quinta-feira, 3 de agosto de 2017

A VIDA DE SAINT- EXUPÉRY - 30


            Em cabo Juby, Saint-Exupéry passava a maior parte do tempo lendo obras técnicas e manuais de filosofia trazidos pelos colegas. Tinha o costume de presenteá-los com os mais variados cursos, de geometria a metafísica. Se isso os aborrecia, convidava-os para jogar baralho, em que adquirira um domínio quase profissional, mantendo constantemente o senso de humor, num ambiente rico em brincadeiras das quais freqüentemente era a vítima. Henry Delaunay lembra-se que Saint-Exupéry possuía grande capacidade de zombar de si mesmo, fazendo os mecânicos rolarem de rir. Outras testemunhas negam essa imagem, dizendo que ele se ofendia ao ser objeto de brincadeiras, mas isso passava rapidamente.

            Saint-Exupéry não era apenas diplomata, diretor de base e animador de reuniões; acima de tudo, tinha de proteger os pilotos da selvageria das tribos nômades em caso de acidente. Ao realizar com êxito essa missão, assentava as bases de uma filosofia segundo a qual todos os homens vivem em dependência mútua, sem motivo de exclusão nem conflitos raciais. Conseguiu ser bem-sucedido nessa ação permanente de salvamento em pleno deserto graças a seu instinto e a seu temperamento particular. Em primeiro lugar era preciso fazer alianças, e, após ter “domesticado” os espanhóis com freqüentes visitas ao forte e numerosas partidas de baralho ou xadrez, superou a hostilidade das tribos árabes, tratando-as com um respeito que não era comum nos europeus.

            Seus primeiros amigos foram as crianças seminuas e subalimentadas que viviam nos acampamentos em volta do forte. Ele lhes dava chocolates e biscoitos. Para elas, Antoine era o comandante dos pássaros. A franqueza e a generosidade de Saint-Exupéry também lhe permitiram estabelecer vínculos de amizade com as tribos hostis aos espanhóis confinados no forte; esta estima aumentou ainda mais porque iniciou cursos de árabe na tenda dos chefes. Sua influência crescera pela facilidade de usar o dinheiro da companhia para pagar intérpretes que viajavam nos aviões do correio. Um de seus maiores sucessos foi reunir fundos suficientes para libertar um escravo chamado Bark, como conta em Terra dos Homens.

            No verão de 1928, Saint-Exupéry selara uma aliança com a tribo menos hostil, os Irzaguin, que lhe forneceu escoltas armadas em diversas missões no deserto. Mais tarde, conseguiu uma paz precária com outros chefes guerreiros rivais, apesar dos freqüentes ataques das tropas francesas fora do enclave espanhol. Mas nunca conseguiu um acordo com os R’gueibat, a mais belicosa das tribos nômades. Suspeitava-se de que os espanhóis lhes forneciam munição para de- sestabilizar os interesses da França, porém a maioria de suas armas era comprada com o dinheiro dos resgates que obtinham ao capturar pilotos franceses.

            Todas as manhãs, a primeira tarefa de Saint-Exupéry era realizar vôos de manutenção, a fim de evitar os efeitos da condensação sobre a mecânica dos aviões. Geralmente voava durante uma hora, aumentando gradualmente seu raio de reconhecimento, até conhecer os arredores de cabo Juby bem melhor que a guarnição espanhola. Algumas vezes levava consigo algum chefe de tribo, esperando impressioná-lo. Aproveitava essas saídas para identificar as pistas de emergência e vigiar os deslocamentos dos rebeldes. Havia muitos acidentes aéreos no deserto e, com freqüência, os pilotos eram torturados antes do pagamento do resgate. Saint-Exupéry chegou a cabo Juby consciente dos atrozes assassinatos perpetrados pelos guerreiros; alguns deles se vingavam de ataques efetuados pela aviação militar francesa, que operava com aviões semelhantes aos da Aéropostale. Poucas máquinas conseguiam penetrar no espaço aéreo desse enclave espanhol desértico sem se tornarem alvo das balas de um bando árabe.

