Muitos
dos trechos mais luminosos de Terra dos Homens foram inspirados na operação de
resgate efetuada para encontrar o piloto Reine e o chefe do serviço de rádio da
Latécoère, Serre, que estava realizando sua primeira inspeção das bases
africanas. No livro aparecem apenas alusões ao que se tramava nos bastidores
durante esses três meses de tentativas perigosas e extenuantes para convencer
os R’gueibat a soltarem os dois homens. Saint-Exupéry recebeu um telegrama de
felicitações pela sua “brilhante conduta” durante a crise, a pior pela qual a
Aéropostale passou.
Esses
meses também foram capitais do ponto de vista literário. Durante os vôos de
busca foi que o escritor imaginou o cenário que usaria em O Pequeno Príncipe,
inspirado em suas aterrissagens em pleno deserto, uma em cima de um planalto e
a segunda no meio de dunas de areia sob um céu salpicado de estrelas.
A provação sofrida por Reine e Serre começou
num vôo noturno experimental, que partiu de Agadir rumo ao sul, num aparelho
novo, o Latécoère 25. Equipado com uma verdadeira cabine que podia transportar
dois aviadores e dois passageiros, a máquina possuía uma autonomia de vôo
levemente superior à do Bréguet 14, porém podia transportar uma quantidade
quatro vezes maior de frete. Algumas viagens noturnas sem incidentes suscitaram
uma excessiva confiança no novo aparelho. O avião, com Reine e Serre a bordo,
saiu de Agadir sem a preparação técnica necessária e sem contato pelo rádio.
Assim, numa noite de junho de 1928, chegou de forma imprevista a cabo Juby, no
meio de uma escuridão total. A aterrissagem pegou Saint-Exupéry desprevenido.
Era a primeira noite sem neblina em semanas, e teve de correr para fora de sua
choça para organizar a iluminação dos fogos que balizavam a pista.
Um
inspetor, que era um dos passageiros, ordenou a Serre e Reine que continuassem
seu vôo rumo ao sul. Naquela hora tardia, Villa Cisneros já interrompera as
comunicações pelo rádio. Como na manhã seguinte o avião não tinha estabelecido
contato com nenhuma base, supôs-se que tinha caído. Furioso, Saint-Exupéry mandou
o irresponsável inspetor fazer as malas, e achou-se no dever de encontrar os
destroços depois que alguém o substituísse em cabo Juby. Como o Latécoère não
fora visto em nenhum aeroporto em seu itinerário rumo à Mauritânia,
Saint-Exupéry juntou-se com dois outros pilotos em Port-Étienne para explorar
1.000 quilômetros de deserto costeiro. Os três aviões voavam a 1 quilômetro uns
dos outros, porém o vôo de reconhecimento foi brutalmente interrompido quando o
primeiro avião, comandado por Riguelle, foi obrigado a fazer uma aterrissagem
forçada, e quando o segundo foi socorrê-lo verificou-se que estava perdendo
óleo.
Na
hora do crepúsculo Saint-Exupéry também pousou, e enquanto seu mecânico, Jean-René
Lefebvre, encarregava-se dos consertos, os pilotos perdidos construíram um
acampamento de emergência, “uma cidade de homens”, utilizando caixas vazias
para se protegerem da areia. Ao contrário daquela ocasião em que Saint- Exupéry
ficara montando guarda um dia inteiro no deserto, quando Guillaumet e Riguelle
tinham-no deixado em território amigo, naquele momento eles estavam correndo
extremo perigo. A tripulação encontrava-se em território controlado pelos
R’gueibat. No ano anterior, perto daquele local, um piloto francês e um
mecânico espanhol tinham sido assassinados, e Saint-Exupéry sabia que um grupo de
300 rebeldes estava acampado nas proximidades, podendo muito bem ter visto os
aviões descerem.
À
luz de velas, os pilotos acidentados “sobre a crosta nua do planeta” e seus intérpretes
árabes começaram uma noite de vigília que pensavam ser a última. Apesar da
ameaça que pairava no ar, a noite teve um gosto de Natal para Saint-Exupéry. Os
homens contaram histórias, brincaram e cantaram. Havia uma espécie de atmosfera
de festa, e no entanto eles estavam infinitamente desamparados.
