sábado, 5 de agosto de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 32


            Reine e Serre só foram liberados em setembro, um mês após a partida de Saint-Exupéry de cabo Juby. Sua volta à França foi adiada por diversas razões, entre elas o salvamento de um tenente ferido da força aérea espanhola, cujo avião fora abatido por um tiro de metralhadora. Um sargento espanhol também fazia parte da equipe de resgate, porém seu avião encalhou na areia na hora do pouso. Saint-Exupéry foi obrigado a acorrer em sua ajuda após ter acompanhado o oficial acidentado ao forte de cabo Juby.

            A operação esteve constantemente ameaçada por um grupo de rebeldes R’gueibat e as tentativas de resgate dos militares espanhóis eram prejudicadas pelas escaramuças com outras tribos. O fracasso dessa última tomada de reféns marcou o início da decadência desses guerreiros, cuja epopéia remontava a várias centenas de anos. Suas principais unidades de ataque tinham sido destruídas numa emboscada preparada pelos franceses, exatamente antes da chegada de Saint-Exupéry ao Saara espanhol, e os sobreviventes foram obrigados, a contragosto, a aceitar uma trégua, enquanto a França fortalecia seu domínio sobre a África ocidental. Assim, Saint-Exupéry escreveu a crônica dos últimos meses de uma era que estava chegando ao fim. Vôos de rotina sobre um território relativamente acolhedor logo substituíram a heróica época do transporte de correio no deserto, que durara dez anos.

            A pacificação na terra foi acompanhada de uma revolução nos ares. O Latécoère 25, que dispunha de maior autonomia de voo, tornou-se operacional, acabando com o reinado do avião com cockpit aberto e aumentando de forma considerável a segurança dos vôos noturnos. O transporte do correio começou a ser feito na metade do tempo, e os acidentes tornaram-se excepcionais. Os novos pilotos recrutados por Daurat achavam normal pilotar aparelhos dotados de uma cabine confortável, de instrumentos de navegação confiáveis, de ligações de rádio seguras e serem assessorados por um navegador experiente.

            Saint-Exupéry retornou à França com a auréola do prestígio de veterano que tanto admirara em Guillaumet, pronto para tentar a aventura ainda mais arriscada da Aéropostale na América do Sul. Passaria quase um ano antes de sua chegada a Buenos Aires, porém alguns acontecimentos de 1929 elucidam sua dupla carreira de escritor e aviador. Na primavera, foi enviado à escola de navegação aérea de Brest para um curso de aperfeiçoamento ministrado por Lionel-Max Chassin, futuro general da aeronáutica. Nove em cada onze estudantes eram militares de carreira, cujo estrito respeito à disciplina contrastava bastante com a negligência de Saint-Exupéry. Chassin conta que este chegou atrasado à primeira reunião num café de Brest, produzindo uma péssima impressão para um especialista em navegação: ele se perdera nas ruelas do porto bretão.

            Chassin, que se tornou historiador militar, era mais jovem que a maioria dos estudantes, e o clima descontraído de seus cursos talvez tenha contribuído para os resultados desconcertantes de Saint-Exupéry. A sessão de apresentação terminou com rodadas de bebidas, quando todos os onze alunos, o professor e outro instrutor pagaram rodadas de vermute cassis, antes de iniciar o jantar cuja lembrança mais marcante ficou sendo as extravagantes canções de Saint-Exupéry tendo Baco como tema.

            O curso era constituído fundamentalmente de noções avançadas de matemática e de observações dos astros realizadas nas fortificações do porto de Brest. Embora na parte teórica não surgisse nenhum problema, Chassin relata que Saint-Exupéry cometia erros monumentais nos trabalhos práticos, que foram se acrescentar a diversos outros casos referentes às suas capacidades como aviador. “Às vezes era brilhante no campo teórico, porém nos exercícios mostrava-se inepto, desastrado, em suma, muito ruim”, acrescenta Chassin.

            Durante um acidente anterior a outro que quase foi fatal, quatro anos depois, ele quase se afogou ao esquecer as instruções de Chassin para amerissar com um hidravião, e teria afundado com seu aparelho se não tivesse sido rapidamente socorrido com a ajuda de um guindaste. Em outra ocasião, quando Chassin estava co-pilotando, Saint-Exupéry, sem levar em consideração as lições de seu instrutor sobre as manobras específicas da decolagem dos hidraviões, virou a alavanca de comando para o lado errado e quase fez o aparelho submergir.

