quarta-feira, 2 de agosto de 2017

PILOTO DE GUERRA - 17

 XVI

            É pesada a nossa experiência de estrada! Às vezes, temos por missão dar uma olhada, numa mesma manhã, sobre a Alsácia, a Bélgica, a Holanda, o norte da França e o mar. Mas a maior parte dos nossos problemas é terrestre e nosso horizonte, mais frequentemente, encolhe até se limitar ao engarrafamento de um cruzamento! Assim, faz três dias somente que vimos ruir, Dutertre e eu, a vila em que morávamos.

            Eu nunca me livrarei, provavelmente, dessa lembrança viscosa. Dutertre e eu, por volta das seis horas da manhã, deparamos, saindo de nossa casa, com uma desordem inexprimível. Todas as garagens, todos os galpões, todos os celeiros vomitaram nas ruas estreitas as engenhocas mais disparatadas, os carros novos e as velhas carroças que havia cinquenta anos dormiam, obsoletas, na poeira, as charretes de feno e os caminhões, os ônibus e os basculantes. Daria para encontrar, nessa feira, procurando-se bem, até diligências! Tudo quanto era caçamba sobre rodas foi exumada. Dentro delas despejam os tesouros das casas. Esses são carregados para os carros em trouxas perfuradas de hérnias, amontoados de qualquer jeito. E já não se parecem com mais nada.

            Eles compunham o perfil da casa. Eram os objetos de um culto de religiões particulares. Cada um no seu lugar, tomados necessários pelos hábitos, embelezados pelas lembranças, valiam pela pátria íntima para cuja fundação contribuíam. Mas os julgaram preciosos por si mesmos, os arrancaram de sua lareira, de sua mesa, de sua parede, os empilharam confusamente, e já não passam de objetos de bazar que demonstram seu desgaste. As relíquias piedosas, se as empilharmos, enojam!

            Alguma coisa já se decompõe diante de nós.

            — Vocês estão loucos, aqui! O que está acontecendo?

            A dona do café aonde nós vamos dá de ombros: evacuamos.

            — Por quê? Meu Deus!

            —A gente não sabe. O prefeito disse.

            Ela está muito ocupada. Precipita-se pela escadaria. Nós contemplamos a rua, Dutertre e eu. A bordo dos caminhões, dos carros, carroças, charretes de banco, é uma mistura de crianças, colchões e utensílios de cozinha.

            Os carros velhos, principalmente, estão lastimáveis.

            Um cavalo em bom estado entre as padiolas de uma charrete dá uma sensação de saúde. Um cavalo não exige peças de reposição. Uma charrete se conserta com três pregos. Mas todos esses vestígios de uma era mecânica! Esses conjuntos de pistões, válvulas, bobinas e engrenagens, até quando vão funcionar?

            — Capitão, o senhor poderia me ajudar?

            — Claro. Com o quê?

            — A tirar meu carro da garagem...

            Eu a olho, estupefato:

            — A senhora não sabe dirigir?

             — Oh! Na estrada, vai dar. É mais fácil...

            Estão ela, a cunhada e as sete crianças...

            Na estrada! Na estrada ela avançará vinte quilômetros por dia em etapas de duzentos metros! A cada duzentos metros, terá de frear, parar, desengatar, engatar, mudar de marcha na confusão de um engarrafamento inextricável. Ela vai quebrar tudo! E a gasolina, que vai faltar! E o óleo! E a água que ela vai esquecer:

            — Cuidado com a água. Seu radiador está vazando feito uma peneira!

            — Ah! O carro não é novo...

            — A senhora precisaria andar oito dias... Como vai conseguir?

            — Não sei...

            A menos de dez quilômetros daqui, ela terá já abalroado três carros, arranhado a embreagem, furado os pneus. Então ela, a cunhada e as sete crianças começarão a chorar. Então ela, a cunhada e as sete crianças, submetidas a problemas acima de suas forças, renunciarão a decidir sobre o que quer que seja e vão sentar-se à margem da estrada para esperar um pastor. Mas os pastores... Faltam pastores, barbaramente! Nós assistimos, Dutertre e eu, a iniciativas de carneiros. E esses carneiros se vão numa balbúrdia formidável de material mecânico. Três mil pistões. Seis mil válvulas. Todo esse material range, raspa e bate. A água ferve em alguns radiadores. É assim que começa a andar, laboriosamente, essa caravana condenada! Essa caravana sem peças de reposição, sem pneus e sem gasolina, sem mecânicos. Que demência!

