sábado, 5 de agosto de 2017

TERRA DOS HOMENS - 18

V

            Em Juby, hoje, Kemal e seu irmão Mouyane me convidaram para tomar chá em sua tenda. Mouyane me olha em silêncio e guarda uma reserva feroz, o véu azul esticado sobre a boca. Só Kemal fala comigo e faz as honras da casa:

            — Minha tenda, meus camelos, minhas mulheres, meus escravos são seus.

             Sempre sem retirar os olhos de mim, Mouyane inclina-se para o irmão, diz algumas palavras e volta ao seu silêncio.

            — Que diz ele?

            — Diz: "Bonnafous roubou mil camelos do R' Gheibat

            Não conheço esse capitão Bonnafous, oficial meharista* da coluna de Atar. Mas conheço a sua grande legenda entre os mouros. Falam dele com ódio, mas como se fosse um deus. Sua presença valoriza o areal. Ele acaba de surgir hoje mesmo, sem se saber como, à retaguarda dos rezzous que marchavam para o Sul, roubando-lhes centenas de camelos, obrigando-os a lutar para salvar seus tesouros que pensavam estar em segurança. E agora, tendo salvo Atar por essa aparição de arcanjo, tendo feito seu acampamento num alto tabuleiro calcário, ele lá permanece, de pé, como um desafio. E sua irradiação é tal que obriga as tribos a se porem em marcha para enfrentar seu gládio.

            Mouyane me olha com mais dureza e novamente murmura alguma coisa.

            — Que diz ele?

            — Diz: "Partiremos amanhã em rezzou contra Bonnafous. Trezentos fuzis.”

            Eu bem pressentira alguma coisa. Aqueles camelos que há três dias estão sendo levados ao poço, aqueles conciliábulos, aquele fervor. Parece que se apresta um veleiro invisível. E o vento do largo, que o impulsionará, já circula. Graças a Bonnafous, cada passo para o Sul é um passo cheio de glória. Eu nem sei distinguir o que essas partidas contêm de ódio e de amor.

            É suntuoso possuir no mundo um tão belo inimigo a assassinar. Onde ele surge, as tribos próximas recolhem as tendas, juntam os camelos e fogem, tremendo à ideia de encontrá-lo face a face. Mas as tribos mais distantes são tomadas de uma vertigem igual à vertigem do amor. Os homens abandonam a paz das tendas, os braços das mulheres, o sono feliz, e descobrem que no mundo nada seria melhor que, depois de dois meses de marcha extenuante para o Sul, dois meses de sede abrasadora, de longas esperas, de cócoras, sob o vento de areia, cair de surpresa, pela madrugada, sobre a coluna volante de Atar e então, se Deus quiser, assassinar o capitão Bonnafous.

            — Bonnafous é forte — confessa-me Kemal

            Agora sei o segredo deles. Como o homem que deseja uma mulher sonha com o seu andar indiferente de passeio e se vira e revira a noite inteira, ferido, incendiado por aquele passear indiferente que ela continua em seus sonhos, eles são atormentados pelo passo distante de Bonnafous. Dominando os rezzous lançados contra ele, esse cristão vestido de mouro, à frente de seus duzentos piratas mouros, penetrou em território sublevado, onde o último de seus próprios homens, longe da vigilância francesa, poderia abandonar a servidão, impunemente, e sacrificá-lo ao seu Deus sobre as mesas de pedras; onde unicamente o seu prestígio o mantém, onde é a sua própria fraqueza que os espanta. E nesta noite, em meio aos sonhos roucos desses mouros, ele passa e volta a passar indiferente, e seus passos ressoam até no coração do deserto.

            Mouyane medita, sempre imóvel no fundo da tenda, como um baixo-relevo de granito azul. Só brilham seus olhos e o punhal de prata, que não é um enfeite. Como ele mudou depois que reuniu o rezzou! Sente, como nunca, a sua própria nobreza. E esmaga-me com o seu desprezo. Porque vai marchar contra Bonnafous, porque partirá pela madrugada levado por um ódio que tem todos os sinais do amor.

            Ainda uma vez, inclina-se para o irmão, fala em voz muito baixa e me olha.

            — Que diz ele?

            — Diz que atirará em você se o encontrar longe do forte.

            — Porquê?

            — Ele diz: “Você tem os aviões e o telégrafo sem fio, você tem Bonnafous, mas não tem a verdade."

            Mouyane está me julgando, imóvel em seus véus azuis de dobras de estátua.

            Ele diz: "Você come salada como as cabras e come porco como os porcos. Suas mulheres sem pudor mostram o rosto." Ele já as viu. Ele diz: “Você não reza nunca." Ele diz: “Para que lhe servem os aviões, o telégrafo sem fio e Bonnafous, se você não tem a verdade?”





            E eu admiro esse mouro que não defende a sua liberdade, porque no deserto sempre se é livre, que não defende tesouros visíveis, porque o deserto é nu, mas que defende um reino secreto. No silêncio das ondas de areia Bonnafous conduz seu pelotão como um velho corsário. E graças a ele este acampamento de cabo Juby não é mais um lar de pastores ociosos. A tempestade de Bonnafous pesa sobre seu flanco e, por causa dele, as tendas serão enroladas esta noite. E como é pungente esse silêncio para as bandas do Sul: é o silêncio de Bonnafous! Mouyane, velho caçador, sente no vento que ele caminha.

            Quando Bonnafous voltar à França, seus inimigos, longe de se alegrarem, o chorarão, como se sua partida roubasse um dos polos do deserto, um pouco de prestígio de suas existências. E eles me dirão:

            — Por que ele vai embora, o seu Bonnafous?

            — Não sei...

            Ele jogou sua vida contra a deles, e durante anos aceitou suas regras de jogo. Dormiu com a cabeça apoiada às suas pedras. Durante a

             eterna perseguição, conheceu, como eles, as noites bíblicas, feitas de estrelas e de vento. E eis que ele mostra, indo-se embora, que não jogava um jogo essencial. Vai-se embora sem remorsos. E os mouros, que ele deixa jogando sozinhos, perdem a confiança num sentido da vida que não prende mais os homens até a carne. Apesar de tudo querem acreditar nele:

            — Bonnafous: ele voltará.

            — Não sei...


            Voltará, pensam os mouros. Os jogos da Europa não poderão mais contentá-lo, nem os bridges da guarnição, nem a promoção, nem as mulheres. Voltará, atormentado pela nobreza perdida, para aquela terra onde cada passo faz bater o coração, como um passo para o amor. Pensou que aqui apenas havia vivido uma aventura e que lá em sua terra acharia o essencial; mas descobrirá com desgosto que as únicas riquezas verdadeiras ele as possuiu aqui, no deserto: o prestígio da areia, da noite, o silêncio, esta pátria de vento e de estrelas. E se Bonnafous voltar um dia, a notícia, desde a primeira noite, se espalhará pelas terras sublevadas. Os mouros saberão que ele está dormindo em alguma parte, no Saara, no meio de duzentos piratas. E então, à noite, em silêncio, levarão os mehara aos poços para beber água. Completarão as provisões de cevada. Verificarão as armas. Transportados por aquele ódio, ou por aquele amor.


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