sábado, 5 de agosto de 2017

TERRA DOS HOMENS - 18

V

            Em Juby, hoje, Kemal e seu irmão Mouyane me convidaram para tomar chá em sua tenda. Mouyane me olha em silêncio e guarda uma reserva feroz, o véu azul esticado sobre a boca. Só Kemal fala comigo e faz as honras da casa:

            — Minha tenda, meus camelos, minhas mulheres, meus escravos são seus.

             Sempre sem retirar os olhos de mim, Mouyane inclina-se para o irmão, diz algumas palavras e volta ao seu silêncio.

            — Que diz ele?

            — Diz: "Bonnafous roubou mil camelos do R' Gheibat

            Não conheço esse capitão Bonnafous, oficial meharista* da coluna de Atar. Mas conheço a sua grande legenda entre os mouros. Falam dele com ódio, mas como se fosse um deus. Sua presença valoriza o areal. Ele acaba de surgir hoje mesmo, sem se saber como, à retaguarda dos rezzous que marchavam para o Sul, roubando-lhes centenas de camelos, obrigando-os a lutar para salvar seus tesouros que pensavam estar em segurança. E agora, tendo salvo Atar por essa aparição de arcanjo, tendo feito seu acampamento num alto tabuleiro calcário, ele lá permanece, de pé, como um desafio. E sua irradiação é tal que obriga as tribos a se porem em marcha para enfrentar seu gládio.

            Mouyane me olha com mais dureza e novamente murmura alguma coisa.

            — Que diz ele?

            — Diz: "Partiremos amanhã em rezzou contra Bonnafous. Trezentos fuzis.”

            Eu bem pressentira alguma coisa. Aqueles camelos que há três dias estão sendo levados ao poço, aqueles conciliábulos, aquele fervor. Parece que se apresta um veleiro invisível. E o vento do largo, que o impulsionará, já circula. Graças a Bonnafous, cada passo para o Sul é um passo cheio de glória. Eu nem sei distinguir o que essas partidas contêm de ódio e de amor.

            É suntuoso possuir no mundo um tão belo inimigo a assassinar. Onde ele surge, as tribos próximas recolhem as tendas, juntam os camelos e fogem, tremendo à ideia de encontrá-lo face a face. Mas as tribos mais distantes são tomadas de uma vertigem igual à vertigem do amor. Os homens abandonam a paz das tendas, os braços das mulheres, o sono feliz, e descobrem que no mundo nada seria melhor que, depois de dois meses de marcha extenuante para o Sul, dois meses de sede abrasadora, de longas esperas, de cócoras, sob o vento de areia, cair de surpresa, pela madrugada, sobre a coluna volante de Atar e então, se Deus quiser, assassinar o capitão Bonnafous.

            — Bonnafous é forte — confessa-me Kemal

            Agora sei o segredo deles. Como o homem que deseja uma mulher sonha com o seu andar indiferente de passeio e se vira e revira a noite inteira, ferido, incendiado por aquele passear indiferente que ela continua em seus sonhos, eles são atormentados pelo passo distante de Bonnafous. Dominando os rezzous lançados contra ele, esse cristão vestido de mouro, à frente de seus duzentos piratas mouros, penetrou em território sublevado, onde o último de seus próprios homens, longe da vigilância francesa, poderia abandonar a servidão, impunemente, e sacrificá-lo ao seu Deus sobre as mesas de pedras; onde unicamente o seu prestígio o mantém, onde é a sua própria fraqueza que os espanta. E nesta noite, em meio aos sonhos roucos desses mouros, ele passa e volta a passar indiferente, e seus passos ressoam até no coração do deserto.

            Mouyane medita, sempre imóvel no fundo da tenda, como um baixo-relevo de granito azul. Só brilham seus olhos e o punhal de prata, que não é um enfeite. Como ele mudou depois que reuniu o rezzou! Sente, como nunca, a sua própria nobreza. E esmaga-me com o seu desprezo. Porque vai marchar contra Bonnafous, porque partirá pela madrugada levado por um ódio que tem todos os sinais do amor.

            Ainda uma vez, inclina-se para o irmão, fala em voz muito baixa e me olha.

            — Que diz ele?

            — Diz que atirará em você se o encontrar longe do forte.

            — Porquê?

            — Ele diz: “Você tem os aviões e o telégrafo sem fio, você tem Bonnafous, mas não tem a verdade."

            Mouyane está me julgando, imóvel em seus véus azuis de dobras de estátua.

            Ele diz: "Você come salada como as cabras e come porco como os porcos. Suas mulheres sem pudor mostram o rosto." Ele já as viu. Ele diz: “Você não reza nunca." Ele diz: “Para que lhe servem os aviões, o telégrafo sem fio e Bonnafous, se você não tem a verdade?”





            E eu admiro esse mouro que não defende a sua liberdade, porque no deserto sempre se é livre, que não defende tesouros visíveis, porque o deserto é nu, mas que defende um reino secreto. No silêncio das ondas de areia Bonnafous conduz seu pelotão como um velho corsário. E graças a ele este acampamento de cabo Juby não é mais um lar de pastores ociosos. A tempestade de Bonnafous pesa sobre seu flanco e, por causa dele, as tendas serão enroladas esta noite. E como é pungente esse silêncio para as bandas do Sul: é o silêncio de Bonnafous! Mouyane, velho caçador, sente no vento que ele caminha.

            Quando Bonnafous voltar à França, seus inimigos, longe de se alegrarem, o chorarão, como se sua partida roubasse um dos polos do deserto, um pouco de prestígio de suas existências. E eles me dirão:

            — Por que ele vai embora, o seu Bonnafous?

            — Não sei...

