domingo, 25 de fevereiro de 2018

CIDADELA - PARTE 1

          Amigo é aquele que não julga. Eu já te disse. É aquele que abre a porta ao mendigo, à sua muleta, à sua bengala encostada num canto e não lhe peças que dance para julgar sua dança. E se o mendigo narra a primavera sobre a estrada lá fora, o amigo é aquele que recebe nele a primavera. E, se descreve o horror da fome na aldeia donde vem, sofre com ele a fome. Pois já te disse, o amigo no homem é a parte dedicada a ti e que te abre uma porta que não abre nunca a outro. E teu amigo é confiável e tudo que ele diz é verdadeiro, e ele te ama mesmo que te odeie em uma outra casa. E o amigo no templo, aquele que, graças a Deus, eu acotovelo e encontro, é aquele que volta para mim a mesma face que a minha, iluminada pelo mesmo Deus, pois então a unidade é feita, mesmo que lá fora ele seja comerciante e eu seja comandante, ou seja jardineiro e eu seja marinheiro ao mar. Acima de nossas divisões eu o encontrei e sou seu amigo. E posso me calar ao seu lado, ou seja, não temer pelos meus jardins interiores e minhas montanhas e minhas ravinas e meus desertos, porque ele não passeará por lá suas botas. Você, meu amigo, o que recebe de mim com amor é como se fosse o embaixador de meu império interior. E o tratas bem e o faz sentar e o escutas. E estamos felizes. Alguma vez, ao receber embaixadores, acaso me viste mantê-los à distância ou despedi-los, porque lá no fundo do império deles, a mil dias de marcha do meu, as pessoas se alimentam de iguarias que não me agradam ou porque os costumes deles não são os meus? A amizade é antes de tudo a trégua e a grande circulação do espírito acima dos pormenores vulgares. E eu não censuro nada àquele que se senta na cabeceira da minha mesa.
                Pois saiba que a hospitalidade e a cortesia e a amizade são encontros do homem dentro do homem. Que iria eu fazer no templo de um deus que discutisse a altura ou a apresentação dos seus fiéis, ou na casa de um amigo que não aceitasse minhas muletas e quisesse me fazer dançar para me julgar.

                Hás de encontrar muitos juízes por esse mundo afora. Quando se trata de te moldar e te endurecer, deixa essa tarefa para teus inimigos. Eles a desempenharão bem, como a tempestade que esculpe o cedro. Teu amigo é feito para te acolher. Saiba que Deus, quando vais ao templo, ele não te julga, te recebe.


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