Em
cabo Juby, Saint-Exupéry passava a maior parte do tempo lendo obras técnicas e
manuais de filosofia trazidos pelos colegas. Tinha o costume de presenteá-los com
os mais variados cursos, de geometria a metafísica. Se isso os aborrecia,
convidava-os para jogar baralho, em que adquirira um domínio quase
profissional, mantendo constantemente o senso de humor, num ambiente rico em
brincadeiras das quais freqüentemente era a vítima. Henry Delaunay lembra-se que
Saint-Exupéry possuía grande capacidade de zombar de si mesmo, fazendo os
mecânicos rolarem de rir. Outras testemunhas negam essa imagem, dizendo que ele
se ofendia ao ser objeto de brincadeiras, mas isso passava rapidamente.
Saint-Exupéry
não era apenas diplomata, diretor de base e animador de reuniões; acima de
tudo, tinha de proteger os pilotos da selvageria das tribos nômades em caso de
acidente. Ao realizar com êxito essa missão, assentava as bases de uma
filosofia segundo a qual todos os homens vivem em dependência mútua, sem motivo
de exclusão nem conflitos raciais. Conseguiu ser bem-sucedido nessa ação
permanente de salvamento em pleno deserto graças a seu instinto e a seu
temperamento particular. Em primeiro lugar era preciso fazer alianças, e, após
ter “domesticado” os espanhóis com freqüentes visitas ao forte e numerosas
partidas de baralho ou xadrez, superou a hostilidade das tribos árabes,
tratando-as com um respeito que não era comum nos europeus.
Seus
primeiros amigos foram as crianças seminuas e subalimentadas que viviam nos
acampamentos em volta do forte. Ele lhes dava chocolates e biscoitos. Para
elas, Antoine era o comandante dos pássaros. A franqueza e a generosidade de
Saint-Exupéry também lhe permitiram estabelecer vínculos de amizade com as
tribos hostis aos espanhóis confinados no forte; esta estima aumentou ainda mais
porque iniciou cursos de árabe na tenda dos chefes. Sua influência crescera
pela facilidade de usar o dinheiro da companhia para pagar intérpretes que
viajavam nos aviões do correio. Um de seus maiores sucessos foi reunir fundos
suficientes para libertar um escravo chamado Bark, como conta em Terra dos
Homens.
No
verão de 1928, Saint-Exupéry selara uma aliança com a tribo menos hostil, os
Irzaguin, que lhe forneceu escoltas armadas em diversas missões no deserto. Mais
tarde, conseguiu uma paz precária com outros chefes guerreiros rivais, apesar
dos freqüentes ataques das tropas francesas fora do enclave espanhol. Mas nunca
conseguiu um acordo com os R’gueibat, a mais belicosa das tribos nômades. Suspeitava-se
de que os espanhóis lhes forneciam munição para de- sestabilizar os interesses
da França, porém a maioria de suas armas era comprada com o dinheiro dos
resgates que obtinham ao capturar pilotos franceses.
Todas
as manhãs, a primeira tarefa de Saint-Exupéry era realizar vôos de manutenção,
a fim de evitar os efeitos da condensação sobre a mecânica dos aviões.
Geralmente voava durante uma hora, aumentando gradualmente seu raio de
reconhecimento, até conhecer os arredores de cabo Juby bem melhor que a
guarnição espanhola. Algumas vezes levava consigo algum chefe de tribo, esperando
impressioná-lo. Aproveitava essas saídas para identificar as pistas de
emergência e vigiar os deslocamentos dos rebeldes. Havia muitos acidentes
aéreos no deserto e, com freqüência, os pilotos eram torturados antes do
pagamento do resgate. Saint-Exupéry chegou a cabo Juby consciente dos atrozes
assassinatos perpetrados pelos guerreiros; alguns deles se vingavam de ataques
efetuados pela aviação militar francesa, que operava com aviões semelhantes aos
da Aéropostale. Poucas máquinas conseguiam penetrar no espaço aéreo desse
enclave espanhol desértico sem se tornarem alvo das balas de um bando árabe.
