XVI
É pesada a nossa experiência de
estrada! Às vezes, temos por missão dar uma olhada, numa mesma manhã, sobre a
Alsácia, a Bélgica, a Holanda, o norte da França e o mar. Mas a maior parte dos
nossos problemas é terrestre e nosso horizonte, mais frequentemente, encolhe
até se limitar ao engarrafamento de um cruzamento! Assim, faz três dias somente
que vimos ruir, Dutertre e eu, a vila em que morávamos.
Eu
nunca me livrarei, provavelmente, dessa lembrança viscosa. Dutertre e eu, por
volta das seis horas da manhã, deparamos, saindo de nossa casa, com uma
desordem inexprimível. Todas as garagens, todos os galpões, todos os celeiros
vomitaram nas ruas estreitas as engenhocas mais disparatadas, os carros novos e
as velhas carroças que havia cinquenta anos dormiam, obsoletas, na poeira, as
charretes de feno e os caminhões, os ônibus e os basculantes. Daria para
encontrar, nessa feira, procurando-se bem, até diligências! Tudo quanto era
caçamba sobre rodas foi exumada. Dentro delas despejam os tesouros das casas.
Esses são carregados para os carros em trouxas perfuradas de hérnias,
amontoados de qualquer jeito. E já não se parecem com mais nada.
Eles
compunham o perfil da casa. Eram os objetos de um culto de religiões
particulares. Cada um no seu lugar, tomados necessários pelos hábitos,
embelezados pelas lembranças, valiam pela pátria íntima para cuja fundação
contribuíam. Mas os julgaram preciosos por si mesmos, os arrancaram de sua
lareira, de sua mesa, de sua parede, os empilharam confusamente, e já não
passam de objetos de bazar que demonstram seu desgaste. As relíquias piedosas,
se as empilharmos, enojam!
Alguma
coisa já se decompõe diante de nós.
—
Vocês estão loucos, aqui! O que está acontecendo?
A
dona do café aonde nós vamos dá de ombros: evacuamos.
—
Por quê? Meu Deus!
—A
gente não sabe. O prefeito disse.
Ela
está muito ocupada. Precipita-se pela escadaria. Nós contemplamos a rua,
Dutertre e eu. A bordo dos caminhões, dos carros, carroças, charretes de banco,
é uma mistura de crianças, colchões e utensílios de cozinha.
Os
carros velhos, principalmente, estão lastimáveis.
Um
cavalo em bom estado entre as padiolas de uma charrete dá uma sensação de
saúde. Um cavalo não exige peças de reposição. Uma charrete se conserta com
três pregos. Mas todos esses vestígios de uma era mecânica! Esses conjuntos de
pistões, válvulas, bobinas e engrenagens, até quando vão funcionar?
—
Capitão, o senhor poderia me ajudar?
—
Claro. Com o quê?
—
A tirar meu carro da garagem...
Eu
a olho, estupefato:
—
A senhora não sabe dirigir?
— Oh! Na estrada, vai dar. É mais fácil...
Estão
ela, a cunhada e as sete crianças...
Na
estrada! Na estrada ela avançará vinte quilômetros por dia em etapas de
duzentos metros! A cada duzentos metros, terá de frear, parar, desengatar,
engatar, mudar de marcha na confusão de um engarrafamento inextricável. Ela vai
quebrar tudo! E a gasolina, que vai faltar! E o óleo! E a água que ela vai
esquecer:
—
Cuidado com a água. Seu radiador está vazando feito uma peneira!
—
Ah! O carro não é novo...
—
A senhora precisaria andar oito dias... Como vai conseguir?
—
Não sei...
A
menos de dez quilômetros daqui, ela terá já abalroado três carros, arranhado a
embreagem, furado os pneus. Então ela, a cunhada e as sete crianças começarão a
chorar. Então ela, a cunhada e as sete crianças, submetidas a problemas acima
de suas forças, renunciarão a decidir sobre o que quer que seja e vão sentar-se
à margem da estrada para esperar um pastor. Mas os pastores... Faltam pastores,
barbaramente! Nós assistimos, Dutertre e eu, a iniciativas de carneiros. E
esses carneiros se vão numa balbúrdia formidável de material mecânico. Três mil
pistões. Seis mil válvulas. Todo esse material range, raspa e bate. A água
ferve em alguns radiadores. É assim que começa a andar, laboriosamente, essa
caravana condenada! Essa caravana sem peças de reposição, sem pneus e sem
gasolina, sem mecânicos. Que demência!