            Contudo, Chassin considerou Saint-Exupéry “muito forte” em matemática, campo no qual se distinguia por meio de novas idéias aplicáveis às técnicas de navegação. Antoine foi aprovado com uma nota passável e foi o nono colocado entre onze. Teria recebido um diploma de estudos superiores em navegação se um inspetor do ministério da Defesa não tivesse interferido. Ele declarou a Chassin que o exame perderia credibilidade se todos os candidatos fossem aprovados, insistindo para que dois nomes fossem suprimidos da lista. Saint-Exupéry foi um dos dois azarados.

            Chassin atribui em grande parte a falta de concentração de Saint-Exupéry à sua obsessão pela próxima publicação de Correio Sul. Ele tinha recebido as primeiras provas em seu período de estágio e constantemente lia trechos a seus colegas de curso, que assim substituíam, no papel de críticos amadores, os pilotos da Aéropostale que faziam escala em cabo Juby. Mais tarde, passou a ler capítulos a seus primos de Carnac. Entre eles encontrava-se Honoré d’Estienne d’Orves, que ingressara na marinha após sair da Politécnica, na qual entrara após o Liceu Saint-Louis.

            É impossível imaginar que importância Saint-Exupéry dava a essas críticas. Poucos intrusos reconhecem ter feito comentários negativos, pois desde a mais tenra infância Saint-Exupéry sempre fora extremamente suscetível às sugestões literárias. Também preferia fazer suas correções em segredo, à noite, em vez de estudar os cursos de navegação. Geralmente deitava-se ao amanhecer, esperando recuperar o sono que lhe faltava com uma longa sesta. Sua falta de atenção no primeiro curso de Chassin, pela manhã, pode ser imputada ao cansaço físico.

            Graças a André Gide, amigo de Yvonne de Lestrange, estava previsto há tempos que o livro seria publicado na Nouvelle Revue Française, pela Gallimard. Solicitou-se que André Beucler, que já escrevera três romances para esse editor, redigisse o prefácio, enquanto Jean Prévost, redator da extinta revista Le Navire cFArgent e colaborador da NRF, foi encarregado de escrever a crítica que apareceu dois meses antes da publicação do livro, em abril de 1929.

            Durante um programa de rádio em 1954, Beucler contou seu primeiro encontro com Saint-Exupéry, no qual foi seduzido por seu olhar alegre e pelo nariz, que tremia como as antenas de um inseto. Os dois escritores conversaram sobre o novo livro num café da Ave- nue de Wagram, e Saint-Exupéry conseguiu causar uma boa primeira impressão, chegando com um maço de jornais, livros de Gide, Co- lette e Georges Duhamel, além de um brinquedo mecânico destinado ao filho de um amigo. O relato de Beucler mostra que Saint-Exupéry preparara-se para justificar sua filosofia pessoal. Desde o início da conversa, descreveu-se simultaneamente como nietzschiano e marxista, convencido de que as pessoas comuns têm necessidade de ser dirigidas e organizadas. Ele declarou ter optado pela aviação porque ela unia a realização pessoal à camaradagem, ao perigo, ao sacrifício e à emulação.

            Beucler compreendeu ardorosamente a mensagem e redigiu um prefácio repleto de admiração por um autor que descreveu como um herói, um soldado e um homem de ação. O outro jovem padrinho literário, Jean Prévost, não o contradisse. Seu artigo na NRF começava com a frase: “É difícil não gostar deste livro”. Houve diversos outros artigos sobre Correio Sul, benevolentes sem serem delirantes de entusiasmo. A maioria dos críticos repetiu o elogio de Beucler com relação a um autor homem de ação, capaz de produzir um livro apesar de sua vida intensa e aventureira, porém também aprovaram o comentário do prefácio, segundo o qual “Saint-Exupéry não é um escritor”.


            Sem prestar atenção a esse reparo, Antoine já começara outro livro antes de partir para a América do Sul, do qual já tinha mostrado as primeiras páginas a Gaston Gallimard. O produto final não seria muito semelhante ao primeiro rascunho. Mais de um ano de vôo intensivo na América do Sul daria forma diferente a Vôo Noturno, um clássico literário que desmentiria magistralmente a leviandade do julgamento de Beucler.


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