            — A senhora não poderia ficar em casa?

             — Ah! Bem que a gente preferia ficar em casa!

            — Então por que partir?

            — Disseram...

            — Quem disse?

            — O prefeito.

            Sempre o prefeito.

            — Claro. Todo mundo preferia ficar em casa.

            Exato. Nós não respiramos aqui uma atmosfera de pânico, mas uma atmosfera de fardo cego. Dutertre e eu aproveitamos para sacudir uns e outros:

            — É melhor o senhor desembarcar tudo isso. O senhor ao menos beberá a água das fontes.

            — Certeza que faríamos melhor.

            — Mas vocês são livres.

            Ganhamos a partida. Um grupo se formou. Escutam-nos. Balançam a cabeça em aprovação.

            — Tem razão, o Capitão!

            Discípulos repercutem o que digo. Converti um acantonado que se mostra mais ardente do que eu:

            — Eu sempre falei! Chegando na estrada, vamos comer pedra.

            Eles conversam. Estão de acordo. Ficarão. Alguns se afastam para pregar aos outros. Mas voltam desencorajados:

            — Não adianta. Somos obrigados a partir também.

            — Porquê?

            — O padeiro foi embora. Quem vai fazer o pão?

            A cidade já debandou. Furou aqui e acolá. Tudo vai correr pelo mesmo buraco. Sem esperanças.

            Dutertre tem sua ideia:

             — O drama é que fizeram os homens acreditar que a guerra era anormal. Antigamente, ficavam em casa. A guerra e a vida se misturavam...

            A dona do café reaparece. Ela arrasta um saco.

            — Vamos decolar em uma hora. A senhora tem um pouco de café?

            — Ah! Pobres moços...

            Ela enxuga os olhos. Ah! Ela não chora por nós. Nem por si mesma. Ela já chora de esgotamento. Ela já se sente tragada pela penúria de uma caravana que, a cada quilômetro, desmoronará um pouco mais.

            Mais longe, no acaso dos campos, de tempos em tempos, caças inimigos voando baixo lançarão uma rajada de metralhadoras sobre esse lamentável rebanho. 0 mais surpreendente, porém, é que, normalmente, eles não insistem. Alguns carros ardem, mas pouco. E poucos mortos. É uma espécie de luxo, alguma coisa como um conselho. Ou o gesto de um cão que morde a canela para acelerar o rebanho. Aqui, é para semear a desordem. Mas então, por que essas ações locais, esporádicas, de pouco efeito? O inimigo faz pouco esforço para dispersar a caravana. É verdade que esta não precisa dele para desmoronar. A máquina des regula-se espontaneamente. A máquina é concebida para uma sociedade tranquila, calma, que dispõe de todo o seu tempo. A máquina, quando o homem não está mais ali para remendar, regular, lubrificar, envelhece num ritmo vertiginoso. Esses carros, esta noite, parecerão ter mil anos.

            Parece-me assistir à agonia da máquina.

            Aquele ali toca seu cavalo com a majestade de um rei.

             Entroniza-se, deslumbrado, em seu banco. Suponho, aliás, que ele tenha tomado um trago:

            — O senhor parece contente!

            — É o fim do mundo!

            Sinto um surdo mal-estar ao pensar que todos esses trabalhadores, todas essas pessoas humildes, de funções tão bem definidas, qualidades tão diversas e tão preciosas, não passarão, esta noite, de parasitas e vermes.

            Vão espalhar-se nos campos e devorá-los.

            — Quem vai alimentá-los?

            — A gente não sabe...

            Como abastecer os milhões de emigrantes perdidos ao longo das estradas, onde se anda de cinco a vinte quilômetros por dia? Se houvesse abastecimento, seria impossível encaminhá-lo!

            Essa mistura de humanidade e sucata me faz lembrar o deserto da Líbia. Morávamos, Prévot e eu, numa paisagem inabitável, vestida de pedras escuras que brilhavam ao sol, uma paisagem recoberta por uma casca de ferro.

            E considero esse espetáculo com uma espécie de desespero: uma nuvem de gafanhotos que cai no macadame vive muito tempo?