            Alguns meses antes de chegar a cabo Juby, Saint-Exupéry teve uma amostra dos perigos que o esperavam ao acompanhar, como passageiro, o piloto René Riguelle. Henri Guillaumet escoltava-os em outro avião, de acordo com a ordem estrita da companhia, que proibia vôos solitários. Isso aconteceu pouco após a morte de um aviador francês e de um mecânico espanhol. Outro piloto francês, capturado no mesmo episódio, tentou suicidar-se para escapar da tortura e morreu pouco tempo depois de ter sido solto. Os dois destroços calcinados dos Bréguet ainda eram claramente visíveis do céu.

            Ao extremo sul do enclave espanhol, o motor de Riguelle explodiu, e ele teve de fazer um pouso forçado. Guillaumet deu meia- volta para vir ajudá-lo, e a maioria das sacolas de correio foi transferida para seu aparelho. Enquanto Saint-Exupéry montava guarda ao lado dos sacos restantes e do avião danificado, Riguelle e Guillaumet decolavam em busca de socorro. Armado com as pistolas dos companheiros, Saint-Exupéry escavou na duna uma posição defensiva, pronto a lutar por sua vida e pelo correio. Ficou de sentinela durante horas, esperando um ataque dos guerreiros do sul que recentemente tinham capturado e pedido resgate pelo seu amigo Jean Mermoz.

            Após ter colocado os revólveres e cinco pentes de balas em cima da areia, sentiu-se pela primeira vez dono de sua própria vida e, à medida que o dia passava, foi invadido pelo mistério e pelo perigo do Saara. Em Wind, Sand and Stars, declarou que ficara enfeitiçado por algo intangível e desconhecido. Era o amor pelo Saara, que, como o próprio amor, nasce de um rosto que percebemos sem nunca tê-lo visto realmente. “Após essa primeira visão de seu novo amor, estabelece-se para sempre um vínculo indefinível entre a pessoa e a areia revestida de ouro pelo sol poente”, escreveu ele.

             Ao crepúsculo, quando seus colegas regressaram, revelaram-lhe que não havia mesmo nenhum motivo de inquietação. Eles tinham esquecido de dizer-lhe que estava em território francês pacificado, no qual poderia permanecer muitos meses sem qualquer perigo. Na edição francesa, Saint-Exupéry não menciona esse fato nem a revelação de sua paixão pelo Saara.

            Após o conserto dos motores, os três pilotos passaram a noite ao ar livre no terraço de um forte colonial, perto da atual cidade de Nouakchott, capital da Mauritânia. Esse posto militar avançado era guardado por quinze indígenas e apenas um sargento francês. O suboficial sentia saudade da pátria e não podia superar a vergonha de não ter tido vinho na adega para festejar a visita de um capitão, alguns meses antes.

            Naquela noite, os três amigos escutaram o sargento “falar das estrelas”. Enquanto Saint-Exupéry contemplava o céu mágico do deserto, seu amor pela Saara aumentava e ele lamentou que a noite não durasse 1.000 anos. Em Terra dos Homens, diante da pergunta: “O que é o deserto para nós?”, ele responde: “Era o que nascia em nós. Aquilo que aprendíamos sobre nós mesmos.”

            Em julho de 1928, Saint-Exupéry já não tinha nada do rapaz desajeitado e tímido encontrado por Didier Daurat quase dois anos antes. Tornara-se um chefe respeitado, que adquirira suficiente confiança em si mesmo para contornar algumas vezes o regulamento da companhia e tomar iniciativas. Sua despreocupação com relação às instruções da Aéropostale manifestou-se de maneira particularmente espetacular quando fez uma tentativa, coroada de sucesso, de recuperar um avião abatido em território inimigo.

            Em 18 de julho, Riguelle foi obrigado a aterrissar a 30 quilômetros ao sul da base, num setor onde os rebeldes tinham capturado e pedido resgate por um piloto espanhol alguns meses antes. Enquanto Riguelle era levado são e salvo a cabo Juby pelo piloto que o escoltava, Saint-Exupéry começava a se preparar para recuperar o aparelho danificado, numa operação sem precedentes, como escreveu no seu relatório. Após dois dias de negociações com árabes pouco entusiasmados, tinha preparado uma escolta armada de quinze homens para conduzi-lo até o avião caído.