Alguns
meses antes de chegar a cabo Juby, Saint-Exupéry teve uma amostra dos perigos
que o esperavam ao acompanhar, como passageiro, o piloto René Riguelle. Henri
Guillaumet escoltava-os em outro avião, de acordo com a ordem estrita da
companhia, que proibia vôos solitários. Isso aconteceu pouco após a morte de um
aviador francês e de um mecânico espanhol. Outro piloto francês, capturado no
mesmo episódio, tentou suicidar-se para escapar da tortura e morreu pouco tempo
depois de ter sido solto. Os dois destroços calcinados dos Bréguet ainda eram
claramente visíveis do céu.
Ao
extremo sul do enclave espanhol, o motor de Riguelle explodiu, e ele teve de
fazer um pouso forçado. Guillaumet deu meia- volta para vir ajudá-lo, e a
maioria das sacolas de correio foi transferida para seu aparelho. Enquanto
Saint-Exupéry montava guarda ao lado dos sacos restantes e do avião danificado,
Riguelle e Guillaumet decolavam em busca de socorro. Armado com as pistolas dos
companheiros, Saint-Exupéry escavou na duna uma posição defensiva, pronto a
lutar por sua vida e pelo correio. Ficou de sentinela durante horas, esperando
um ataque dos guerreiros do sul que recentemente tinham capturado e pedido
resgate pelo seu amigo Jean Mermoz.
Após
ter colocado os revólveres e cinco pentes de balas em cima da areia, sentiu-se
pela primeira vez dono de sua própria vida e, à medida que o dia passava, foi
invadido pelo mistério e pelo perigo do Saara. Em Wind, Sand and Stars,
declarou que ficara enfeitiçado por algo intangível e desconhecido. Era o amor
pelo Saara, que, como o próprio amor, nasce de um rosto que percebemos sem
nunca tê-lo visto realmente. “Após essa primeira visão de seu novo amor,
estabelece-se para sempre um vínculo indefinível entre a pessoa e a areia
revestida de ouro pelo sol poente”, escreveu ele.
Ao crepúsculo, quando seus colegas
regressaram, revelaram-lhe que não havia mesmo nenhum motivo de inquietação.
Eles tinham esquecido de dizer-lhe que estava em território francês pacificado,
no qual poderia permanecer muitos meses sem qualquer perigo. Na edição
francesa, Saint-Exupéry não menciona esse fato nem a revelação de sua paixão
pelo Saara.
Após
o conserto dos motores, os três pilotos passaram a noite ao ar livre no terraço
de um forte colonial, perto da atual cidade de Nouakchott, capital da
Mauritânia. Esse posto militar avançado era guardado por quinze indígenas e
apenas um sargento francês. O suboficial sentia saudade da pátria e não podia
superar a vergonha de não ter tido vinho na adega para festejar a visita de um
capitão, alguns meses antes.
Naquela
noite, os três amigos escutaram o sargento “falar das estrelas”. Enquanto
Saint-Exupéry contemplava o céu mágico do deserto, seu amor pela Saara
aumentava e ele lamentou que a noite não durasse 1.000 anos. Em Terra dos
Homens, diante da pergunta: “O que é o deserto para nós?”, ele responde: “Era o
que nascia em nós. Aquilo que aprendíamos sobre nós mesmos.”
Em
julho de 1928, Saint-Exupéry já não tinha nada do rapaz desajeitado e tímido
encontrado por Didier Daurat quase dois anos antes. Tornara-se um chefe
respeitado, que adquirira suficiente confiança em si mesmo para contornar
algumas vezes o regulamento da companhia e tomar iniciativas. Sua
despreocupação com relação às instruções da Aéropostale manifestou-se de
maneira particularmente espetacular quando fez uma tentativa, coroada de
sucesso, de recuperar um avião abatido em território inimigo.
Em
18 de julho, Riguelle foi obrigado a aterrissar a 30 quilômetros ao sul da
base, num setor onde os rebeldes tinham capturado e pedido resgate por um
piloto espanhol alguns meses antes. Enquanto Riguelle era levado são e salvo a
cabo Juby pelo piloto que o escoltava, Saint-Exupéry começava a se preparar
para recuperar o aparelho danificado, numa operação sem precedentes, como
escreveu no seu relatório. Após dois dias de negociações com árabes pouco
entusiasmados, tinha preparado uma escolta armada de quinze homens para
conduzi-lo até o avião caído.