            — E vocês vão esperar que chova para beber?

            —A gente não sabe...

            Sua cidadezinha, havia dez dias, era incansavelmente atravessada por refugiados do norte. Eles assistiram, durante dez dias, àquele inesgotável êxodo. Chegou a vez deles. Tomam seus lugares na procissão. Oh! Sem confiança:

            — Eu preferia morrer em casa.

            — Todos preferíamos morrer em casa.

            E é exato. A vila inteira desmorona como um castelo de areia, quando ninguém desejava partir.





            Se a França possuísse reservas, o encaminhamento dessas reservas seria radicalmente impedido pelo engarrafamento das estradas. É possível, a rigor, apesar dos carros quebrados, carros imbricados uns nos outros, nos inextricáveis cruzamentos, descer com o fluxo, mas como trazê-lo de volta?

            — Não há reservas — diz-me Dutertre —, o que resolve tudo...

            Corre o boato de que, desde ontem, o governo proibiu as evacuações de vilas. Mas sabe Deus como as ordens se propagam, pois não há mais circulação possível na estrada. Quanto às linhas telefônicas, estão congestionadas, cortadas ou sob suspeita. E não se trata de dar ordens. Trata-se de reinventar uma moral. Ensina-se aos homens, há mil anos, que mulheres e crianças devem ser poupadas da guerra. A guerra diz respeito aos homens. Os prefeitos conhecem bem essa lei, e seus adjuntos, e os professores. Bruscamente, eles recebem ordem de proibir as evacuações, isto é, de obrigar mulheres e crianças a permanecerem sob os bombardeios. Precisariam de um mês para reajustar a consciência a esses novos tempos. Não se derruba de uma só vez todo um sistema de pensamento. Todavia, o inimigo avança. Assim, os prefeitos, seus adjuntos, os professores soltam seu povo na grande estrada. 0 que é preciso fazer? Onde está a verdade? E lá se vão esses carneiros sem pastor.

             — Não tem um médico aqui?

            —O senhor não é da vila?

            — Não. A gente vem mais do norte.

            — Para que um médico?

            — É que a minha mulher vai parir na carroça...

            Entre os utensílios de cozinha, no deserto daquela sucata universal, como sobre um espinheiro.

            — O senhor não tinha como prever isto!

            — Faz quatro dias que estamos na estrada.

            Pois a estrada é um rio imperioso. Onde parar? As vilas que ele varre, umas após as outras, esvaziam-se de si mesmas, como se desembocassem, por sua vez, no esgoto comum.

            — Não, não tem médico. O do Grupo está a vinte quilômetros.

            — Ah! Bom!

            O homem enxuga o rosto. Tudo se deteriora. Sua mulher dá à luz no meio da rua, entre utensílios de cozinha. Nada disso é cruel. É, primeiro, antes de tudo, monstruosamente fora do humano. Ninguém se lamenta, as lamentações não têm mais significado. A mulher dele vai morrer, ele não lamenta. E assim. Trata-se de um sonho ruim.

            — Se, ao menos, a gente pudesse parar em algum lugar...

            Achar em algum lugar uma verdadeira vila, uma verdadeira pousada, um verdadeiro hospital... Mas evacuam também os hospitais, sabe Deus por quê! E uma regra do jogo. Não se tem tempo de reinventar as regras. Achar em algum lugar uma morte verdadeira! Mas não há mais morte verdadeira. Há corpos que se deterioram, como os automóveis.

            E sinto em todo lugar uma urgência decrépita, uma urgência que renunciou à urgência. Foge-se à razão de cinco quilômetros por dia, de tanques que avançam, através dos campos, mais de cem quilômetros, e de aviões que se deslocam a seiscentos quilômetros por hora. Assim se derrama o xarope quando se derruba a garrafa. A mulher desse aí vai parir, mas ele dispõe de um tempo desmesurado. E urgente. E não é mais. Está suspenso em equilíbrio instável entre a urgência e a eternidade.

            Tudo se fez lento como os reflexos de um agonizante. Trata- se de um imenso rebanho que patina, exausto, diante do abatedouro. São eles cinco, dez milhões abandonados na rua? É um povo que patina de cansaço, de tédio, na soleira da eternidade.