            Em companhia de um mecânico, Saint-Exupéry montou a cavalo e pôs-se à frente de uma estranha caravana composta por seis cavalos, dois asnos, um camelo que transportava a bagagem e outros dois que puxavam uma carroça improvisada para transportar um motor  sobressalente. “Pela primeira vez um camelo é utilizado como animal de tração, pelo menos aqui”, escreveu no relatório oficial, um dos múltiplos relatos de sua expedição.

            Apesar da ameaça de um ataque árabe, Saint-Exupéry fiscalizou a preparação de uma pista de 90 metros de comprimento, com uma rampa. Enquanto o mecânico trabalhava no motor, o destacamento mouro, composto de Irzaguin, entrou em pânico ao escutar tiros de arma de fogo de um grupo rival, os Alt toussa. Doze Irzaguin tinham sido mortos recentemente durante um ataque dessa tribo, e logo inventaram uma desculpa para abandonar a operação de resgate do avião. Um mensageiro árabe disse que o comandante da guarnição de cabo Juby ordenara a retirada, e a pequena caravana teria de regressar sem terminar os consertos.

            Em seu relatório, Saint-Exupéry explica que os homens da escolta só aceitaram voltar ao avião acidentado após terem sido “feridos no amor próprio”, alusão que explica numa carta a Yvonne de Les- trange. Ele incentivou os guerreiros dizendo-lhes que se sentiria mais feliz com um grupo de mulheres.

            De acordo com seu relatório e cartas posteriores, Antoine dava a impressão de ter tentado o resgate para testar sua própria coragem. Dois aviões espanhóis sobrevoaram seu acampamento para preveni-lo que os rebeldes árabes estavam se aproximando, porém ele não levou a advertência em consideração e passou o dia inteiro defendendo suas posições em volta do avião sob fogo inimigo. Enquanto os homens permaneciam achatados no solo ou deslocavam-se rastejando, Saint-Exupéry desafiava os atiradores passeando nas dunas. Numa carta a Raymond Vanier, o representante da Aéropostale em Dacar, qualificou seu batismo de fogo de “magnífico”. O pouco caso que aparentemente fazia de sua própria segurança incentivou as equipes de resgate a terminar os trabalhos na pista e, por volta das 5 horas da tarde, Saint-Exupéry pôde reconduzir o avião a cabo Juby com o mecânico como passageiro.

            Num bilhete a Didier Daurat, Saint-Exupéry contava que os espanhóis tinham utilizado um navio de guerra para proteger uma operação de salvamento de um avião acidentado na praia perto de cabo Juby, enquanto seu técnico e ele tinham passado dois dias e duas noites em território inimigo para recuperar um aparelho da companhia. Essa pequena demostração de bravura literária estava acompanhada de um pedido de não levar em consideração o custo da intervenção, devido à impossibilidade de fornecer recibos.

             Posteriormente, pareceu constrangido pelo prazer pueril que sentira ao brincar de guerreiro no deserto. O prefácio de André Gide em Vôo Noturno reproduz um trecho de uma carta de Saint- Exupéry que menciona esse incidente. O texto original figurava numa carta a Yvonne de Lestrange, na qual Antoine escrevia que tinha ouvido o assobio das balas nas orelhas pela primeira vez na vida e estava orgulhoso de ter mantido o sangue frio muito melhor que seus homens. Mas esse incidente lhe fizera compreender por que Platão colocava a coragem física em último lugar na lista das virtudes humanas. “Ela não é feita de belos sentimentos: um pouco de raiva, um pouco de vaidade, muita teimosia e um vulgar prazer esportivo”, precisava ele. “Nunca mais admirarei um homem que seja apenas corajoso.”

            A verdade talvez seja simplesmente que a façanha não despertou grande interesse por parte dos colegas, que eram blasés em matéria de aventuras. Mais tarde Saint-Exupéry admitiu que sua batalha das dunas limitara-se a três tiros de carabina disparados a uma boa distância. Seus amigos aviadores mostraram-se mais elogiosos após uma operação muito mais importante liderada por Saint-Exupéry, na qual ele revelou uma capacidade insuspeita de habilidade, perseverança e diplomacia. Essa missão de busca, que durou três meses, está relacionada com dois aviadores abatidos, Marcei Reine e Édouard Serre.


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