Em
companhia de um mecânico, Saint-Exupéry montou a cavalo e pôs-se à frente de
uma estranha caravana composta por seis cavalos, dois asnos, um camelo que
transportava a bagagem e outros dois que puxavam uma carroça improvisada para
transportar um motor sobressalente.
“Pela primeira vez um camelo é utilizado como animal de tração, pelo menos
aqui”, escreveu no relatório oficial, um dos múltiplos relatos de sua
expedição.
Apesar
da ameaça de um ataque árabe, Saint-Exupéry fiscalizou a preparação de uma
pista de 90 metros de comprimento, com uma rampa. Enquanto o mecânico
trabalhava no motor, o destacamento mouro, composto de Irzaguin, entrou em
pânico ao escutar tiros de arma de fogo de um grupo rival, os Alt toussa. Doze
Irzaguin tinham sido mortos recentemente durante um ataque dessa tribo, e logo
inventaram uma desculpa para abandonar a operação de resgate do avião. Um
mensageiro árabe disse que o comandante da guarnição de cabo Juby ordenara a
retirada, e a pequena caravana teria de regressar sem terminar os consertos.
Em
seu relatório, Saint-Exupéry explica que os homens da escolta só aceitaram
voltar ao avião acidentado após terem sido “feridos no amor próprio”, alusão
que explica numa carta a Yvonne de Les- trange. Ele incentivou os guerreiros dizendo-lhes
que se sentiria mais feliz com um grupo de mulheres.
De
acordo com seu relatório e cartas posteriores, Antoine dava a impressão de ter
tentado o resgate para testar sua própria coragem. Dois aviões espanhóis
sobrevoaram seu acampamento para preveni-lo que os rebeldes árabes estavam se
aproximando, porém ele não levou a advertência em consideração e passou o dia
inteiro defendendo suas posições em volta do avião sob fogo inimigo. Enquanto
os homens permaneciam achatados no solo ou deslocavam-se rastejando,
Saint-Exupéry desafiava os atiradores passeando nas dunas. Numa carta a Raymond
Vanier, o representante da Aéropostale em Dacar, qualificou seu batismo de fogo
de “magnífico”. O pouco caso que aparentemente fazia de sua própria segurança
incentivou as equipes de resgate a terminar os trabalhos na pista e, por volta
das 5 horas da tarde, Saint-Exupéry pôde reconduzir o avião a cabo Juby com o
mecânico como passageiro.
Num
bilhete a Didier Daurat, Saint-Exupéry contava que os espanhóis tinham
utilizado um navio de guerra para proteger uma operação de salvamento de um
avião acidentado na praia perto de cabo Juby, enquanto seu técnico e ele tinham
passado dois dias e duas noites em território inimigo para recuperar um
aparelho da companhia. Essa pequena demostração de bravura literária estava
acompanhada de um pedido de não levar em consideração o custo da intervenção,
devido à impossibilidade de fornecer recibos.
Posteriormente, pareceu constrangido pelo
prazer pueril que sentira ao brincar de guerreiro no deserto. O prefácio de
André Gide em Vôo Noturno reproduz um trecho de uma carta de Saint- Exupéry que
menciona esse incidente. O texto original figurava numa carta a Yvonne de
Lestrange, na qual Antoine escrevia que tinha ouvido o assobio das balas nas
orelhas pela primeira vez na vida e estava orgulhoso de ter mantido o sangue
frio muito melhor que seus homens. Mas esse incidente lhe fizera compreender
por que Platão colocava a coragem física em último lugar na lista das virtudes
humanas. “Ela não é feita de belos sentimentos: um pouco de raiva, um pouco de
vaidade, muita teimosia e um vulgar prazer esportivo”, precisava ele. “Nunca
mais admirarei um homem que seja apenas corajoso.”
A
verdade talvez seja simplesmente que a façanha não despertou grande interesse
por parte dos colegas, que eram blasés em matéria de aventuras. Mais tarde
Saint-Exupéry admitiu que sua batalha das dunas limitara-se a três tiros de carabina
disparados a uma boa distância. Seus amigos aviadores mostraram-se mais
elogiosos após uma operação muito mais importante liderada por Saint-Exupéry,
na qual ele revelou uma capacidade insuspeita de habilidade, perseverança e
diplomacia. Essa missão de busca, que durou três meses, está relacionada com
dois aviadores abatidos, Marcei Reine e Édouard Serre.
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