            Ele jogou sua vida contra a deles, e durante anos aceitou suas regras de jogo. Dormiu com a cabeça apoiada às suas pedras. Durante a

             eterna perseguição, conheceu, como eles, as noites bíblicas, feitas de estrelas e de vento. E eis que ele mostra, indo-se embora, que não jogava um jogo essencial. Vai-se embora sem remorsos. E os mouros, que ele deixa jogando sozinhos, perdem a confiança num sentido da vida que não prende mais os homens até a carne. Apesar de tudo querem acreditar nele:

            — Bonnafous: ele voltará.

            — Não sei...


            Voltará, pensam os mouros. Os jogos da Europa não poderão mais contentá-lo, nem os bridges da guarnição, nem a promoção, nem as mulheres. Voltará, atormentado pela nobreza perdida, para aquela terra onde cada passo faz bater o coração, como um passo para o amor. Pensou que aqui apenas havia vivido uma aventura e que lá em sua terra acharia o essencial; mas descobrirá com desgosto que as únicas riquezas verdadeiras ele as possuiu aqui, no deserto: o prestígio da areia, da noite, o silêncio, esta pátria de vento e de estrelas. E se Bonnafous voltar um dia, a notícia, desde a primeira noite, se espalhará pelas terras sublevadas. Os mouros saberão que ele está dormindo em alguma parte, no Saara, no meio de duzentos piratas. E então, à noite, em silêncio, levarão os mehara aos poços para beber água. Completarão as provisões de cevada. Verificarão as armas. Transportados por aquele ódio, ou por aquele amor.


A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 32


            Reine e Serre só foram liberados em setembro, um mês após a partida de Saint-Exupéry de cabo Juby. Sua volta à França foi adiada por diversas razões, entre elas o salvamento de um tenente ferido da força aérea espanhola, cujo avião fora abatido por um tiro de metralhadora. Um sargento espanhol também fazia parte da equipe de resgate, porém seu avião encalhou na areia na hora do pouso. Saint-Exupéry foi obrigado a acorrer em sua ajuda após ter acompanhado o oficial acidentado ao forte de cabo Juby.

            A operação esteve constantemente ameaçada por um grupo de rebeldes R’gueibat e as tentativas de resgate dos militares espanhóis eram prejudicadas pelas escaramuças com outras tribos. O fracasso dessa última tomada de reféns marcou o início da decadência desses guerreiros, cuja epopéia remontava a várias centenas de anos. Suas principais unidades de ataque tinham sido destruídas numa emboscada preparada pelos franceses, exatamente antes da chegada de Saint-Exupéry ao Saara espanhol, e os sobreviventes foram obrigados, a contragosto, a aceitar uma trégua, enquanto a França fortalecia seu domínio sobre a África ocidental. Assim, Saint-Exupéry escreveu a crônica dos últimos meses de uma era que estava chegando ao fim. Vôos de rotina sobre um território relativamente acolhedor logo substituíram a heróica época do transporte de correio no deserto, que durara dez anos.

            A pacificação na terra foi acompanhada de uma revolução nos ares. O Latécoère 25, que dispunha de maior autonomia de voo, tornou-se operacional, acabando com o reinado do avião com cockpit aberto e aumentando de forma considerável a segurança dos vôos noturnos. O transporte do correio começou a ser feito na metade do tempo, e os acidentes tornaram-se excepcionais. Os novos pilotos recrutados por Daurat achavam normal pilotar aparelhos dotados de uma cabine confortável, de instrumentos de navegação confiáveis, de ligações de rádio seguras e serem assessorados por um navegador experiente.

            Saint-Exupéry retornou à França com a auréola do prestígio de veterano que tanto admirara em Guillaumet, pronto para tentar a aventura ainda mais arriscada da Aéropostale na América do Sul. Passaria quase um ano antes de sua chegada a Buenos Aires, porém alguns acontecimentos de 1929 elucidam sua dupla carreira de escritor e aviador. Na primavera, foi enviado à escola de navegação aérea de Brest para um curso de aperfeiçoamento ministrado por Lionel-Max Chassin, futuro general da aeronáutica. Nove em cada onze estudantes eram militares de carreira, cujo estrito respeito à disciplina contrastava bastante com a negligência de Saint-Exupéry. Chassin conta que este chegou atrasado à primeira reunião num café de Brest, produzindo uma péssima impressão para um especialista em navegação: ele se perdera nas ruelas do porto bretão.

            Chassin, que se tornou historiador militar, era mais jovem que a maioria dos estudantes, e o clima descontraído de seus cursos talvez tenha contribuído para os resultados desconcertantes de Saint-Exupéry. A sessão de apresentação terminou com rodadas de bebidas, quando todos os onze alunos, o professor e outro instrutor pagaram rodadas de vermute cassis, antes de iniciar o jantar cuja lembrança mais marcante ficou sendo as extravagantes canções de Saint-Exupéry tendo Baco como tema.

            O curso era constituído fundamentalmente de noções avançadas de matemática e de observações dos astros realizadas nas fortificações do porto de Brest. Embora na parte teórica não surgisse nenhum problema, Chassin relata que Saint-Exupéry cometia erros monumentais nos trabalhos práticos, que foram se acrescentar a diversos outros casos referentes às suas capacidades como aviador. “Às vezes era brilhante no campo teórico, porém nos exercícios mostrava-se inepto, desastrado, em suma, muito ruim”, acrescenta Chassin.

            Durante um acidente anterior a outro que quase foi fatal, quatro anos depois, ele quase se afogou ao esquecer as instruções de Chassin para amerissar com um hidravião, e teria afundado com seu aparelho se não tivesse sido rapidamente socorrido com a ajuda de um guindaste. Em outra ocasião, quando Chassin estava co-pilotando, Saint-Exupéry, sem levar em consideração as lições de seu instrutor sobre as manobras específicas da decolagem dos hidraviões, virou a alavanca de comando para o lado errado e quase fez o aparelho submergir.

