terça-feira, 1 de agosto de 2017

CORREIO SUL - 17


III

            Desta vez, Jacques Bernis, antes de sua chegada, revelarei quem você é. Você que, desde ontem, os rádios localizam com precisão, que passará aqui os vinte minutos regulamentares, para quem vou abrir uma lata de conservas, desarrolhar uma garrafa de vinho, você que não nos falará do amor ou da morte, de nenhum dos problemas verdadeiros, mas, sim, da direção do vento, do tempo que faz, de seu avião. Você que é igual a qualquer um de nós e que rirá do gracejo de um mecânico, que se queixará do calor...

            Direi que viagem você realiza. Como transforma as aparências, e por que os seus passos, embora sigam ao nosso lado, nunca são os mesmos.

            Saímos da mesma infância: eis que, repentinamente, se levanta na minha memória aquele velho muro arruinado e coberto pela hera. Éramos crianças travessas: "De que você tem medo? Empurre a porta...”

            Um velho muro arruinado e invadido pela hera. Seco, gretado, petrificado pelo sol, petrificado pela evidência. Entre as folhas, rastejavam lagartos, que chamávamos serpente, amando já a imagem dessa fuga que é a morte. Deste lado do muro, as pedras eram mornas, redondas e incubadas como um ovo. Cada torrão de terra, cada raminho despiam-se ao sol de todo o seu mistério. Reinava o verão deste lado do muro, na sua riqueza e plenitude. Víamos um campanário. Escutávamos uma debulhadora. O azul- celeste preenchia todos os vazios. Os camponeses segavam o trigo, o cura sulfatava a vinha, os pais, no salão, jogavam bridge. Os que, há mais de sessenta anos, habitavam este rincão, que do nascimento à morte viviam deste sol, deste trigo, desta habitação, a estas gerações presentes chamávamos “a equipe de guarda". E isso porque gostávamos de pensar que nos encontrávamos na ilhota mais ameaçada, entre dois oceanos temíveis, entre o passado e o futuro.

            "Vire a chave..."

            Era proibido às crianças empurrar essa portinha verde, de um verde desbotado de velha barca, tocar nessa imensa fechadura enferrujada pelo tempo como uma velha âncora pelo mar.

            Sem dúvida, temiam, por nossa causa, aquela cisterna cavada a céu aberto, o horror de uma criança afogada na lama. Atrás da porta, dormia uma água que julgávamos imóvel há mil anos, a qual evocávamos todas as vezes que ouvíamos falar de águas mortas. Minúsculas folhas redondas cobriram-na de um tecido verde: aí jogávamos pedras que formavam círculos.

            Que frescura sob os velhos galhos, pesados como se suportassem o peso do sol. Jamais seus raios amarelaram a relva tenra que cobria o aterro ou atingiram tão precioso estofo. A pedra que lançamos iniciava seu curso como um astro: para nós, aquela água não tinha fundo.

            "Vamos nos sentar..." À nossa volta, havia apenas o silêncio. Gozávamos a frescura, o odor, a umidade que renovavam nossa carne. Estávamos perdidos nos confins do mundo, pois já sabíamos que, antes de tudo, viajar é transformar-se interiormente.

             "Aqui se passa tudo ao contrário..."

            Ali, era o inverno desse pleno verão, desses campos, desses rostos que nos mantinham prisioneiros. Odiávamos esse mundo que nos fora imposto! Àhora do jantar, voltávamos para nossas casas, cheios de segredos, como mergulhadores da índia que houvessem tocado em pérolas. Quando o sol se esconde no horizonte, quando os seus raios tingem a toalha de rosa, ouvíamos palavras que nos deixavam inquietos:

            "Os dias alongam-se..."

            Esse velho refrão, essa vida constituída de estações, férias, casamentos, mortes, todo esse tumulto da superfície, tudo isso nos atingia.

            Fugir, eis o que importava. Aos dez anos, refugiávamo-nos no vigamento do sótão. Pássaros mortos, velhas malas rasgadas, roupas extraordinárias: um pouco dos bastidores da vida. E o tesouro que acreditávamos estar ali escondido, o tesouro que se encontra nas velhas casas descrito exatamente nos contos de fadas: safiras, opalas, diamantes. Esse tesouro que luzia fracamente era a razão de ser de cada parede, de cada viga. Essas enormes vigas que defendiam a casa sabe Deus contra o quê. Sim. Contra o tempo. Pois ele era para nós o grande inimigo. As tradições nos protegiam contra ele. O culto do passado. As enormes vigas. Apenas nós sabíamos que esta morada era como um navio lançado ao mar. Apenas nós, que visitávamos o paiol, a estiva, sabíamos onde estavam suas goteiras. Conhecíamos os buracos dos telhados através dos quais penetravam os pássaros para morrer. Conhecíamos cada fenda do vigamento. Lá embaixo, nos salões, os convidados conversavam, mulheres bonitas dançavam. Que segurança enganadora! Sem dúvida serviam bebidas. Criados negros, luvas brancas. Oh! Visões efêmeras! E nós, lá em cima, olhávamos a noite azul filtrando-se pelas frestas do telhado. Este minúsculo orifício: apenas ahizde uma única estrela — decantada de um céu inteiro — nos atingia. E era a estrela que acreditávamos trazer a doença. Desviávamo-nos; poderia trazer-nos a morte.

            Sobressaltávamo-nos. Que trabalho obscuro, o das coisas... Vigas estaladas pelo tesouro. A cada estalo, sondávamos a madeira. Tudo não passava de uma vagem, prestes a deixar cair o grão. Velha crosta das coisas sob a qual se ocultava, não tínhamos dúvida, algo mais, quando mais não fosse aquela estrela, aquele pequeno diamante duro. Um dia marcharíamos rumo ao norte ou ao sul, ou então dentro de nós próprios, à sua procura. Fugir.

            A estrela que faz dormir dava a volta à ardósia que a encobria, nítida como um sinaL Descíamos para nosso quarto, levando para a grande viagem do devaneio esse conhecimento de um mundo onde a pedra misteriosa flui indefinidamente entre as águas, como no espaço esses tentáculos de luz que mergulham através de mil anos para nos alcançar; onde a casa que estala ao vento está ameaçada como um navio, em que as coisas, uma a uma, eclodem sob a pressão do tesouro.




            — Sente-se. Imaginei-o em perigo. Beba. Pensei que você tivesse sofrido uma pane e estava disposto a ir procurá-lo. O avião já está na pista: olhe. Os Ait-Toussa  

            — Deixe-me partir.

            — Você tem cinco minutos. Olhe para mim. O que aconteceu com Geneviève? Por que sorri?

            — Ah! Nada. Há alguns minutos, na carlinga, lembrei-me de uma velha canção. Senti-me, repentinamente, tão jovem...

            — E Geneviève?

            — Não sei mais. Deixe-me partir.

            —Jacques... responda-me... Você tomou a vê-la?

            — Sim... — ele hesitava — ao voltar a Tolouse, fiz este desvio para vê-la mais uma vez.


            E Jacques Bemis contou-me sua aventura.


Nenhum comentário:

Postar um comentário