quarta-feira, 2 de agosto de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 29


            Didier Daurat falava em termos entusiastas de seu “magnífico embaixador” em cabo Juby; imaginava Saint-Exupéry “fazendo bri­lhar em volta de si, até os confins do deserto, o clarão do prestígio da França, irradiando a nobreza dos nossos sentimentos e a generosa vitalidade do nosso país”.

            Elogios como esse valeram a Saint-Exupéry a Legião de Honra pela tarefa realizada no Saara, onde os indígenas o chamavam de “o grande eremita branco”.

            Daurat também evoca imagens menos gloriosas: as de Saint- Exupéry recebendo seus hóspedes com um pijama velho, e as de sua “embaixada” mobiliada com algumas caixas de madeira e uma mesa construída com uma tábua colocada sobre barris de petróleo. O caráter excêntrico de Saint-Exupéry raramente é revelado em seus próprios escritos, porém o melhor retrato talvez seja o esboçado por Jean-René Lefebvre, um de seus mecânicos que depois se tornou inspetor principal da Air France, quando a Aéropostale transformou-se em empresa nacional.

            “Ninguém acreditava que Daurat pudesse nomear alguém tão desorganizado para se ocupar da base de cabo Juby”, dizia ele. “Sen­tia-me horrorizado diante da idéia de entrar em seu escritório. Tudo era desordenado: documentos oficiais, anotações de trabalho, sua correspondência pessoal, seus desenhos. Como é que alguém podia se sentir bem no meio de tamanha desordem?”

            Embora Saint-Exupéry passasse horas conversando com os me­cânicos, Lefebvre admite que ele se sentia mais à vontade com outros pilotos, como Guillaumet, por exemplo. “Saint-Ex não era um esno­be, mas possuía alguns traços de grande senhor. Eu apreciava seu lado estranho e sonhador, mas do ponto de vista da mecânica ele cometia erros e tinha fantasias que podiam ser perigosas. Diversas vezes fui testemunha desse tipo de experiência em vôo e fiquei muito assustado.”

            A irritante negligência de Saint-Exupéry manifestou-se durante uma viagem a Villa Cisneros, ao sul do território espanhol, aonde ia levar a correspondência da guarnição, com Lefebvre como pas­sageiro. O avião teve dificuldades para decolar e, segundo o mecâ­nico, começou a “tossir”, dando pulos e soltando fumaça, quando sobrevoavam a baía de Rio de Oro.

            “O motor estava superaquecido, e Saint-Ex desceu quase até o nível do mar”, conta Lefebvre. “Comecei a tirar os sapatos e as meias, pronto para jogar-me na água, com a esperança de me salvar a nado. A reação de Saint-Exupéry foi começar a rabiscar caricaturas, que me estendeu com um grande sorriso”.

            Os desenhos eram silhuetas nadando em alto mar, náufragos como Robinson Crusoé, ou prisioneiros do deserto. Saint-Exupéry não levou em consideração o alerta do motor e percorreu os 400 quilômetros que o separavam de Port-Étienne, em território francês, onde anotou em seu diário de bordo: “Bom motor. Sem comentários”.

            Durante o jantar, quando Lefebvre mostrou-se estupefato com a pouca importância dada ao incidente no relatório, Saint-Exupéry replicou que pelo menos a máquina os conduzira até o destino. Além disso, sabia perfeitamente que Lefebvre consertaria o motor, pois voltariam a Villa Cisneros no mesmo avião. Em outra missão, quando um motor começou a falhar, Saint-Exupéry tentou tranqüilizar o me­cânico afirmando que pilotar um aeroplano não tinha nada a ver com guiar um carro.