            Contudo, Chassin considerou Saint-Exupéry “muito forte” em matemática, campo no qual se distinguia por meio de novas idéias aplicáveis às técnicas de navegação. Antoine foi aprovado com uma nota passável e foi o nono colocado entre onze. Teria recebido um diploma de estudos superiores em navegação se um inspetor do ministério da Defesa não tivesse interferido. Ele declarou a Chassin que o exame perderia credibilidade se todos os candidatos fossem aprovados, insistindo para que dois nomes fossem suprimidos da lista. Saint-Exupéry foi um dos dois azarados.

            Chassin atribui em grande parte a falta de concentração de Saint-Exupéry à sua obsessão pela próxima publicação de Correio Sul. Ele tinha recebido as primeiras provas em seu período de estágio e constantemente lia trechos a seus colegas de curso, que assim substituíam, no papel de críticos amadores, os pilotos da Aéropostale que faziam escala em cabo Juby. Mais tarde, passou a ler capítulos a seus primos de Carnac. Entre eles encontrava-se Honoré d’Estienne d’Orves, que ingressara na marinha após sair da Politécnica, na qual entrara após o Liceu Saint-Louis.

            É impossível imaginar que importância Saint-Exupéry dava a essas críticas. Poucos intrusos reconhecem ter feito comentários negativos, pois desde a mais tenra infância Saint-Exupéry sempre fora extremamente suscetível às sugestões literárias. Também preferia fazer suas correções em segredo, à noite, em vez de estudar os cursos de navegação. Geralmente deitava-se ao amanhecer, esperando recuperar o sono que lhe faltava com uma longa sesta. Sua falta de atenção no primeiro curso de Chassin, pela manhã, pode ser imputada ao cansaço físico.

            Graças a André Gide, amigo de Yvonne de Lestrange, estava previsto há tempos que o livro seria publicado na Nouvelle Revue Française, pela Gallimard. Solicitou-se que André Beucler, que já escrevera três romances para esse editor, redigisse o prefácio, enquanto Jean Prévost, redator da extinta revista Le Navire cFArgent e colaborador da NRF, foi encarregado de escrever a crítica que apareceu dois meses antes da publicação do livro, em abril de 1929.

            Durante um programa de rádio em 1954, Beucler contou seu primeiro encontro com Saint-Exupéry, no qual foi seduzido por seu olhar alegre e pelo nariz, que tremia como as antenas de um inseto. Os dois escritores conversaram sobre o novo livro num café da Ave- nue de Wagram, e Saint-Exupéry conseguiu causar uma boa primeira impressão, chegando com um maço de jornais, livros de Gide, Co- lette e Georges Duhamel, além de um brinquedo mecânico destinado ao filho de um amigo. O relato de Beucler mostra que Saint-Exupéry preparara-se para justificar sua filosofia pessoal. Desde o início da conversa, descreveu-se simultaneamente como nietzschiano e marxista, convencido de que as pessoas comuns têm necessidade de ser dirigidas e organizadas. Ele declarou ter optado pela aviação porque ela unia a realização pessoal à camaradagem, ao perigo, ao sacrifício e à emulação.

            Beucler compreendeu ardorosamente a mensagem e redigiu um prefácio repleto de admiração por um autor que descreveu como um herói, um soldado e um homem de ação. O outro jovem padrinho literário, Jean Prévost, não o contradisse. Seu artigo na NRF começava com a frase: “É difícil não gostar deste livro”. Houve diversos outros artigos sobre Correio Sul, benevolentes sem serem delirantes de entusiasmo. A maioria dos críticos repetiu o elogio de Beucler com relação a um autor homem de ação, capaz de produzir um livro apesar de sua vida intensa e aventureira, porém também aprovaram o comentário do prefácio, segundo o qual “Saint-Exupéry não é um escritor”.


            Sem prestar atenção a esse reparo, Antoine já começara outro livro antes de partir para a América do Sul, do qual já tinha mostrado as primeiras páginas a Gaston Gallimard. O produto final não seria muito semelhante ao primeiro rascunho. Mais de um ano de vôo intensivo na América do Sul daria forma diferente a Vôo Noturno, um clássico literário que desmentiria magistralmente a leviandade do julgamento de Beucler.


sexta-feira, 4 de agosto de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 31


            Muitos dos trechos mais luminosos de Terra dos Homens foram inspirados na operação de resgate efetuada para encontrar o piloto Reine e o chefe do serviço de rádio da Latécoère, Serre, que estava realizando sua primeira inspeção das bases africanas. No livro aparecem apenas alusões ao que se tramava nos bastidores durante esses três meses de tentativas perigosas e extenuantes para convencer os R’gueibat a soltarem os dois homens. Saint-Exupéry recebeu um telegrama de felicitações pela sua “brilhante conduta” durante a crise, a pior pela qual a Aéropostale passou.

            Esses meses também foram capitais do ponto de vista literário. Durante os vôos de busca foi que o escritor imaginou o cenário que usaria em O Pequeno Príncipe, inspirado em suas aterrissagens em pleno deserto, uma em cima de um planalto e a segunda no meio de dunas de areia sob um céu salpicado de estrelas.

             A provação sofrida por Reine e Serre começou num vôo noturno experimental, que partiu de Agadir rumo ao sul, num aparelho novo, o Latécoère 25. Equipado com uma verdadeira cabine que podia transportar dois aviadores e dois passageiros, a máquina possuía uma autonomia de vôo levemente superior à do Bréguet 14, porém podia transportar uma quantidade quatro vezes maior de frete. Algumas viagens noturnas sem incidentes suscitaram uma excessiva confiança no novo aparelho. O avião, com Reine e Serre a bordo, saiu de Agadir sem a preparação técnica necessária e sem contato pelo rádio. Assim, numa noite de junho de 1928, chegou de forma imprevista a cabo Juby, no meio de uma escuridão total. A aterrissagem pegou Saint-Exupéry desprevenido. Era a primeira noite sem neblina em semanas, e teve de correr para fora de sua choça para organizar a iluminação dos fogos que balizavam a pista.