—
A senhora não poderia ficar em casa?
— Ah! Bem que a gente preferia ficar em casa!
—
Então por que partir?
—
Disseram...
—
Quem disse?
—
O prefeito.
Sempre
o prefeito.
—
Claro. Todo mundo preferia ficar em casa.
Exato.
Nós não respiramos aqui uma atmosfera de pânico, mas uma atmosfera de fardo
cego. Dutertre e eu aproveitamos para sacudir uns e outros:
—
É melhor o senhor desembarcar tudo isso. O senhor ao menos beberá a água das
fontes.
—
Certeza que faríamos melhor.
—
Mas vocês são livres.
Ganhamos
a partida. Um grupo se formou. Escutam-nos. Balançam a cabeça em aprovação.
—
Tem razão, o Capitão!
Discípulos
repercutem o que digo. Converti um acantonado que se mostra mais ardente do que
eu:
—
Eu sempre falei! Chegando na estrada, vamos comer pedra.
Eles
conversam. Estão de acordo. Ficarão. Alguns se afastam para pregar aos outros.
Mas voltam desencorajados:
—
Não adianta. Somos obrigados a partir também.
—
Porquê?
—
O padeiro foi embora. Quem vai fazer o pão?
A
cidade já debandou. Furou aqui e acolá. Tudo vai correr pelo mesmo buraco. Sem
esperanças.
Dutertre
tem sua ideia:
— O drama é que fizeram os homens acreditar
que a guerra era anormal. Antigamente, ficavam em casa. A guerra e a vida se
misturavam...
A
dona do café reaparece. Ela arrasta um saco.
—
Vamos decolar em uma hora. A senhora tem um pouco de café?
—
Ah! Pobres moços...
Ela
enxuga os olhos. Ah! Ela não chora por nós. Nem por si mesma. Ela já chora de
esgotamento. Ela já se sente tragada pela penúria de uma caravana que, a cada
quilômetro, desmoronará um pouco mais.
Mais
longe, no acaso dos campos, de tempos em tempos, caças inimigos voando baixo
lançarão uma rajada de metralhadoras sobre esse lamentável rebanho. 0 mais
surpreendente, porém, é que, normalmente, eles não insistem. Alguns carros
ardem, mas pouco. E poucos mortos. É uma espécie de luxo, alguma coisa como um
conselho. Ou o gesto de um cão que morde a canela para acelerar o rebanho.
Aqui, é para semear a desordem. Mas então, por que essas ações locais,
esporádicas, de pouco efeito? O inimigo faz pouco esforço para dispersar a
caravana. É verdade que esta não precisa dele para desmoronar. A máquina des
regula-se espontaneamente. A máquina é concebida para uma sociedade tranquila,
calma, que dispõe de todo o seu tempo. A máquina, quando o homem não está mais
ali para remendar, regular, lubrificar, envelhece num ritmo vertiginoso. Esses
carros, esta noite, parecerão ter mil anos.
Parece-me
assistir à agonia da máquina.
Aquele
ali toca seu cavalo com a majestade de um rei.
Entroniza-se, deslumbrado, em seu banco.
Suponho, aliás, que ele tenha tomado um trago:
—
O senhor parece contente!
—
É o fim do mundo!
Sinto
um surdo mal-estar ao pensar que todos esses trabalhadores, todas essas pessoas
humildes, de funções tão bem definidas, qualidades tão diversas e tão
preciosas, não passarão, esta noite, de parasitas e vermes.
Vão
espalhar-se nos campos e devorá-los.
—
Quem vai alimentá-los?
—
A gente não sabe...
Como
abastecer os milhões de emigrantes perdidos ao longo das estradas, onde se anda
de cinco a vinte quilômetros por dia? Se houvesse abastecimento, seria
impossível encaminhá-lo!
Essa
mistura de humanidade e sucata me faz lembrar o deserto da Líbia. Morávamos,
Prévot e eu, numa paisagem inabitável, vestida de pedras escuras que brilhavam
ao sol, uma paisagem recoberta por uma casca de ferro.
E
considero esse espetáculo com uma espécie de desespero: uma nuvem de gafanhotos
que cai no macadame vive muito tempo?
—
E vocês vão esperar que chova para beber?