            E, verdadeiramente, não consigo conceber como eles vão se arranjar para sobreviver. O homem não se nutre de galhos de árvore. Eles mesmos se perguntam vagamente, mas pouco se assustam. Arrancados de seu contexto, de seu trabalho, de seus deveres, perderam todo o significado. Sua própria identidade desgastou-se. São muito pouco eles mesmos. Existem muito pouco. Inventar-se-ão mais tarde seus sofrimentos, mas sofrem principalmente com as costas mortificadas pelo excesso de pacotes a carregar, pelo excesso de nós que se romperam deixando que as trouxas esvaziem suas tripas, pelo excesso de carros a empurrar e fazer pegar. Nenhuma palavra sobre a derrota. Isso é evidente. Você não sente necessidade de comentar o que constitui sua própria substância. Eles “são" a derrota.

            Tenho a súbita visão, aguda, de uma França que perde as entranhas. Seria preciso suturar rápido. Não há um segundo a perder: eles estão condenados...

            Começa. Ei-los asfixiados já, como peixes fora d’água.

            — Não tem leite aqui?

            E uma pergunta de morrer de rir!

            — Meu bebê não tomou nada desde ontem...

            Trata-se de um lactente de seis meses que ainda faz muito barulho. Mas esse barulho não vai durar os peixes, fora d’água... Aqui não tem leite. Aqui, só tem sucata. Aqui, apenas uma enorme sucata inútil que, deteriorando-se a cada quilômetro, perdendo porcas, parafusos, latarias, carrega esse povo, num êxodo prodigiosamente inútil, para o nada.

            Espalha-se o boato de que os aviões estão metralhando a estrada a alguns quilômetros ao sul Fala-se até de bombas. Ouvimos, de fato, explosões surdas. O boato é, sem dúvida, verdadeiro.

            Mas a horda não freia. Ela me parece até vivificada. Esse risco total lhe parece mais benfazejo do que o afundamento na sucata.





            Ah! O esquema que construirão mais tarde os historiadores! Os gráficos que inventarão para dar um significado a esse mingau! Tomarão a palavra de um ministro, a decisão de um general, a discussão de uma comissão, e farão, desse desfile de fantasmas, conversas históricas com responsabilidades e visões longínquas. Eles inventarão aceitações, resistências, pleitos cornelianos, covardias. Eu bem sei o que é um ministério evacuado. O acaso me permitiu visitar um ou dois. Logo entendi que um governo, uma vez que tenha mudado de lugar, não constitui mais um governo. É como um corpo. Se você começar a mudar também o estômago aqui, o fígado ali, as tripas acolá — essa coleção não constitui mais um organismo. Vivi vinte minutos no Ministério da Aeronáutica. Pois bem, um ministro exerce uma ação sobre um oficial. Uma ação miraculosa. Porque um fio de campainha liga ainda o ministro ao oficial. Um fio de campainha intacto. O ministro aperta o botão e o oficial vem.

            Isso é um êxito.

            — Meu carro, pede o ministro.

            Sua autoridade para aí. Ele manda o oficial fazer o exercício. Mas o oficial ignora se existe na terra um automóvel de ministro. Nenhum fio elétrico liga o oficial a nenhum chofer de automóvel O chofer está perdido em algum lugar do universo. 0 que podem saber da guerra aqueles que governam? Para nós seriam necessários oito dias, de tão impossíveis que são as ligações, para desencadear um bombardeio sobre uma divisão blindada que encontrássemos. Que boato um governo pode receber desse país que se estripa? As notícias avançam num ritmo de vinte quilômetros por dia. Os telefones estão sobrecarregados ou quebrados, e não têm o poder de transmitir, com a real densidade, o Ser que por enquanto se decompõe. O governo está imerso no vazio: um vazio polar. De tempos em tempos lhe chegam chamados de desesperada urgência, mas abstratos, reduzidos a três linhas. Como os responsáveis saberiam se dez milhões de franceses já não morreram de fome? E esse apelo de dez milhões de homens cabe numa frase. É preciso uma frase para dizer:

            — Reunião às quatro horas na casa de X.

             Ou:

            — Dizem que dez milhões de homens morreram.

            Ou:

            — Blois está em chamas.

            Ou:

            — Encontramos seu chofer.