            Um inspetor, que era um dos passageiros, ordenou a Serre e Reine que continuassem seu vôo rumo ao sul. Naquela hora tardia, Villa Cisneros já interrompera as comunicações pelo rádio. Como na manhã seguinte o avião não tinha estabelecido contato com nenhuma base, supôs-se que tinha caído. Furioso, Saint-Exupéry mandou o irresponsável inspetor fazer as malas, e achou-se no dever de encontrar os destroços depois que alguém o substituísse em cabo Juby. Como o Latécoère não fora visto em nenhum aeroporto em seu itinerário rumo à Mauritânia, Saint-Exupéry juntou-se com dois outros pilotos em Port-Étienne para explorar 1.000 quilômetros de deserto costeiro. Os três aviões voavam a 1 quilômetro uns dos outros, porém o vôo de reconhecimento foi brutalmente interrompido quando o primeiro avião, comandado por Riguelle, foi obrigado a fazer uma aterrissagem forçada, e quando o segundo foi socorrê-lo verificou-se que estava perdendo óleo.

            Na hora do crepúsculo Saint-Exupéry também pousou, e enquanto seu mecânico, Jean-René Lefebvre, encarregava-se dos consertos, os pilotos perdidos construíram um acampamento de emergência, “uma cidade de homens”, utilizando caixas vazias para se protegerem da areia. Ao contrário daquela ocasião em que Saint- Exupéry ficara montando guarda um dia inteiro no deserto, quando Guillaumet e Riguelle tinham-no deixado em território amigo, naquele momento eles estavam correndo extremo perigo. A tripulação encontrava-se em território controlado pelos R’gueibat. No ano anterior, perto daquele local, um piloto francês e um mecânico espanhol tinham sido assassinados, e Saint-Exupéry sabia que um grupo de 300 rebeldes estava acampado nas proximidades, podendo muito bem ter visto os aviões descerem.

            À luz de velas, os pilotos acidentados “sobre a crosta nua do planeta” e seus intérpretes árabes começaram uma noite de vigília que pensavam ser a última. Apesar da ameaça que pairava no ar, a noite teve um gosto de Natal para Saint-Exupéry. Os homens contaram histórias, brincaram e cantaram. Havia uma espécie de atmosfera de festa, e no entanto eles estavam infinitamente desamparados.

            “O vento, a areia e as estrelas. A vida austera dos trapistas. Mas nessa superfície pouco iluminada seis ou sete homens, que não possuíam nada no mundo além das suas lembranças, compartilhavam uma invisível riqueza.”

            Saint-Exupéry ficou tão impressionado com essas palavras quando as escreveu quase dez anos mais tarde, que sua primeira idéia de título para a versão francesa de Terra dos Homens foi Étoiles par Grand Vent. Ele só mudou de idéia ao ler as provas. Quando a edição americana, mais completa, foi publicada, escolheu Wind, Sand and Stars, que inspirou a maioria das traduções.

            A visão idealista de apoio mútuo e de espírito de solidariedade diante do perigo, relatada por Saint-Exupéry após essa “noite de Natal” em pleno deserto, contém o germe da filosofia, freqüentemente ingênua, expressa em seus escritos de guerra e em Cidadela. Dois outros trechos de Terra dos Homens, mais mágicos e nostálgicos, anunciam O Pequeno Príncipe. No primeiro, fala de uma aterrissagem num planalto, a 300 metros de altura, quando tentava entrar em contato com os rebeldes R’guiebat. Ele tinha a intenção de enviar um guia árabe ao encontro dos raptores, porém não era possível descer daquilo que ele denominou um iceberg do deserto, constituído por conchas provenientes de uma época em que o Saara estava coberto pelos oceanos.

            Aquelas poucas léguas de areia que nunca tinham sido pisadas por pé humano algum, que ele viu como uma toalha colocada sob as macieiras do céu noturno, foram uma das fontes da poesia desarmante de O Pequeno Príncipe. A descoberta de pedras pretas da grossura de um punho, que caíram na terra durante milênios, contém o embrião das viagens interplanetárias da fábula que escreveu durante a guerra. As imagens aparecem de forma ainda mais impressionante em outra aventura que ocorreu imediatamente depois dessa aterrissagem de emergência sobre aquele minúsculo mundo fora do tempo. Numa noite em que foi obrigado a pousar no meio das dunas, ficou petrificado pelo fascínio exercido pela profundeza celeste e sentiu-se pregado no solo por uma força desconhecida. Entregando- se “aos encantamentos da minha memória”, sentiu-se fisicamente transportado ao cenário de sua infância.

            Em suas referências às “provisões de doçura” acumuladas em Saint-Maurice-de-Rémens, e à afeição que sentia por Moisy, sua governanta e confidente, podemos vislumbrar o processo de criação que se apossava de Saint-Exupéry, enquanto seu espírito lutava para extrair o sentido dessas emoções fugidias e obcecadas existentes nele. São raros os escritores que admitem sua total impotência para resistir a um feitiço espiritual que não podem explicar. Existe algo de assustador na confissão de um homem possuído pelo seu próprio gênio. “O que acontece comigo, eu não posso dizer”, reconhecia ele.