—A
gente não sabe...
Sua
cidadezinha, havia dez dias, era incansavelmente atravessada por refugiados do
norte. Eles assistiram, durante dez dias, àquele inesgotável êxodo. Chegou a
vez deles. Tomam seus lugares na procissão. Oh! Sem confiança:
—
Eu preferia morrer em casa.
—
Todos preferíamos morrer em casa.
E
é exato. A vila inteira desmorona como um castelo de areia, quando ninguém
desejava partir.
Se
a França possuísse reservas, o encaminhamento dessas reservas seria
radicalmente impedido pelo engarrafamento das estradas. É possível, a rigor,
apesar dos carros quebrados, carros imbricados uns nos outros, nos
inextricáveis cruzamentos, descer com o fluxo, mas como trazê-lo de volta?
—
Não há reservas — diz-me Dutertre —, o que resolve tudo...
Corre
o boato de que, desde ontem, o governo proibiu as evacuações de vilas. Mas sabe
Deus como as ordens se propagam, pois não há mais circulação possível na
estrada. Quanto às linhas telefônicas, estão congestionadas, cortadas ou sob
suspeita. E não se trata de dar ordens. Trata-se de reinventar uma moral. Ensina-se
aos homens, há mil anos, que mulheres e crianças devem ser poupadas da guerra.
A guerra diz respeito aos homens. Os prefeitos conhecem bem essa lei, e seus
adjuntos, e os professores. Bruscamente, eles recebem ordem de proibir as
evacuações, isto é, de obrigar mulheres e crianças a permanecerem sob os
bombardeios. Precisariam de um mês para reajustar a consciência a esses novos
tempos. Não se derruba de uma só vez todo um sistema de pensamento. Todavia, o
inimigo avança. Assim, os prefeitos, seus adjuntos, os professores soltam seu
povo na grande estrada. 0 que é preciso fazer? Onde está a verdade? E lá se vão
esses carneiros sem pastor.
— Não tem um médico aqui?
—O
senhor não é da vila?
—
Não. A gente vem mais do norte.
—
Para que um médico?
—
É que a minha mulher vai parir na carroça...
Entre
os utensílios de cozinha, no deserto daquela sucata universal, como sobre um
espinheiro.
—
O senhor não tinha como prever isto!
—
Faz quatro dias que estamos na estrada.
Pois
a estrada é um rio imperioso. Onde parar? As vilas que ele varre, umas após as
outras, esvaziam-se de si mesmas, como se desembocassem, por sua vez, no esgoto
comum.
—
Não, não tem médico. O do Grupo está a vinte quilômetros.
—
Ah! Bom!
O
homem enxuga o rosto. Tudo se deteriora. Sua mulher dá à luz no meio da rua,
entre utensílios de cozinha. Nada disso é cruel. É, primeiro, antes de tudo,
monstruosamente fora do humano. Ninguém se lamenta, as lamentações não têm mais
significado. A mulher dele vai morrer, ele não lamenta. E assim. Trata-se de um
sonho ruim.
—
Se, ao menos, a gente pudesse parar em algum lugar...
Achar
em algum lugar uma verdadeira vila, uma verdadeira pousada, um verdadeiro
hospital... Mas evacuam também os hospitais, sabe Deus por quê! E uma regra do
jogo. Não se tem tempo de reinventar as regras. Achar em algum lugar uma morte
verdadeira! Mas não há mais morte verdadeira. Há corpos que se deterioram, como
os automóveis.
E
sinto em todo lugar uma urgência decrépita, uma urgência que renunciou à urgência.
Foge-se à razão de cinco quilômetros por dia, de tanques que avançam, através
dos campos, mais de cem quilômetros, e de aviões que se deslocam a seiscentos
quilômetros por hora. Assim se derrama o xarope quando se derruba a garrafa. A
mulher desse aí vai parir, mas ele dispõe de um tempo desmesurado. E urgente. E
não é mais. Está suspenso em equilíbrio instável entre a urgência e a
eternidade.
Tudo
se fez lento como os reflexos de um agonizante. Trata- se de um imenso rebanho
que patina, exausto, diante do abatedouro. São eles cinco, dez milhões
abandonados na rua? É um povo que patina de cansaço, de tédio, na soleira da
eternidade.