            Tudo isso no mesmo plano. Na hora. Dez milhões de homens. O carro. O exército do Leste. A civilização ocidental. Encontramos o chofer. A Inglaterra. O pão. Que horas são?

            Eu lhe dou sete letras. São sete letras da Bíblia. Reconstitua- me a Bíblia com isso!

            Os historiadores esquecerão o real. Eles inventarão seres pensantes, ligados por fibras misteriosas a um universo exprimível, dispondo de sólidas visões de conjunto, e pensando decisões graves segundo as quatro regras da lógica cartesiana. Eles distinguirão as potências do bem das potências do mal. Os heróis dos traidores. Mas eu farei uma simples pergunta:

            — É preciso, para trair, ser responsável por alguma coisa, gerir alguma coisa, agir sobre alguma coisa, conhecer alguma coisa. E dar hoje prova de talento. Por que não se condecoram os traidores?





            Já a paz se mostra um pouco em toda parte. Não é uma dessas pazes bem delineadas, que sucedem, como etapas novas da História, as guerras claramente concluídas por tratado. Trata-se de um período sem nome, que é o fim de todas as coisas. Um fim que não acabará de findar. Trata-se de um pântano onde chafurda pouco a pouco todo impulso. Não se sente a aproximação de uma conclusão boa ou má. Muito ao contrário. Entra-se pouco a pouco no apodrecimento de um provisório que parece a eternidade. Nada se concluirá, pois não há mais por onde se segurar este pais, como se seguraria uma afogada pelo cabelo. Tudo está desfeito. E o esforço mais patético só traz uma mecha de cabelo. A paz que vem não é fruto de uma decisão tomada pelo homem. Ela espalha-se como lepra.

            Ai, abaixo de mim, nessas estradas em que a caravana se deteriora, onde os blindados alemães matam ou dão de beber, é como naqueles territórios lodosos onde terra e água se confundem. A paz, que já se mistura à guerra, apodrece a guerra. Um de meus amigos, Léon Werth, ouviu na estrada uma enorme revelação, que narrará num grande livro. A esquerda da estrada estão os alemães, à direita, os franceses. Entre ambos, o turbilhão lento do êxodo. Centenas de mulheres e crianças que se livram, como podem, de seus carros em chamas. E, como um tenente de artilharia que se encontra, sem querer, preso no engarrafamento, tenta colocar na bateria uma peça de setenta e cinco, contra a qual o inimigo atira — e como o inimigo erra a peça, mas arrebenta a estrada, mães vão a esse tenente que, molhado de suor, obstinado por seu incompreensível dever, tenta salvar uma posição que não aguentará vinte minutos (eles são aqui doze homens!).

            — Vão embora! Vão embora! Vocês são covardes!

            O tenente e os homens se vão. Em todo lugar deparam com esses problemas de paz. É preciso, com certeza, que os pequenos não sejam massacrados na estrada. Entretanto, cada soldado que atira deve atirar nas costas de uma criança. Cada caminhão que avança, ou tenta avançar, arrisca condenar um povo. Pois, avançando contra a corrente, congestiona inexoravelmente uma estrada inteira.

            —... vocês são loucos! Deixem-nos passar! As crianças estão morrendo!

            — Nós fazemos a guerra...

            — Que guerra? Onde vocês estão fazendo guerra? Em três dias, nessa direção, vocês avançarão seis quilômetros!

            São alguns soldados perdidos em seu caminhão, em marcha para um encontro que, há horas, sem dúvida, não tem mais objeto. Mas eles estão enfiados em seu dever elementar.

            — Fazemos a guerra.

            — Fariam melhor se nos recolhessem! É desumano!

            Uma criança berra.

            — E aquela?

            Aquela não grita mais. Não tem leite, não tem gritos...

            — Nós fazemos a guerra.

            Eles repetem sua fórmula com uma estupidez desesperada.

            — Mas vocês não vão achar nunca essa guerra! Vão morrer aqui conosco!

            — Fazemos a guerra...

            Eles não sabem mais muito bem o que dizem.

            Eles não sabem mais muito bem se fazem a guerra. Nunca viram o inimigo. Andam de caminhão para alvos mais fugidios que miragens. Não encontram senão essa paz de maceração.

            Como a desordem aglutinou tudo, eles desceram do caminhão. Cercam-nos. Vocês têm água? Eles compartilham então sua água.