            Durante os anos seguintes, ele se sujeitaria a essa força invisível ou a combateria com limitado sucesso. Definitivamente, o resultado seria o mesmo. A invasão de sua imaginação pelas recordações, a introspeção tortuosa, sua percepção confusa do destino do homem e a convicção da existência de um poder invisível além da compreensão humana deviam transfigurá-lo e aniquilá-lo. Suas cartas revelam implicitamente que esse constante tormento do espírito repercutia em sua vida íntima, complicando notavelmente suas relações com a esposa, Consuelo, e provocando mudanças imprevisíveis, nas quais passava da felicidade e confiança supremas à depressão suicida e ao ciúme.


            As recordações das extensões áridas do deserto, bem como o longínquo cenário de sua infância, tornaram-se um refúgio nos períodos de melancolia. Ele prevê a tristeza que lhe causará o afastamento da solidão do Saara numa carta a Charles Sallès, antes de abandonar definitivamente cabo Juby em novembro de 1928. Nela, Saint-Exupéry diz ao amigo que tinha experimentado a vida austera da aventura e que achava que já não seria capaz de se esforçar para ser feliz outra vez. Comparava o sabor de sua vida no árido Saara espanhol com o do fruto proibido. Ele logo seria expulso do paraíso, exatamente como fora expulso daquele outro Éden, o parque de Saint-Maurice, e durante o resto da vida tentaria reencontrar essa terra rica em valores eternos.


quinta-feira, 3 de agosto de 2017

O PEQUENO PRÍNCIPE - 17


             XVI

                    Então, a sétima parada foi a Terra...

            A Terra não é somente mais um planeta ordinário! Lá podemos contar 111 reis (não esquecendo, claro, dos reis africanos), 7 mil geógrafos, 900 mil homens de negócios, 7 milhões e 500 mil embriagados e 311 milhões de pessoas vaidosas - ou seja, muita gente. O número de pessoas grandes morando por lá chega a casa dos 2 bilhões [nota do tradutor: lembrem-se de que este livro foi escrito na primeira metade do século 20]...

            Para lhes dar uma ideia do tamanho da Terra, devo dizer que antes da invenção da eletricidade era necessário manter, ao longo de todos os seis continentes, um verdadeiro exército de 462.511 acendedores de lamparinas para os postes de luz nas ruas.

            Visto de alguma distância, isto dava um grande espetáculo. Os movimentos desse exército seguiam um ritmo específico, como um balé de ópera:

            Primeiro era a vez dos cuidadores da Austrália e da Nova Zelândia acenderem os seus postes, e então podiam ir dormir. A seguir, os acendedores da China e da Sibéria entravam em cena para dar os seus passos na dança, e então eles também retomavam aos bastidores.

            Depois chegava a vez dos acendedores de lamparinas da Rússia e da índia; então aqueles da África e da Europa; logo após aqueles da América do Sul; quase ao mesmo tempo, os da América do Norte.

             E, dessa forma, eles nunca erravam a sua hora de entrar no palco. Era de fato um espetáculo magnífico!

            Já quanto ao sujeito cuidando do único poste de luz do Polo Norte, assim como o seu colega, responsável pela única lamparina do Polo Sul, somente os dois viviam uma vida livre do cuidado diário com suas lamparinas: eles só precisavam trabalhar duas vezes ao ano.





             XVII

            Quando queremos fazer graça, às vezes acabamos nos desviando um pouco da verdade. Eu não tenho sido completamente honesto sobre o que lhes disse acerca dos acendedores de lamparinas, e compreendo que corro o risco de dar uma falsa ideia de nosso planeta aqueles que não o conhecem.

            Na verdade, os homens ocupam um espaço bem pequeno sobre a Terra. Acaso as duas bilhões de pessoas que habitam a sua superfície estivessem todas de pé e próximas umas das outras, como por vezes fazem quando vão a algum grande evento, elas caberiam facilmente numa única praça pública com trinta quilômetros de comprimento por trinta de largura. De fato, poderíamos espremer toda a humanidade numa ilhazinha do Pacífico, se fosse o caso.

            As pessoas grandes, obviamente, jamais acreditarão em você se lhes contar isso. Elas imaginam ocupar um espaço bem extenso de terra. Elas se julgam tão importantes quanto os baobás. No caso de duvidarem de você, portanto, aconselhe-as a fazer os seus próprios cálculos. Elas adoram fazer cálculos, então ficarão bem contentes com isso.

            Mas não percam o seu tempo com esse trabalhinho extra. E totalmente desnecessário, já que, como bem sei, vocês confiam em mim.

            Quando o pequeno príncipe chegou a Terra, ficou um tanto surpreso por não encontrar pessoa alguma nas redondezas. Ele já estava começando a temer ter vindo ao planeta errado, quando algo meio dourado, com um pouco da cor da lua, serpenteou pela areia.

            "Boa noite”, disse, cordialmente, o pequeno príncipe.

            "Boa noite”, respondeu a serpente.

            “Que planeta é este em que desci?”

            "Aqui é a Terra; e estamos na África."

            "Ah! Então não existem pessoas na Terra?”

            “Estamos no meio do deserto, não há pessoas por aqui. Mas a Terra é bastante larga”, explicou a serpente.

            O viajante pequenino se sentou sobre uma pedra, e elevou o olhar em direção ao céu:

            “Por vezes imagino se as estrelas não são acesas no céu para que cada um de nós um dia possa encontrar a sua própria estrela novamente... Veja ali o meu planetinha. Está logo acima da gente, mas quão, quão distante!”

            "É muito bonito... Mas, o que lhe trouxe até tão longe de lá?”

            "Eu venho tendo alguns problemas com uma flor”, explicou o pequeno príncipe.

            "Ah!", disse a serpente.

            E então, ambos ficaram em silêncio...



             “Onde estão as outras pessoas?”, o pequeno príncipe finalmente retomou a conversa. "Estamos meio sós aqui no deserto...”