            “Você não precisa olhar para onde vai”, acrescentou. “Aviões foram feitos para voar sempre em frente, sem ninguém se preocupar com nada.” Naquela época, os aparelhos não possuíam piloto auto­mático. Como outros aviadores, Saint-Exupéry prendia a alavanca de comando com uma tira de borracha. Durante esses longos vôos ro­tineiros em linha reta, quando nenhuma vigilância era necessária, ele deixava a imaginação escapar para onde ela quisesse ir. Não estava interessado apenas em literatura ou filosofia. Durante os anos 30, depositou catorze patentes para a indústria aeronáutica, que propu­nham, entre outros, sistemas para navegação e aterrissagem.

            Lefebvre estava sendo franco ao expressar sua reticência de voar com Saint-Exupéry, e essas acusações aumentaram sua reputação de piloto imprudente, que teria causado diversos acidentes por falta de concentração. Paul Nubalde, técnico em Villa Cisneros, em 1928, que depois se tornou mecânico-chefe na Air France, contribuiu para essa impressão desfavorável. A opinião de Nubalde sobre as capaci­dades de Saint-Exupéry tinha influência, pois ele era afilhado de Didier Daurat. Vários anos após ter voado como passageiro com Antoine no deserto, Nubalde declarou que preferia voar com “ver­dadeiros pilotos”.

            “Não era um grande aviador”, disse. “Sempre estava com al­guma outra coisa na cabeça e nem sempre prestava atenção àquilo que estava fazendo.”

            Ao longo dos anos, ocorreram diversos acidentes que poderiam ser imputados a erros de pilotagem, mas seria difícil calcular o valor de Saint-Exupéry em relação aos outros pilotos. Para que a compa­ração fosse válida, seria preciso conhecer as folhas de serviço dos outros pioneiros de sua geração, o número de suas horas de vôo e a confiabilidade de seus aparelhos. E tudo isso poderia não fazer qualquer sentido se levássemos em consideração as condições de trabalho no deserto, onde, com os Bréguet da Aéropostale, um vôo em cada seis tinha problemas.

            A areia causava constantes avarias e tornava a vida ainda mais insuportável em cabo Juby. O vento do mar nunca parava de soprar, e todas as noites erguia dunas ao longo das muralhas do forte. O costume de Saint-Exupéry de viver de pijama é menos estranho do que parece. A maioria dos soldados da guarnição espanhola fazia a mesma coisa, pois a areia tornava insuportável o uso do uniforme. Mas o maior problema era a quantidade de areia que se infiltrava nos alimentos.

            Enquanto Joseph Kessel descrevia o aspecto sinistro de cabo Juby e Saint-Exupéry enviava cartas lúgubres, o testemunho de Henri Delaunay nos fornece uma imagem mais divertida da base Latécoère. Delaunay foi um dos pioneiros do transporte do correio aéreo e, durante a guerra, voou nos bombardeiros da Royal Air Force. De­launay publicou um livro, Araignée clu Soir e, num trecho notável, recorda um dia passado em cabo Juby com três dos mais célebres aviadores do período anterior à guerra: Guillaumet, Mermoz e Saint- Exupéry.

            “A choça estreita ressoava com nossas gargalhadas”, escreveu Delaunay, lembrando-se do clima de férias, misto de brincadeiras tolas, desordem, calor e camaradagem. “A coisa mais estranha de todas era a coleção de animais mais ou menos domesticados, um pouco repugnantes à primeira vista, que enchiam a cabana. Foi pre­ciso amarrar uma hiena no lado de fora, porque seu cheiro era muito forte, porém o reduzido espaço que servia de sala de jantar dos pilotos estava parcialmente ocupado por um macaco meio louco chamado Kiki, que comia lâminas de barbear; uma cadela de raça indefinida chamada Mirra, extremamente gulosa e que não parava de latir; e um gato enorme, Paf, que brigava continuamente com o macaco.”

