Didier
Daurat falava em termos entusiastas de seu “magnífico embaixador” em cabo Juby;
imaginava Saint-Exupéry “fazendo brilhar em volta de si, até os confins do
deserto, o clarão do prestígio da França, irradiando a nobreza dos nossos
sentimentos e a generosa vitalidade do nosso país”.
Elogios
como esse valeram a Saint-Exupéry a Legião de Honra pela tarefa realizada no
Saara, onde os indígenas o chamavam de “o grande eremita branco”.
Daurat
também evoca imagens menos gloriosas: as de Saint- Exupéry recebendo seus
hóspedes com um pijama velho, e as de sua “embaixada” mobiliada com algumas caixas
de madeira e uma mesa construída com uma tábua colocada sobre barris de
petróleo. O caráter excêntrico de Saint-Exupéry raramente é revelado em seus
próprios escritos, porém o melhor retrato talvez seja o esboçado por Jean-René Lefebvre,
um de seus mecânicos que depois se tornou inspetor principal da Air France, quando
a Aéropostale transformou-se em empresa nacional.
“Ninguém
acreditava que Daurat pudesse nomear alguém tão desorganizado para se ocupar da
base de cabo Juby”, dizia ele. “Sentia-me horrorizado diante da idéia de
entrar em seu escritório. Tudo era desordenado: documentos oficiais, anotações
de trabalho, sua correspondência pessoal, seus desenhos. Como é que alguém
podia se sentir bem no meio de tamanha desordem?”
Embora
Saint-Exupéry passasse horas conversando com os mecânicos, Lefebvre admite que
ele se sentia mais à vontade com outros pilotos, como Guillaumet, por exemplo.
“Saint-Ex não era um esnobe, mas possuía alguns traços de grande senhor. Eu
apreciava seu lado estranho e sonhador, mas do ponto de vista da mecânica ele cometia
erros e tinha fantasias que podiam ser perigosas. Diversas vezes fui testemunha
desse tipo de experiência em vôo e fiquei muito assustado.”
A
irritante negligência de Saint-Exupéry manifestou-se durante uma viagem a Villa
Cisneros, ao sul do território espanhol, aonde ia levar a correspondência da
guarnição, com Lefebvre como passageiro. O avião teve dificuldades para
decolar e, segundo o mecânico, começou a “tossir”, dando pulos e soltando
fumaça, quando sobrevoavam a baía de Rio de Oro.
“O
motor estava superaquecido, e Saint-Ex desceu quase até o nível do mar”, conta
Lefebvre. “Comecei a tirar os sapatos e as meias, pronto para jogar-me na água,
com a esperança de me salvar a nado. A reação de Saint-Exupéry foi começar a
rabiscar caricaturas, que me estendeu com um grande sorriso”.
Os
desenhos eram silhuetas nadando em alto mar, náufragos como Robinson Crusoé, ou
prisioneiros do deserto. Saint-Exupéry não levou em consideração o alerta do
motor e percorreu os 400 quilômetros que o separavam de Port-Étienne, em
território francês, onde anotou em seu diário de bordo: “Bom motor. Sem
comentários”.
Durante
o jantar, quando Lefebvre mostrou-se estupefato com a pouca importância dada ao
incidente no relatório, Saint-Exupéry replicou que pelo menos a máquina os
conduzira até o destino. Além disso, sabia perfeitamente que Lefebvre
consertaria o motor, pois voltariam a Villa Cisneros no mesmo avião. Em outra
missão, quando um motor começou a falhar, Saint-Exupéry tentou tranqüilizar o
mecânico afirmando que pilotar um aeroplano não tinha nada a ver com guiar um
carro.
“Você
não precisa olhar para onde vai”, acrescentou. “Aviões foram feitos para voar
sempre em frente, sem ninguém se preocupar com nada.” Naquela época, os
aparelhos não possuíam piloto automático. Como outros aviadores, Saint-Exupéry
prendia a alavanca de comando com uma tira de borracha. Durante esses longos
vôos rotineiros em linha reta, quando nenhuma vigilância era necessária, ele
deixava a imaginação escapar para onde ela quisesse ir. Não estava interessado
apenas em literatura ou filosofia. Durante os anos 30, depositou catorze
patentes para a indústria aeronáutica, que propunham, entre outros, sistemas
para navegação e aterrissagem.
Lefebvre
estava sendo franco ao expressar sua reticência de voar com Saint-Exupéry, e
essas acusações aumentaram sua reputação de piloto imprudente, que teria
causado diversos acidentes por falta de concentração. Paul Nubalde, técnico em Villa
Cisneros, em 1928, que depois se tornou mecânico-chefe na Air France,
contribuiu para essa impressão desfavorável. A opinião de Nubalde sobre as
capacidades de Saint-Exupéry tinha influência, pois ele era afilhado de Didier
Daurat. Vários anos após ter voado como passageiro com Antoine no deserto,
Nubalde declarou que preferia voar com “verdadeiros pilotos”.
“Não
era um grande aviador”, disse. “Sempre estava com alguma outra coisa na cabeça
e nem sempre prestava atenção àquilo que estava fazendo.”
Ao
longo dos anos, ocorreram diversos acidentes que poderiam ser imputados a erros
de pilotagem, mas seria difícil calcular o valor de Saint-Exupéry em relação
aos outros pilotos. Para que a comparação fosse válida, seria preciso conhecer
as folhas de serviço dos outros pioneiros de sua geração, o número de suas
horas de vôo e a confiabilidade de seus aparelhos. E tudo isso poderia não
fazer qualquer sentido se levássemos em consideração as condições de trabalho
no deserto, onde, com os Bréguet da Aéropostale, um vôo em cada seis tinha
problemas.