            “Também há solidão entre as pessoas”, disse a serpente.

            O pequeno príncipe a encarou por um longo tempo...

            “Você é um animal engraçado”, disse ele. "É fina como um dedo...”

            “Mas sou mais poderosa do que o dedo de um rei.”

            O pequeno príncipe sorriu.

            “Você não é assim tão poderosa. Sequer tem pés, não pode nem viajar...”

            “Eu posso lhe carregar mais longe do que qualquer navio.”

            E, tendo dito isso, se enrolou toda no tornozelo do pequeno príncipe, como um bracelete dourado:

            “Quem quer que eu toque, mando de volta para a terra de onde veio”, disse a serpente. "Mas você, você é puro e verdadeiro. E, ademais, você veio de uma estrela...”

            O pequeno príncipe não respondeu.

            “Você me dá certa pena. É tão frágil para esta Terra feita de granito... Um dia, posso lhe ajudar. Se por acaso tiver muita saudade do seu planetinha, eu poderia..."

            "Oh! Mas eu a compreendo muito bem", disse o pequeno príncipe. "Mas por que você sempre fala através de enigmas?"

            “Eu resolvo todos eles", disse a serpente.

            E então, ambos ficaram em silêncio...





             XVIII

            O pequeno príncipe atravessou o deserto e encontrou apenas uma única flor. Era uma flor com três pétalas, a toa em meio a vastidão de areia...



             "Bom dia", disse o pequeno príncipe.

            "Bom dia", disse a flor.

            “Onde estão as pessoas?", perguntou com educação.

            Aquela flor tinha visto um dia a passagem de uma caravana:

            "Pessoas? Bem, eu acredito que existam umas seis ou sete delas... Eu as vi, mas isso foi há muitos anos atrás. No entanto, nunca se sabe onde poderemos encontrá-las. Afinal, o vento as sopra para longe, pois elas não têm raízes - isto toma a sua vida um tanto complicada.”

            “Adeus", disse o pequeno príncipe.

            "Adeus", disse a flor.





             XIX

            Depois daquele encontro, o pequeno príncipe decidiu escalar uma grande montanha. As únicas montanhas que havia conhecido até então eram os seus três vulcões, que mal batiam na altura dos seus joelhos. O vulcão inativo era tão pequenino que ele por vezes o usava de banquinho.

            "De uma montanha tão alta como essa", pensava consigo mesmo, "eu certamente poderei ver todo o planeta e todas as pessoas de uma só vez...”



             Mas não conseguiu ver quase nada, exceto alguns picos rochosos que mais pareciam agulhas afiadas.

            "Bom dia", disse, na esperança de haver alguém pelas redondezas.

            "Bom dia... Bom dia... Bom dia...” respondeu o eco.

            "Quem é você?"

            "Quem é você... Quem é você... Quem é você?", respondeu o eco.

            “Seja meu amigo, eu estou só...”

            "Eu estou só... Eu estou só... Eu estou só...", respondeu o eco.

            "Que planeta estranho!", pensou. "É todo seco, pontiagudo, áspero e ameaçador. E aqui as pessoas não têm imaginação, apenas repetem o que quer que digamos a elas... Em meu planetinha eu tinha uma flor; ela era sempre a primeira a falar...”





             XX

            Mas ocorreu que, após caminhar um longo tempo através de areia, pedras e neve, o pequeno príncipe finalmente acabou chegando a uma estrada. E, como sabemos, todas as estradas levam até onde as pessoas moram.

            "Bom dia", ele disse.

            Estava em frente a um jardim cheio de rosas:

            “Bom dia”, disseram as rosas.

            O viajante pequenino as contemplou intrigado - todas elas se pareciam com a sua flor.



             "Quem são vocês?”, ele exigiu explicações.

            "Nós somos as rosas”, disseram elas.

            E então ele foi inundado de tristeza. Afinal, a sua flor havia lhe dito que ela era a única da sua espécie em todo o universo... Mas lá estavam cinco mil delas, iguaizinhas, num único jardim!

            “Ela ficaria um tanto chateada”, disse para si mesmo, "se visse tal jardim... Sem dúvida iria tossir terrivelmente, e fingir que está morrendo, para evitar o ridículo. E eu seria obrigado a fingir cuidar dela, para que retomasse a vida - pois se eu não fingisse, era bem capaz de que ela se deixasse levar pela morte...”

            E assim, ele prosseguiu com suas reflexões: "Eu pensei que era rico, com uma flor que era única em todo o mundo; e tudo o que tinha era uma rosa comum. Uma rosa comum, e três vulcões que mal chegavam à altura dos meus joelhos - e um deles talvez inativo para sempre... Isso não faz de mim um príncipe tão grandioso...”

            Então, ele se deitou na relva e chorou.


           


            

A VIDA DE SAINT- EXUPÉRY - 30


            Em cabo Juby, Saint-Exupéry passava a maior parte do tempo lendo obras técnicas e manuais de filosofia trazidos pelos colegas. Tinha o costume de presenteá-los com os mais variados cursos, de geometria a metafísica. Se isso os aborrecia, convidava-os para jogar baralho, em que adquirira um domínio quase profissional, mantendo constantemente o senso de humor, num ambiente rico em brincadeiras das quais freqüentemente era a vítima. Henry Delaunay lembra-se que Saint-Exupéry possuía grande capacidade de zombar de si mesmo, fazendo os mecânicos rolarem de rir. Outras testemunhas negam essa imagem, dizendo que ele se ofendia ao ser objeto de brincadeiras, mas isso passava rapidamente.