E,
verdadeiramente, não consigo conceber como eles vão se arranjar para
sobreviver. O homem não se nutre de galhos de árvore. Eles mesmos se perguntam
vagamente, mas pouco se assustam. Arrancados de seu contexto, de seu trabalho,
de seus deveres, perderam todo o significado. Sua própria identidade
desgastou-se. São muito pouco eles mesmos. Existem muito pouco. Inventar-se-ão
mais tarde seus sofrimentos, mas sofrem principalmente com as costas
mortificadas pelo excesso de pacotes a carregar, pelo excesso de nós que se
romperam deixando que as trouxas esvaziem suas tripas, pelo excesso de carros a
empurrar e fazer pegar. Nenhuma palavra sobre a derrota. Isso é evidente. Você
não sente necessidade de comentar o que constitui sua própria substância. Eles
“são" a derrota.
Tenho
a súbita visão, aguda, de uma França que perde as entranhas. Seria preciso
suturar rápido. Não há um segundo a perder: eles estão condenados...
Começa.
Ei-los asfixiados já, como peixes fora d’água.
—
Não tem leite aqui?
E
uma pergunta de morrer de rir!
—
Meu bebê não tomou nada desde ontem...
Trata-se
de um lactente de seis meses que ainda faz muito barulho. Mas esse barulho não
vai durar os peixes, fora d’água... Aqui não tem leite. Aqui, só tem sucata.
Aqui, apenas uma enorme sucata inútil que, deteriorando-se a cada quilômetro,
perdendo porcas, parafusos, latarias, carrega esse povo, num êxodo
prodigiosamente inútil, para o nada.
Espalha-se
o boato de que os aviões estão metralhando a estrada a alguns quilômetros ao sul
Fala-se até de bombas. Ouvimos, de fato, explosões surdas. O boato é, sem
dúvida, verdadeiro.
Mas
a horda não freia. Ela me parece até vivificada. Esse risco total lhe parece
mais benfazejo do que o afundamento na sucata.
Ah!
O esquema que construirão mais tarde os historiadores! Os gráficos que
inventarão para dar um significado a esse mingau! Tomarão a palavra de um
ministro, a decisão de um general, a discussão de uma comissão, e farão, desse
desfile de fantasmas, conversas históricas com responsabilidades e visões
longínquas. Eles inventarão aceitações, resistências, pleitos cornelianos,
covardias. Eu bem sei o que é um ministério evacuado. O acaso me permitiu
visitar um ou dois. Logo entendi que um governo, uma vez que tenha mudado de lugar,
não constitui mais um governo. É como um corpo. Se você começar a mudar também
o estômago aqui, o fígado ali, as tripas acolá — essa coleção não constitui
mais um organismo. Vivi vinte minutos no Ministério da Aeronáutica. Pois bem,
um ministro exerce uma ação sobre um oficial. Uma ação miraculosa. Porque um fio
de campainha liga ainda o ministro ao oficial. Um fio de campainha intacto. O
ministro aperta o botão e o oficial vem.
Isso
é um êxito.
—
Meu carro, pede o ministro.
Sua
autoridade para aí. Ele manda o oficial fazer o exercício. Mas o oficial ignora
se existe na terra um automóvel de ministro. Nenhum fio elétrico liga o oficial
a nenhum chofer de automóvel O chofer está perdido em algum lugar do universo.
0 que podem saber da guerra aqueles que governam? Para nós seriam necessários
oito dias, de tão impossíveis que são as ligações, para desencadear um
bombardeio sobre uma divisão blindada que encontrássemos. Que boato um governo
pode receber desse país que se estripa? As notícias avançam num ritmo de vinte
quilômetros por dia. Os telefones estão sobrecarregados ou quebrados, e não têm
o poder de transmitir, com a real densidade, o Ser que por enquanto se
decompõe. O governo está imerso no vazio: um vazio polar. De tempos em tempos
lhe chegam chamados de desesperada urgência, mas abstratos, reduzidos a três
linhas. Como os responsáveis saberiam se dez milhões de franceses já não
morreram de fome? E esse apelo de dez milhões de homens cabe numa frase. É preciso
uma frase para dizer:
—
Reunião às quatro horas na casa de X.
Ou:
—
Dizem que dez milhões de homens morreram.
Ou:
—
Blois está em chamas.
Ou:
—
Encontramos seu chofer.
Tudo
isso no mesmo plano. Na hora. Dez milhões de homens. O carro. O exército do
Leste. A civilização ocidental. Encontramos o chofer. A Inglaterra. O pão. Que
horas são?
