quinta-feira, 2 de março de 2017

Biografia de Saint-Exupéry - Parte 9

           A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu entre os 12 e os 14 anos, quando estudou  em Le Mans foi sem dúvida o conforto da camaradagem nos momentos de adversidade. Ao mesmo tempo, teve de aceitar seu quinhão de importunações, especialmente sob a forma de apelidos. Em casa, era chamado de Tonio. Em Le Mans, foi ridicularizado com dois apelidos que o contrariaram a vida inteira. O primeiro, Tatane, deve-se aos pés grandes, que seriam fonte perpétua de chacota, chegando a ser a recordação mais notável de uma mocinha de 16 anos com a qual Saint-Exupéry dançou na véspera de sua morte, em 1944. Logo depois, Tatane seria substituído pelo apelido ainda mais irritante de Pique la Lune, atraindo a atenção para seu nariz arrebitado e seu ar distraído.
            No âmbito acadêmico,  seu interesse por matemática e geografia, matérias em que sempre teve dificuldade, só foi despertado quando pôde aplicá- las como aviador ou inventor. Ao entrar na vida adulta, o desgosto que sentia pela matemática em Le Mans foi substituído pela paixão pela geometria.
            O único campo no qual se destacou constantemente foi a expressão escrita, que lhe servia como avaliação pessoal e refúgio em períodos de angústia. As melhores notas obtidas por Antoine foram em narração, a atual dissertação, em um período que coincidiu com sua indisciplina e impertinência.
            Auguste Launay além de latim, ensinava grego e religião, matérias contra as quais Antoine se insurgirá violentamente com 14 anos. Mas a prova de seu fascínio pelo francês aparece em duas redações que o abade utilizou em classe como modelos de narração até sua partida de Le Mans, no início da Segunda Guerra Mundial. A mais conhecida é “A Odisséia do Chapéu”, que relata o declínio de uma cartola, que termina como o chapéu do cacique de uma longínqua tribo africana. A redação rendeu a Antoine uma excepcional recompensa quando da entrega dos prêmios de fim de ano.
            Durante as férias de verão anteriores à redação de “A Odisséia...”, Antoine confiara a Simone que simpatizava com o movimento monarquista anti-semita. Contara-lhe também que fundaria uma sociedade secreta monarquista da qual seria o presidente, e que esta editaria um folheto de propaganda. No trimestre seguinte, seus colegas de classe produziram um jornal intitulado Écho du Troisième, no qual o humor ofuscava um pouco a ambição política. Ao circular de mão em mão, provocou tal hilaridade que atraiu a atenção de um dos padres, o qual o confiscou e rasgou. Assim, é impossível saber se o Écho du Troisième propagava as idéias da Action Française.
            O trecho anti-semita de sua redação infantil é menos interessante como testemunho de um julgamento pouco prudente e mais uma prova notável de como, mais tarde, Antoine se afastaria da influência perniciosa recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint-Exupéry de ter sido anti-semita quando adulto. Sua tolerância ia bem além de uma relação fácil com os judeus, e em Cidadela escreveu uma parábola bastante enérgica em defesa das minorias
  perseguidas, numa época em que Vichy já instaurara a caça aos judeus.
            De seu período em Le Mans conservaria algumas lições, como o valor da amizade e a capacidade de sofrer sem se queixar. Outras, tais como a imagem cristã de Deus e as dos dogmas católicos, mo- dificaram-se progressivamente ou foram rejeitadas em contato com as realidades da vida. A intolerância religiosa, social ou racial transmitida pelos padres no colégio desapareceu quando ele se convenceu de que a humanidade tendia a uma causa comum, que transcendia as divisões e as verdades supostamente absolutas.
            Ao mesmo tempo em que anunciava a criação de sua sociedade secreta em 1912, Antoine confiou ao irmão e às irmãs, após regressar a Saint-Maurice-de-Rémens, que algum dia poderia vir a ser padre. Porém, nenhuma dessas duas confidências lhe valeu o sensacional sucesso provocado pelo seu novo companheiro, um rato branco. Segundo Paul Gaultier, seu colega, esse rato era o único remanescente de um casal que lhe fora presenteado pela tia Anais de Saint-Exupéry. Como os ratos supostamente tinham pertencido à duquesa de Vendôme, talvez tivessem fortificado as opiniões monarquistas de Antoine, que escrevia nos cadernos de autógrafos dos colegas: “Pelo meu Deus, meu Rei e minha Dama”.
            O rato ficara numa gaiola perto dos coelhos domesticados das crianças, mas de manhã a gaiola estava aberta, e o rato desaparecera. É provável que tia Gabrielle tenha ordenado aos empregados que se livrassem do rato, mas essa suspeita nunca pôde ser comprovada.
            Alguns dias mais tarde, o desaparecimento do rato foi relegado a segundo plano pelo acontecimento mais importante da vida de Antoine após a morte do pai. Foi aí, em seu primeiro vôo sobre um campo de aviação próximo ao castelo, que nasceu sua paixão pela aviação, primeira etapa de um percurso que terminará com sua morte violenta e solitária.

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