As verdadeiras mudanças de
Saint-Maurice não são aparentes. O pequeno povoado já não vive segundo o ritmo
dos castelões, e o senso de solidariedade que unia os habitantes desapareceu
com o êxodo rural e a chegada de habitantes das cidades, que lá adquiriram sua
segunda residência. Na época da infância de Saint-Exupéry, como os meios de
transporte eram raros, a visita a Ambérieu-en- Bugey, o povoado mais próximo, transformava-se
em expedição. Os aldeães viviam da mesma forma há séculos, fechados sobre si
mesmos. Os castelões compartilhavam com os diaristas agrícolas recordações
comuns que remontavam a gerações passadas, e cada um deles assumia o papel que
lhe fora atribuído por Deus. As referências de Antoine à sua infância nos
parecem ainda mais pungentes porque atualmente sabemos que essa comunidade já
estava condenada a desaparecer e que os privilégios de uma aristocracia
confiante em sua perenidade estavam ameaçados pela Grande Guerra.
Naquela época, sua irmã Simone
mantinha um diário que posteriormente utilizaria para escrever Cinco Crianças
em um Parque, uma descrição da vida em Saint-Maurice. O relato era dominado por
uma das personalidades mais imponentes de sua infância, a castelã condessa de
Tricaud, conhecida habitualmente pelo nome de Tante (tia). A castelã, viúva
havia quinze anos, tinha 67 quando Antoine foi batizado. Sua vida conjugal fora
marcada pelo falecimento da filha única, que morreu com difteria aos 3 anos,
deixando-lhe a única missão de reinar sobre uma complicada rede de parentes a
partir do castelo e o apartamento lionês herdados do marido, um diplomata. O
pivô de sua família adotiva era a mãe de Antoine, Marie, sua sobrinha-neta, e
foi Gabrielle de Tricaud quem presidiu as negociações que selaram o casamento
com o pai de Antoine, em 1896.
O meio aristocrático daqueles
tempos oferecia mais que uma vantagem social. Representava também uma rede
benévola de beneficência baseada na lealdade e na propriedade, e toda a família
Saint- Exupéry foi adotada por tia Gabrielle após a morte do pai de Antoine, em
1904. Tinham de viver principalmente da renda de sua quinta de 250 hectares,
que se estendiam pelos três lados do castelo. A condessa foi aceita como a
autoridade incontestável de uma família dominada pelas mulheres e familiares.
Gabrielle de Tricaud tinha a
dimensão de um personagem de romance. Vestida de preto, caminhando com a ajuda
de uma bengala, ela podia ser ao mesmo tempo generosa e tirânica. Nascida numa
época em que as moças de boa família eram ajudadas por serviçais até mesmo para
escovar os cabelos, possuía uma criada, também viúva. Em dias fixos, algumas
pessoas eram convidadas para partidas de dominó ou bridge, à luz dos lampiões
de querosene, ou para assistir aos saraus musicais que ela oferecia em seu
apartamento de Lyon quando a família lá passava o inverno.
O sacerdote de Saint-Maurice, padre
Montessuy, era considerado seu confessor pessoal. Ele não tinha outra
alternativa senão a de aprovar sua maneira peremptória de rezar em latim na
capela do castelo, após o jantar. Também podia ser contemplado com uma homilia
sobre a forma como devia proceder com os aldeães. Ela reinava com direito
divino sobre a comunidade e conhecia todos seus súditos pelo nome. Gabrielle de
Tricaud adorava a irmã mais velha de Antoine, Marie-Madeleine, mas não tinha
tempo a perder com os meninos mais moços nem com os animais. Antoine e Fran-
çois tinham o direito de estar presentes, mas não de ser ouvidos, e os
numerosos animais domésticos não eram aceitos na casa, com exceção dos pássaros
aprisionados de Madeleine.
Simone refere-se com grande afeição
a essa tia dominadora, ressaltando-lhe originalidade que às vezes escondia um
grande coração. Também admirava sua capacidade de escolher empregados tão
excêntricos quanto ela. Possuía pelo menos oito, permanentemente a seu serviço
em Saint-Maurice. Tratadas freqüentemente como crianças, as criadas
desempenhavam o papel de intermediárias entre os irmãos e irmãs e os adultos
condescendentes. Às vezes as crianças é que tinham que consolar os empregados,
particularmente quando a cozinheira recebia duras reprimendas públicas de tia Gabrielle,
com o pretexto de que a refeição fora servida com alguns minutos de atraso, ou
considerada indigna dos convidados, cujo fluxo era inesgotável.
De todos os personagens presentes
nas sombras do castelo, o mais comovente era sem dúvida o mordomo, Cyprien, um
suíço de triste figura com uniforme preto. Suas propostas de casamento tinham
sido recusadas pela criada da tia (Gabrielle), Noémi, e ele buscara consolo no
álcool. Era tão sensível que às vezes servia a mesa com o rosto encharcado de
lágrimas produzidas por sua desgraça amorosa. No entanto, foi sobre Marguerite
Chapays, mais conhecida pelo nome de Moisy, ou Mademoiselle, que Antoine e
Simone mais escreveram. Ela aparece “trotando como um rato” em Terra dos
Homens. “Oh Deus, que infelicidade!”, diz ela, desesperada, ao examinar as
roupas gastas da família. Após alguns anos, fora promovida de criada a governanta.
Os quatro armários de roupa que ela passava em revista com um olhar escrutador,
arrumando a disposição dos lençóis e toalhas de mesa para assegurar sua
deterioração harmoniosa, eram para ela reinos secretos, como os espaços para
brincadeiras que Antoine encontrava no jardim e no sótão. O conteúdo desses
quatro armários aparece diversas vezes na obra literária de Saint-Exupéry. A
partir de Correio Sul surgem referências às virtudes apaziguadoras dos lençóis
brancos, ou evocações metafóricas das toalhas de mesa.
Moisy era a aliada dos meninos em
sua luta contra os adultos incomprensivos, tendo chegado a esconder Antoine
embaixo de sua cama para evitar uma surra. Era mais babá das crianças do que
governanta. À noite, Antoine introduzia-se de bom grado no seu quarto para se
regalar com bocados de açúcar mergulhados em aguardente. Quando os outros
perceberam, ela comprou um estoque de açúcar para agradar a todos, porém sua
pequena reserva de álcool foi mais de uma vez substituída pelo vinho de missa
do padre Mon- tessuy. Ela era uma eterna filha do campo, com faces vermelhas
como maçãs, que buscara refúgio em Saint-Maurice por meio de um emprego de
criada, após a difícil experiência de trabalhar dez horas por dia numa fiação
lionesa. Enquanto as tias e os tios falavam apenas de finanças, propriedade e
religião, Moisy ensinava às crianças o nome das flores do campo e as levava
para colher frutas para fazer geléia.
Moisy era frágil e miúda, e em
pouco tempo Antoine tornou-se mais alto que ela. Ele a levantava do chão com
facilidade para convencê-la a preparar seus pratos preferidos, mimando-a e
balançando-a nos seus braços. Adulto, Antoine desempenharia o papel de anjo da
guarda de Moisy, permitindo-lhe realizar o sonho de sua vida, a aquisição de
uma pequena casa na sua aldeia natal, Drôme. Saint- Exupéry enviava-lhe
dinheiro para a manutenção da casa, visitando-a sempre que possível, até sua
mobilização em 1939. Eles exploravam juntos, com uma nostalgia comum, os
tesouros da caixa de fotografias de Saint-Maurice que ela guardava no quarto.
Antoine de Saint-Exupéry com nove anos de idade |