Eu
lhe dou sete letras. São sete letras da Bíblia. Reconstitua- me a Bíblia com
isso!
Os
historiadores esquecerão o real. Eles inventarão seres pensantes, ligados por
fibras misteriosas a um universo exprimível, dispondo de sólidas visões de
conjunto, e pensando decisões graves segundo as quatro regras da lógica
cartesiana. Eles distinguirão as potências do bem das potências do mal. Os
heróis dos traidores. Mas eu farei uma simples pergunta:
—
É preciso, para trair, ser responsável por alguma coisa, gerir alguma coisa,
agir sobre alguma coisa, conhecer alguma coisa. E dar hoje prova de talento.
Por que não se condecoram os traidores?
Já
a paz se mostra um pouco em toda parte. Não é uma dessas pazes bem delineadas,
que sucedem, como etapas novas da História, as guerras claramente concluídas
por tratado. Trata-se de um período sem nome, que é o fim de todas as coisas.
Um fim que não acabará de findar. Trata-se de um pântano onde chafurda pouco a
pouco todo impulso. Não se sente a aproximação de uma conclusão boa ou má.
Muito ao contrário. Entra-se pouco a pouco no apodrecimento de um provisório
que parece a eternidade. Nada se concluirá, pois não há mais por onde se
segurar este pais, como se seguraria uma afogada pelo cabelo. Tudo está
desfeito. E o esforço mais patético só traz uma mecha de cabelo. A paz que vem
não é fruto de uma decisão tomada pelo homem. Ela espalha-se como lepra.
Ai,
abaixo de mim, nessas estradas em que a caravana se deteriora, onde os
blindados alemães matam ou dão de beber, é como naqueles territórios lodosos
onde terra e água se confundem. A paz, que já se mistura à guerra, apodrece a
guerra. Um de meus amigos, Léon Werth, ouviu na estrada uma enorme revelação,
que narrará num grande livro. A esquerda da estrada estão os alemães, à
direita, os franceses. Entre ambos, o turbilhão lento do êxodo. Centenas de
mulheres e crianças que se livram, como podem, de seus carros em chamas. E,
como um tenente de artilharia que se encontra, sem querer, preso no
engarrafamento, tenta colocar na bateria uma peça de setenta e cinco, contra a
qual o inimigo atira — e como o inimigo erra a peça, mas arrebenta a estrada,
mães vão a esse tenente que, molhado de suor, obstinado por seu incompreensível
dever, tenta salvar uma posição que não aguentará vinte minutos (eles são aqui
doze homens!).
—
Vão embora! Vão embora! Vocês são covardes!
O
tenente e os homens se vão. Em todo lugar deparam com esses problemas de paz. É
preciso, com certeza, que os pequenos não sejam massacrados na estrada.
Entretanto, cada soldado que atira deve atirar nas costas de uma criança. Cada
caminhão que avança, ou tenta avançar, arrisca condenar um povo. Pois,
avançando contra a corrente, congestiona inexoravelmente uma estrada inteira.
—...
vocês são loucos! Deixem-nos passar! As crianças estão morrendo!
—
Nós fazemos a guerra...
—
Que guerra? Onde vocês estão fazendo guerra? Em três dias, nessa direção, vocês
avançarão seis quilômetros!
São
alguns soldados perdidos em seu caminhão, em marcha para um encontro que, há
horas, sem dúvida, não tem mais objeto. Mas eles estão enfiados em seu dever
elementar.
—
Fazemos a guerra.
—
Fariam melhor se nos recolhessem! É desumano!
Uma
criança berra.
—
E aquela?
Aquela
não grita mais. Não tem leite, não tem gritos...
—
Nós fazemos a guerra.
Eles
repetem sua fórmula com uma estupidez desesperada.
—
Mas vocês não vão achar nunca essa guerra! Vão morrer aqui conosco!
—
Fazemos a guerra...
Eles
não sabem mais muito bem o que dizem.
Eles
não sabem mais muito bem se fazem a guerra. Nunca viram o inimigo. Andam de
caminhão para alvos mais fugidios que miragens. Não encontram senão essa paz de
maceração.
Como
a desordem aglutinou tudo, eles desceram do caminhão. Cercam-nos. Vocês têm
água? Eles compartilham então sua água.
—
Pão?