            Delaunay descreve uma das raras ocasiões em que a monotonia da existência de Saint-Exupéry foi rompida pela chegada de quatro aviões, dois provenientes do norte e dois do sul, que tinham feito escala para encher os tanques ou submeter-se a uma revisão técnica. Os tripulantes instalaram-se na cozinha rudimentar, onde as refei­ções eram preparadas com uma lâmpada de solda. Enquanto dois criados árabes preparavam o almoço, Guillaumet e Saint-Exupéry ri­valizavam na invenção de trocadilhos tolos, e Mermoz concentrava-se nas palavras cruzadas, balançando-se sobre os dois pés traseiros da cadeira.

            “Divertíamo-nos como crianças”, acrescenta Delaunay, contando como amarraram a extremidade de um barbante na cadeira de Mer­moz e a outra ao cachorro que dormia, sabendo que este sempre saltava quando a comida era trazida.

            Hidalgo de Cisneros, futuro comandante-em-chefe da aviação republicana espanhola, evocou numa entrevista a Icare, a revista dos pilotos de linha franceses, o papel de animador desempenhado por Saint-Exupéry em cabo Juby. Cisneros fora designado para a guarni­ção de cabo Juby como piloto e considerava que o bom humor de Antoine, assim como seu caráter complacente, diminuía a hostilidade espanhola para com os aviadores franceses. Antoine visitava regular­mente o forte e divertia os soldados espanhóis, mortos de tédio, com truques de baralho ou sessões de hipnose, que aprendera com um colega de regimento em Estrasburgo, sete anos antes.

            Numa noite memorável, toda a guarnição reuniu-se para um banquete improvisado em honra de Saint-Exupéry, para ser perdoa­da por um fato que quase terminou em tragédia, causado por um cão de guarda. Para reduzir o número de pessoas que vigiavam o aeródromo, Cisneros mandara vir da Espanha um enorme cachorro. Um dia, os pilotos espanhóis ouviram gritos de socorro e encontra­ram Saint-Exupéry caído no chão, após ter sido atacado pelo cão. “O cachorro mordera seu ombro e estava prestes a despedaçá-lo”, conta Cisneros. “Tentei inutilmente convencê-lo a soltar a presa. En­tão, avistando no solo uma barra de ferro, peguei-a e bati na cabeça do animal, deixando-o meio morto.”

            Saint-Exupéry teve de tratar dos ferimentos durante uma sema­na. Esse acidente foi uma das raras ocasiões em que o dom que Antoine possuía com os animais falhou. Seu fascínio pelos bichos remonta à sua infância em Saint-Maurice, onde levava uma tartaruga presa a uma correia.

            “Aqui, meu papel consiste em domesticar”, escrevia à mãe em 1928, a propósito de um camaleão que parecia um diplococo e era observado por ele horas a fio. Também possuía uma gazela que comia em sua mão, mas sua experiência mais duradoura foi com uma raposa do deserto, menor que um gato. Ele fala sobre ela numa carta à irmã Gabrielle, enviando também um croquis da raposa “com orelhas imensas”. Ele se afeiçoou ao pequeno animal, passando horas a domesticá-lo. A raposa era muito selvagem e rugia como um leão, contava ele. Quinze anos mais tarde, em O Pequeno Príncipe, a raposa de orelhas compridas reaparecerá num trecho em que Saint-Exupéry evoca o amor mútuo que nasce entre dois seres que se esforçam para “cativar” um ao outro.

            “Se você me cativar, sentiremos necessidade um do outro”, diz a raposa ao pequeno príncipe. “Você será para mim único no mun­do.” Essa relação privilegiada ressurgiu quando o avião de Saint- Exupéry capotou no deserto líbio, em 1935, um acidente que inspirou uma das mais longas recordações em Terra dos Homens. Saint-Exupéry estava prestes a morrer de sede, mas uma raposa transmitiu-lhe a vontade de sobreviver.


O forte espanhol de Cap Juby, no Saara,
onde Saint-Exupéry passou dois anos como responsável pelo pequeno aeroporto.
Sua experiência em Cap Juby com o deserto e o povo árabe foi usada na sua Obra Prima, "Cidadela"

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