            Saint-Exupéry não era apenas diplomata, diretor de base e animador de reuniões; acima de tudo, tinha de proteger os pilotos da selvageria das tribos nômades em caso de acidente. Ao realizar com êxito essa missão, assentava as bases de uma filosofia segundo a qual todos os homens vivem em dependência mútua, sem motivo de exclusão nem conflitos raciais. Conseguiu ser bem-sucedido nessa ação permanente de salvamento em pleno deserto graças a seu instinto e a seu temperamento particular. Em primeiro lugar era preciso fazer alianças, e, após ter “domesticado” os espanhóis com freqüentes visitas ao forte e numerosas partidas de baralho ou xadrez, superou a hostilidade das tribos árabes, tratando-as com um respeito que não era comum nos europeus.

            Seus primeiros amigos foram as crianças seminuas e subalimentadas que viviam nos acampamentos em volta do forte. Ele lhes dava chocolates e biscoitos. Para elas, Antoine era o comandante dos pássaros. A franqueza e a generosidade de Saint-Exupéry também lhe permitiram estabelecer vínculos de amizade com as tribos hostis aos espanhóis confinados no forte; esta estima aumentou ainda mais porque iniciou cursos de árabe na tenda dos chefes. Sua influência crescera pela facilidade de usar o dinheiro da companhia para pagar intérpretes que viajavam nos aviões do correio. Um de seus maiores sucessos foi reunir fundos suficientes para libertar um escravo chamado Bark, como conta em Terra dos Homens.

            No verão de 1928, Saint-Exupéry selara uma aliança com a tribo menos hostil, os Irzaguin, que lhe forneceu escoltas armadas em diversas missões no deserto. Mais tarde, conseguiu uma paz precária com outros chefes guerreiros rivais, apesar dos freqüentes ataques das tropas francesas fora do enclave espanhol. Mas nunca conseguiu um acordo com os R’gueibat, a mais belicosa das tribos nômades. Suspeitava-se de que os espanhóis lhes forneciam munição para de- sestabilizar os interesses da França, porém a maioria de suas armas era comprada com o dinheiro dos resgates que obtinham ao capturar pilotos franceses.

            Todas as manhãs, a primeira tarefa de Saint-Exupéry era realizar vôos de manutenção, a fim de evitar os efeitos da condensação sobre a mecânica dos aviões. Geralmente voava durante uma hora, aumentando gradualmente seu raio de reconhecimento, até conhecer os arredores de cabo Juby bem melhor que a guarnição espanhola. Algumas vezes levava consigo algum chefe de tribo, esperando impressioná-lo. Aproveitava essas saídas para identificar as pistas de emergência e vigiar os deslocamentos dos rebeldes. Havia muitos acidentes aéreos no deserto e, com freqüência, os pilotos eram torturados antes do pagamento do resgate. Saint-Exupéry chegou a cabo Juby consciente dos atrozes assassinatos perpetrados pelos guerreiros; alguns deles se vingavam de ataques efetuados pela aviação militar francesa, que operava com aviões semelhantes aos da Aéropostale. Poucas máquinas conseguiam penetrar no espaço aéreo desse enclave espanhol desértico sem se tornarem alvo das balas de um bando árabe.

            Alguns meses antes de chegar a cabo Juby, Saint-Exupéry teve uma amostra dos perigos que o esperavam ao acompanhar, como passageiro, o piloto René Riguelle. Henri Guillaumet escoltava-os em outro avião, de acordo com a ordem estrita da companhia, que proibia vôos solitários. Isso aconteceu pouco após a morte de um aviador francês e de um mecânico espanhol. Outro piloto francês, capturado no mesmo episódio, tentou suicidar-se para escapar da tortura e morreu pouco tempo depois de ter sido solto. Os dois destroços calcinados dos Bréguet ainda eram claramente visíveis do céu.

            Ao extremo sul do enclave espanhol, o motor de Riguelle explodiu, e ele teve de fazer um pouso forçado. Guillaumet deu meia- volta para vir ajudá-lo, e a maioria das sacolas de correio foi transferida para seu aparelho. Enquanto Saint-Exupéry montava guarda ao lado dos sacos restantes e do avião danificado, Riguelle e Guillaumet decolavam em busca de socorro. Armado com as pistolas dos companheiros, Saint-Exupéry escavou na duna uma posição defensiva, pronto a lutar por sua vida e pelo correio. Ficou de sentinela durante horas, esperando um ataque dos guerreiros do sul que recentemente tinham capturado e pedido resgate pelo seu amigo Jean Mermoz.

            Após ter colocado os revólveres e cinco pentes de balas em cima da areia, sentiu-se pela primeira vez dono de sua própria vida e, à medida que o dia passava, foi invadido pelo mistério e pelo perigo do Saara. Em Wind, Sand and Stars, declarou que ficara enfeitiçado por algo intangível e desconhecido. Era o amor pelo Saara, que, como o próprio amor, nasce de um rosto que percebemos sem nunca tê-lo visto realmente. “Após essa primeira visão de seu novo amor, estabelece-se para sempre um vínculo indefinível entre a pessoa e a areia revestida de ouro pelo sol poente”, escreveu ele.

             Ao crepúsculo, quando seus colegas regressaram, revelaram-lhe que não havia mesmo nenhum motivo de inquietação. Eles tinham esquecido de dizer-lhe que estava em território francês pacificado, no qual poderia permanecer muitos meses sem qualquer perigo. Na edição francesa, Saint-Exupéry não menciona esse fato nem a revelação de sua paixão pelo Saara.

            Após o conserto dos motores, os três pilotos passaram a noite ao ar livre no terraço de um forte colonial, perto da atual cidade de Nouakchott, capital da Mauritânia. Esse posto militar avançado era guardado por quinze indígenas e apenas um sargento francês. O suboficial sentia saudade da pátria e não podia superar a vergonha de não ter tido vinho na adega para festejar a visita de um capitão, alguns meses antes.