            — Pão?

            Eles partilham seu pão.

            — Vão deixá-la morrer?

            Naquele carro quebrado num buraco, há uma mulher que geme.

            Tiram-na. Enfiam-na dentro do caminhão.

            — E essa criança?

            Colocam também a criança no caminhão.

            — E aquela ali que vai parir?

            Enfiam aquela ali.

            Depois, aquela outra, porque está chorando.

            Depois de uma hora de esforços, desencalharam o caminhão. Viraram-no para o sul Como bloco errático, ele seguirá, arrastado pelo rio de civis. Os soldados foram convertidos à paz. Porque não encontravam a guerra.

            Porque a musculatura da guerra é invisível. Porque o golpe que se dá, é uma criança que recebe. Porque no encontro da guerra, alvejam mulheres em trabalho de parto. Porque é tão inútil pretender comunicar uma informação ou receber uma ordem quanto entabular uma discussão com Sirius. Não há mais Exército. Só restam homens.

            Eles estão convertidos à paz. São encarregados pela força das coisas como mecânicos, médicos, guardadores de rebanho, padioleiros. Eles consertam os carros daquela pobre gente que não sabe tratar sua sucata. E esses soldados ignoram, no esforço que fazem, se são heróis, ou se estão passíveis do conselho de guerra. Eles não se surpreenderiam muito se fossem condecorados. Nem de serem alinhados contra uma parede com doze balas no crânio. Nem de serem desmobilizados. Nada os surpreenderia. Eles já ultrapassaram há muito os limites do espanto.

            Há um imenso mingau onde nenhuma ordem, nenhum movimento, nenhuma novidade, nenhuma onda do que quer que seja jamais se propagará por mais de três quilômetros. E, assim como as vilas desembocam umas após as outras no esgoto comum, esses caminhões militares absorvidos pela paz convertem-se um a um à paz. Esses punhados de homens que teriam perfeitamente aceitado a morte, mas não se coloca a eles o problema de morrer, aceitam os deveres que encontram e consertam essa padiola feita de carrinho de mão, onde três religiosas empilharam sabe Deus por qual peregrinação, para Deus sabe qual refúgio de conto de fadas, doze crianças ameaçadas de morte.





            Assim como Alias, quando recolocava no coldre o seu revólver, não julgarei os soldados que renunciam. Qual sopro os animaria? De onde vem a onda que os atingiria? Onde está o rosto que os uniria? Eles não sabem nada do resto do mundo, senão por esses boatos sempre dementes que, germinados na estrada a três ou quatro quilômetros, sob a forma de hipóteses bizarras, tomaram, propagando-se lentamente através desses três quilômetros de lama, um caráter de afirmação: os Estados Unidos entraram na guerra. O papa se suicidou. Os aviões russos incendiaram Berlim. O Armistício foi assinado há oito dias. Hitler desembarcou na Inglaterra".

            Não há pastor para as mulheres ou as crianças, tampouco para os homens. O general aborda seu ordenança. O ministro aborda seu oficial. E talvez ele possa, com sua eloquência, transfigurá-lo. Alias aborda seus tripulantes. E ele pode obter deles o sacrifício de suas vidas. O sargento do caminhão militar aborda os doze homens que dependem dele. Mas é impossível unir-se a qualquer outra coisa. Supondo-se que um chefe genial, capaz, pelo milagre de uma olhada sobre o conjunto, conceba um plano suscetível de salvar-nos, esse chefe não disporá, para manifestar-se, senão de um fio de campainha de vinte metros. E, como massa de manobra para vencer, disporá do oficial, se ainda subsistir um oficial na outra ponta do fio.

            Quando vão ao acaso das estradas, esses soldados esparsos que fazem parte de unidades deslocadas, esses homens que são apenas desempregados de guerra, eles não mostram aquele desespero que se empresta ao vencido patriota. Eles desejam confusamente a paz, é certo. Mas a paz, a seus olhos, não representa nada além do termo dessa inominável bagunça e o retomo a uma identidade, a mais humilde que seja. Um velho sapateiro sonha que martelava pregos. E martelando pregos, forjava o mundo.

            E se eles seguem em frente, é pelo efeito da incoerência geral que os separa uns dos outros, e não pelo horror da morte. Eles não têm horror de nada: estão vazios.



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