A
areia causava constantes avarias e tornava a vida ainda mais insuportável em
cabo Juby. O vento do mar nunca parava de soprar, e todas as noites erguia
dunas ao longo das muralhas do forte. O costume de Saint-Exupéry de viver de
pijama é menos estranho do que parece. A maioria dos soldados da guarnição
espanhola fazia a mesma coisa, pois a areia tornava insuportável o uso do
uniforme. Mas o maior problema era a quantidade de areia que se infiltrava nos
alimentos.
Enquanto
Joseph Kessel descrevia o aspecto sinistro de cabo Juby e Saint-Exupéry enviava
cartas lúgubres, o testemunho de Henri Delaunay nos fornece uma imagem mais divertida
da base Latécoère. Delaunay foi um dos pioneiros do transporte do correio aéreo
e, durante a guerra, voou nos bombardeiros da Royal Air Force. Delaunay
publicou um livro, Araignée clu Soir e, num trecho notável, recorda um dia
passado em cabo Juby com três dos mais célebres aviadores do período anterior à
guerra: Guillaumet, Mermoz e Saint- Exupéry.
“A
choça estreita ressoava com nossas gargalhadas”, escreveu Delaunay,
lembrando-se do clima de férias, misto de brincadeiras tolas, desordem, calor e
camaradagem. “A coisa mais estranha de todas era a coleção de animais mais ou
menos domesticados, um pouco repugnantes à primeira vista, que enchiam a cabana.
Foi preciso amarrar uma hiena no lado de fora, porque seu cheiro era muito
forte, porém o reduzido espaço que servia de sala de jantar dos pilotos estava
parcialmente ocupado por um macaco meio louco chamado Kiki, que comia lâminas
de barbear; uma cadela de raça indefinida chamada Mirra, extremamente gulosa e
que não parava de latir; e um gato enorme, Paf, que brigava continuamente com o
macaco.”
Delaunay
descreve uma das raras ocasiões em que a monotonia da existência de
Saint-Exupéry foi rompida pela chegada de quatro aviões, dois provenientes do
norte e dois do sul, que tinham feito escala para encher os tanques ou submeter-se
a uma revisão técnica. Os tripulantes instalaram-se na cozinha rudimentar, onde
as refeições eram preparadas com uma lâmpada de solda. Enquanto dois criados
árabes preparavam o almoço, Guillaumet e Saint-Exupéry rivalizavam na invenção
de trocadilhos tolos, e Mermoz concentrava-se nas palavras cruzadas,
balançando-se sobre os dois pés traseiros da cadeira.
“Divertíamo-nos
como crianças”, acrescenta Delaunay, contando como amarraram a extremidade de
um barbante na cadeira de Mermoz e a outra ao cachorro que dormia, sabendo que
este sempre saltava quando a comida era trazida.
Hidalgo
de Cisneros, futuro comandante-em-chefe da aviação republicana espanhola,
evocou numa entrevista a Icare, a revista dos pilotos de linha franceses, o
papel de animador desempenhado por Saint-Exupéry em cabo Juby. Cisneros fora
designado para a guarnição de cabo Juby como piloto e considerava que o bom
humor de Antoine, assim como seu caráter complacente, diminuía a hostilidade
espanhola para com os aviadores franceses. Antoine visitava regularmente o
forte e divertia os soldados espanhóis, mortos de tédio, com truques de baralho
ou sessões de hipnose, que aprendera com um colega de regimento em Estrasburgo,
sete anos antes.
Numa
noite memorável, toda a guarnição reuniu-se para um banquete improvisado em
honra de Saint-Exupéry, para ser perdoada por um fato que quase terminou em
tragédia, causado por um cão de guarda. Para reduzir o número de pessoas que
vigiavam o aeródromo, Cisneros mandara vir da Espanha um enorme cachorro. Um
dia, os pilotos espanhóis ouviram gritos de socorro e encontraram
Saint-Exupéry caído no chão, após ter sido atacado pelo cão. “O cachorro
mordera seu ombro e estava prestes a despedaçá-lo”, conta Cisneros. “Tentei
inutilmente convencê-lo a soltar a presa. Então, avistando no solo uma barra
de ferro, peguei-a e bati na cabeça do animal, deixando-o meio morto.”
Saint-Exupéry
teve de tratar dos ferimentos durante uma semana. Esse acidente foi uma das
raras ocasiões em que o dom que Antoine possuía com os animais falhou. Seu
fascínio pelos bichos remonta à sua infância em Saint-Maurice, onde levava uma
tartaruga presa a uma correia.
“Aqui,
meu papel consiste em domesticar”, escrevia à mãe em 1928, a propósito de um
camaleão que parecia um diplococo e era observado por ele horas a fio. Também
possuía uma gazela que comia em sua mão, mas sua experiência mais duradoura foi
com uma raposa do deserto, menor que um gato. Ele fala sobre ela numa carta à
irmã Gabrielle, enviando também um croquis da raposa “com orelhas imensas”. Ele
se afeiçoou ao pequeno animal, passando horas a domesticá-lo. A raposa era
muito selvagem e rugia como um leão, contava ele. Quinze anos mais tarde, em O
Pequeno Príncipe, a raposa de orelhas compridas reaparecerá num trecho em que
Saint-Exupéry evoca o amor mútuo que nasce entre dois seres que se esforçam
para “cativar” um ao outro.
“Se
você me cativar, sentiremos necessidade um do outro”, diz a raposa ao pequeno
príncipe. “Você será para mim único no mundo.” Essa relação privilegiada
ressurgiu quando o avião de Saint- Exupéry capotou no deserto líbio, em 1935,
um acidente que inspirou uma das mais longas recordações em Terra dos Homens.
Saint-Exupéry estava prestes a morrer de sede, mas uma raposa transmitiu-lhe a
vontade de sobreviver.
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