“O
vento, a areia e as estrelas. A vida austera dos trapistas. Mas nessa
superfície pouco iluminada seis ou sete homens, que não possuíam nada no mundo
além das suas lembranças, compartilhavam uma invisível riqueza.”
Saint-Exupéry
ficou tão impressionado com essas palavras quando as escreveu quase dez anos
mais tarde, que sua primeira idéia de título para a versão francesa de Terra
dos Homens foi Étoiles par Grand Vent.
Ele só mudou de idéia ao ler as provas. Quando a edição americana, mais
completa, foi publicada, escolheu Wind,
Sand and Stars, que inspirou a maioria das traduções.
A
visão idealista de apoio mútuo e de espírito de solidariedade diante do perigo,
relatada por Saint-Exupéry após essa “noite de Natal” em pleno deserto, contém
o germe da filosofia, freqüentemente ingênua, expressa em seus escritos de
guerra e em Cidadela. Dois outros trechos de Terra dos Homens, mais mágicos e
nostálgicos, anunciam O Pequeno Príncipe. No primeiro, fala de uma aterrissagem
num planalto, a 300 metros de altura, quando tentava entrar em contato com os
rebeldes R’guiebat. Ele tinha a intenção de enviar um guia árabe ao encontro
dos raptores, porém não era possível descer daquilo que ele denominou um iceberg
do deserto, constituído por conchas provenientes de uma época em que o Saara
estava coberto pelos oceanos.
Aquelas
poucas léguas de areia que nunca tinham sido pisadas por pé humano algum, que
ele viu como uma toalha colocada sob as macieiras do céu noturno, foram uma das
fontes da poesia desarmante de O Pequeno Príncipe. A descoberta de pedras
pretas da grossura de um punho, que caíram na terra durante milênios, contém o
embrião das viagens interplanetárias da fábula que escreveu durante a guerra.
As imagens aparecem de forma ainda mais impressionante em outra aventura que
ocorreu imediatamente depois dessa aterrissagem de emergência sobre aquele
minúsculo mundo fora do tempo. Numa noite em que foi obrigado a pousar no meio
das dunas, ficou petrificado pelo fascínio exercido pela profundeza celeste e
sentiu-se pregado no solo por uma força desconhecida. Entregando- se “aos
encantamentos da minha memória”, sentiu-se fisicamente transportado ao cenário
de sua infância.
Em
suas referências às “provisões de doçura” acumuladas em Saint-Maurice-de-Rémens,
e à afeição que sentia por Moisy, sua governanta e confidente, podemos
vislumbrar o processo de criação que se apossava de Saint-Exupéry, enquanto seu
espírito lutava para extrair o sentido dessas emoções fugidias e obcecadas
existentes nele. São raros os escritores que admitem sua total impotência para
resistir a um feitiço espiritual que não podem explicar. Existe algo de assustador
na confissão de um homem possuído pelo seu próprio gênio. “O que acontece
comigo, eu não posso dizer”, reconhecia ele.
Durante
os anos seguintes, ele se sujeitaria a essa força invisível ou a combateria com
limitado sucesso. Definitivamente, o resultado seria o mesmo. A invasão de sua
imaginação pelas recordações, a introspeção tortuosa, sua percepção confusa do
destino do homem e a convicção da existência de um poder invisível além da
compreensão humana deviam transfigurá-lo e aniquilá-lo. Suas cartas revelam
implicitamente que esse constante tormento do espírito repercutia em sua vida
íntima, complicando notavelmente suas relações com a esposa, Consuelo, e
provocando mudanças imprevisíveis, nas quais passava da felicidade e confiança
supremas à depressão suicida e ao ciúme.
As
recordações das extensões áridas do deserto, bem como o longínquo cenário de
sua infância, tornaram-se um refúgio nos períodos de melancolia. Ele prevê a
tristeza que lhe causará o afastamento da solidão do Saara numa carta a Charles
Sallès, antes de abandonar definitivamente cabo Juby em novembro de 1928. Nela,
Saint-Exupéry diz ao amigo que tinha experimentado a vida austera da aventura e
que achava que já não seria capaz de se esforçar para ser feliz outra vez.
Comparava o sabor de sua vida no árido Saara espanhol com o do fruto proibido.
Ele logo seria expulso do paraíso, exatamente como fora expulso daquele outro
Éden, o parque de Saint-Maurice, e durante o resto da vida tentaria reencontrar
essa terra rica em valores eternos.
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