Eles
partilham seu pão.
—
Vão deixá-la morrer?
Naquele
carro quebrado num buraco, há uma mulher que geme.
Tiram-na.
Enfiam-na dentro do caminhão.
—
E essa criança?
Colocam
também a criança no caminhão.
—
E aquela ali que vai parir?
Enfiam
aquela ali.
Depois,
aquela outra, porque está chorando.
Depois
de uma hora de esforços, desencalharam o caminhão. Viraram-no para o sul Como
bloco errático, ele seguirá, arrastado pelo rio de civis. Os soldados foram
convertidos à paz. Porque não encontravam a guerra.
Porque
a musculatura da guerra é invisível. Porque o golpe que se dá, é uma criança
que recebe. Porque no encontro da guerra, alvejam mulheres em trabalho de
parto. Porque é tão inútil pretender comunicar uma informação ou receber uma
ordem quanto entabular uma discussão com Sirius. Não há mais Exército. Só
restam homens.
Eles
estão convertidos à paz. São encarregados pela força das coisas como mecânicos,
médicos, guardadores de rebanho, padioleiros. Eles consertam os carros daquela
pobre gente que não sabe tratar sua sucata. E esses soldados ignoram, no
esforço que fazem, se são heróis, ou se estão passíveis do conselho de guerra.
Eles não se surpreenderiam muito se fossem condecorados. Nem de serem alinhados
contra uma parede com doze balas no crânio. Nem de serem desmobilizados. Nada
os surpreenderia. Eles já ultrapassaram há muito os limites do espanto.
Há
um imenso mingau onde nenhuma ordem, nenhum movimento, nenhuma novidade,
nenhuma onda do que quer que seja jamais se propagará por mais de três
quilômetros. E, assim como as vilas desembocam umas após as outras no esgoto
comum, esses caminhões militares absorvidos pela paz convertem-se um a um à
paz. Esses punhados de homens que teriam perfeitamente aceitado a morte, mas
não se coloca a eles o problema de morrer, aceitam os deveres que encontram e
consertam essa padiola feita de carrinho de mão, onde três religiosas
empilharam sabe Deus por qual peregrinação, para Deus sabe qual refúgio de
conto de fadas, doze crianças ameaçadas de morte.
Assim
como Alias, quando recolocava no coldre o seu revólver, não julgarei os
soldados que renunciam. Qual sopro os animaria? De onde vem a onda que os
atingiria? Onde está o rosto que os uniria? Eles não sabem nada do resto do
mundo, senão por esses boatos sempre dementes que, germinados na estrada a três
ou quatro quilômetros, sob a forma de hipóteses bizarras, tomaram,
propagando-se lentamente através desses três quilômetros de lama, um caráter de
afirmação: os Estados Unidos entraram na guerra. O papa se suicidou. Os aviões
russos incendiaram Berlim. O Armistício foi assinado há oito dias. Hitler
desembarcou na Inglaterra".
Não
há pastor para as mulheres ou as crianças, tampouco para os homens. O general
aborda seu ordenança. O ministro aborda seu oficial. E talvez ele possa, com
sua eloquência, transfigurá-lo. Alias aborda seus tripulantes. E ele pode obter
deles o sacrifício de suas vidas. O sargento do caminhão militar aborda os doze
homens que dependem dele. Mas é impossível unir-se a qualquer outra coisa.
Supondo-se que um chefe genial, capaz, pelo milagre de uma olhada sobre o
conjunto, conceba um plano suscetível de salvar-nos, esse chefe não disporá,
para manifestar-se, senão de um fio de campainha de vinte metros. E, como massa
de manobra para vencer, disporá do oficial, se ainda subsistir um oficial na
outra ponta do fio.
Quando
vão ao acaso das estradas, esses soldados esparsos que fazem parte de unidades
deslocadas, esses homens que são apenas desempregados de guerra, eles não
mostram aquele desespero que se empresta ao vencido patriota. Eles desejam
confusamente a paz, é certo. Mas a paz, a seus olhos, não representa nada além
do termo dessa inominável bagunça e o retomo a uma identidade, a mais humilde
que seja. Um velho sapateiro sonha que martelava pregos. E martelando pregos, forjava
o mundo.
E
se eles seguem em frente, é pelo efeito da incoerência geral que os separa uns
dos outros, e não pelo horror da morte. Eles não têm horror de nada: estão
vazios.
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