 hectares, que se estendiam pelos três lados do castelo. A condessa foi aceita como a autoridade incontestável de uma família dominada pelas mulheres e familiares.
Gabrielle de Tricaud tinha a dimensão de um personagem de romance. Vestida de preto, caminhando com a ajuda de uma bengala, ela podia ser ao mesmo tempo generosa e tirânica. Nascida numa época em que as moças de boa família eram ajudadas por serviçais até mesmo para escovar os cabelos, possuía uma criada, também viúva. Em dias fixos, algumas pessoas eram convidadas para partidas de dominó ou bridge, à luz dos lampiões de querosene, ou para assistir aos saraus musicais que ela oferecia em seu apartamento de Lyon quando a família lá passava o inverno.
O sacerdote de Saint-Maurice, padre Montessuy, era considerado seu confessor pessoal. Ele não tinha outra alternativa senão a de aprovar sua maneira peremptória de rezar em latim na capela do castelo, após o jantar. Também podia ser contemplado com uma homilia sobre a forma como devia proceder com os aldeães. Ela reinava com direito divino sobre a comunidade e conhecia todos seus súditos pelo nome. Gabrielle de Tricaud adorava a irmã mais velha de Antoine, Marie-Madeleine, mas não tinha tempo a perder com os meninos mais moços nem com os animais. Antoine e Fran- çois tinham o direito de estar presentes, mas não de ser ouvidos, e os numerosos animais domésticos não eram aceitos na casa, com exceção dos pássaros aprisionados de Madeleine.
Simone refere-se com grande afeição a essa tia dominadora, ressaltando-lhe originalidade que às vezes escondia um grande coração. Também admirava sua capacidade de escolher empregados tão excêntricos quanto ela. Possuía pelo menos oito, permanentemente a seu serviço em Saint-Maurice. Tratadas freqüentemente como crianças, as criadas desempenhavam o papel de intermediárias entre os irmãos e irmãs e os adultos condescendentes. Às vezes as crianças é que tinham que consolar os empregados, particularmente quando a cozinheira recebia duras reprimendas públicas de tia Gabrielle, com o pretexto de que a refeição fora servida com alguns minutos de atraso, ou considerada indigna dos convidados, cujo fluxo era inesgotável.
De todos os personagens presentes nas sombras do castelo, o mais comovente era sem dúvida o mordomo, Cyprien, um suíço de triste figura com uniforme preto. Suas propostas de casamento tinham sido recusadas pela criada da tia (Gabrielle), Noémi, e ele buscara consolo no álcool. Era tão sensível que às vezes servia a mesa com o rosto encharcado de lágrimas produzidas por sua desgraça amorosa. No entanto, foi sobre Marguerite Chapays, mais conhecida pelo nome de Moisy, ou Mademoiselle, que Antoine e Simone mais escreveram. Ela aparece “trotando como um rato” em Terra dos Homens. “Oh Deus, que infelicidade!”, diz ela, desesperada, ao examinar as roupas gastas da família. Após alguns anos, fora promovida de criada a governanta. Os quatro armários de roupa que ela passava em revista com um olhar escrutador, arrumando a disposição dos lençóis e toalhas de mesa para assegurar sua deterioração harmoniosa, eram para ela reinos secretos, como os espaços para brincadeiras que Antoine encontrava no jardim e no sótão. O conteúdo desses quatro armários aparece diversas vezes na obra literária de Saint-Exupéry. A partir de Correio Sul surgem referências às virtudes apaziguadoras dos lençóis brancos, ou evocações metafóricas das toalhas de mesa.
Moisy era a aliada dos meninos em sua luta contra os adultos incomprensivos, tendo chegado a esconder Antoine embaixo de sua cama para evitar uma surra. Era mais babá das crianças do que governanta. À noite, Antoine introduzia-se de bom grado no seu quarto para se regalar com bocados de açúcar mergulhados em aguardente. Quando os outros perceberam, ela comprou um estoque de açúcar para agradar a todos, porém sua pequena reserva de álcool foi mais de uma vez substituída pelo vinho de missa do padre Mon- tessuy. Ela era uma eterna filha do campo, com faces vermelhas como maçãs, que buscara refúgio em Saint-Maurice por meio de um emprego de criada, após a difícil experiência de trabalhar dez horas por dia numa fiação lionesa. Enquanto as tias e os tios falavam apenas de finanças, propriedade e religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores do campo e as levava para colher frutas para fazer geléia.
Moisy era frágil e miúda, e em pouco tempo Antoine tornou-se mais alto que ela. Ele a levantava do chão com facilidade para convencê-la a preparar seus pratos preferidos, mimando-a e balançando-a nos seus braços. Adulto, Antoine desempenharia o papel de anjo da guarda de Moisy, permitindo-lhe realizar o sonho de sua vida, a aquisição de uma pequena casa na sua aldeia natal, Drôme. Saint- Exupéry enviava-lhe dinheiro para a manutenção da casa, visitando-a sempre que possível, até sua mobilização em 1939. Eles exploravam juntos, com uma nostalgia comum, os tesouros da caixa de fotografias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.


Antoine de Saint-Exupéry com nove anos de idade

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