            Naquela noite, os três amigos escutaram o sargento “falar das estrelas”. Enquanto Saint-Exupéry contemplava o céu mágico do deserto, seu amor pela Saara aumentava e ele lamentou que a noite não durasse 1.000 anos. Em Terra dos Homens, diante da pergunta: “O que é o deserto para nós?”, ele responde: “Era o que nascia em nós. Aquilo que aprendíamos sobre nós mesmos.”

            Em julho de 1928, Saint-Exupéry já não tinha nada do rapaz desajeitado e tímido encontrado por Didier Daurat quase dois anos antes. Tornara-se um chefe respeitado, que adquirira suficiente confiança em si mesmo para contornar algumas vezes o regulamento da companhia e tomar iniciativas. Sua despreocupação com relação às instruções da Aéropostale manifestou-se de maneira particularmente espetacular quando fez uma tentativa, coroada de sucesso, de recuperar um avião abatido em território inimigo.

            Em 18 de julho, Riguelle foi obrigado a aterrissar a 30 quilômetros ao sul da base, num setor onde os rebeldes tinham capturado e pedido resgate por um piloto espanhol alguns meses antes. Enquanto Riguelle era levado são e salvo a cabo Juby pelo piloto que o escoltava, Saint-Exupéry começava a se preparar para recuperar o aparelho danificado, numa operação sem precedentes, como escreveu no seu relatório. Após dois dias de negociações com árabes pouco entusiasmados, tinha preparado uma escolta armada de quinze homens para conduzi-lo até o avião caído.

            Em companhia de um mecânico, Saint-Exupéry montou a cavalo e pôs-se à frente de uma estranha caravana composta por seis cavalos, dois asnos, um camelo que transportava a bagagem e outros dois que puxavam uma carroça improvisada para transportar um motor  sobressalente. “Pela primeira vez um camelo é utilizado como animal de tração, pelo menos aqui”, escreveu no relatório oficial, um dos múltiplos relatos de sua expedição.

            Apesar da ameaça de um ataque árabe, Saint-Exupéry fiscalizou a preparação de uma pista de 90 metros de comprimento, com uma rampa. Enquanto o mecânico trabalhava no motor, o destacamento mouro, composto de Irzaguin, entrou em pânico ao escutar tiros de arma de fogo de um grupo rival, os Alt toussa. Doze Irzaguin tinham sido mortos recentemente durante um ataque dessa tribo, e logo inventaram uma desculpa para abandonar a operação de resgate do avião. Um mensageiro árabe disse que o comandante da guarnição de cabo Juby ordenara a retirada, e a pequena caravana teria de regressar sem terminar os consertos.

            Em seu relatório, Saint-Exupéry explica que os homens da escolta só aceitaram voltar ao avião acidentado após terem sido “feridos no amor próprio”, alusão que explica numa carta a Yvonne de Les- trange. Ele incentivou os guerreiros dizendo-lhes que se sentiria mais feliz com um grupo de mulheres.

            De acordo com seu relatório e cartas posteriores, Antoine dava a impressão de ter tentado o resgate para testar sua própria coragem. Dois aviões espanhóis sobrevoaram seu acampamento para preveni-lo que os rebeldes árabes estavam se aproximando, porém ele não levou a advertência em consideração e passou o dia inteiro defendendo suas posições em volta do avião sob fogo inimigo. Enquanto os homens permaneciam achatados no solo ou deslocavam-se rastejando, Saint-Exupéry desafiava os atiradores passeando nas dunas. Numa carta a Raymond Vanier, o representante da Aéropostale em Dacar, qualificou seu batismo de fogo de “magnífico”. O pouco caso que aparentemente fazia de sua própria segurança incentivou as equipes de resgate a terminar os trabalhos na pista e, por volta das 5 horas da tarde, Saint-Exupéry pôde reconduzir o avião a cabo Juby com o mecânico como passageiro.

            Num bilhete a Didier Daurat, Saint-Exupéry contava que os espanhóis tinham utilizado um navio de guerra para proteger uma operação de salvamento de um avião acidentado na praia perto de cabo Juby, enquanto seu técnico e ele tinham passado dois dias e duas noites em território inimigo para recuperar um aparelho da companhia. Essa pequena demostração de bravura literária estava acompanhada de um pedido de não levar em consideração o custo da intervenção, devido à impossibilidade de fornecer recibos.

             Posteriormente, pareceu constrangido pelo prazer pueril que sentira ao brincar de guerreiro no deserto. O prefácio de André Gide em Vôo Noturno reproduz um trecho de uma carta de Saint- Exupéry que menciona esse incidente. O texto original figurava numa carta a Yvonne de Lestrange, na qual Antoine escrevia que tinha ouvido o assobio das balas nas orelhas pela primeira vez na vida e estava orgulhoso de ter mantido o sangue frio muito melhor que seus homens. Mas esse incidente lhe fizera compreender por que Platão colocava a coragem física em último lugar na lista das virtudes humanas. “Ela não é feita de belos sentimentos: um pouco de raiva, um pouco de vaidade, muita teimosia e um vulgar prazer esportivo”, precisava ele. “Nunca mais admirarei um homem que seja apenas corajoso.”

            A verdade talvez seja simplesmente que a façanha não despertou grande interesse por parte dos colegas, que eram blasés em matéria de aventuras. Mais tarde Saint-Exupéry admitiu que sua batalha das dunas limitara-se a três tiros de carabina disparados a uma boa distância. Seus amigos aviadores mostraram-se mais elogiosos após uma operação muito mais importante liderada por Saint-Exupéry, na qual ele revelou uma capacidade insuspeita de habilidade, perseverança e diplomacia. Essa missão de busca, que durou três meses, está relacionada com dois aviadores abatidos, Marcei Reine e Édouard Serre.