domingo, 27 de novembro de 2016

A verdade das minhas ordens, é que o homem delas há de nascer.

É por isso, que tendo compreendido, oponho meu arbítrio a essa desagregação das coisas e não dou ouvidos aos que me falam de inclinações naturais. Sei muito bem que as inclinações naturais aumentam as águas dos lagos das geleiras e nivelam as asperezas das montanhas, e alteram o movimento do rio, quando se joga ao mar, em um milhar de turbilhões contraditórios. Pois sei muito bem que as inclinações naturais fazem com que o poder se distribua e os homens se igualem. Mas eu governo e escolho. Sabendo que o cedro também triunfa contra a ação do tempo que o deveria reduzir a poeira, e, de ano em ano, edifica, contra a própria força que o puxa para baixo, o orgulho do templo de folhagem. Sou a vida e organizo. Edifico as geleiras contra os interesses dos mares. Pouco me importo se porventura as rãs coaxam contra a injustiça. Eu rearmo o homem, para que ele seja.
                É por isso que não dou importância ao tagarela imbecil que vem censurar a palmeira por ela não ser cedro e o cedro por ele não ser palmeira e, misturando os livros tende ao caos. Sei perfeitamente que o tagarela no fundo tem razão na sua ciência absurda, porque além da vida, cedro e palmeira se unificariam e se espalhariam em pó. Mas a vida se opõe à desordem e aos declives naturais. É do pó que ela arranca o cedro.
                A verdade das minhas ordens, é que o homem delas há de nascer. E os costumes, e as leis e a linguagem do meu império, não vou buscar neles seu próprio significado. Sei perfeitamente que, ao assentar pedras, é silêncio que criamos. O qual não se lia nas pedras. Sei muito bem que, à força de cargas e suor é o amor que se reanima. Sei muito bem que está longe de conhecer coisa alguma aquele que esquartejou o cadáver e pesou os ossos e as vísceras. Porque ossos e vísceras separados não servem para nada, como para nada servem separados a tinta ou o papel do livro. Só o que conta é a sabedoria que o livro traz, embora ela não esteja na essência da tinta ou do papel.
                E rejeito a discussão, porque nada aqui se pode demonstrar. Linguagem do meu povo, hei de te salvar de apodrecer. Lembro-me do incrédulo que visitou meu pai:
                “Tu ordenas que em tua casa se reze com terços de treze contas. De que importam as treze contas, dizia ele, não será a mesma a salvação se mudares o número? ”
                E fez valer sutis razões para os homens rezarem com terços de doze contas. Eu, o filho, sensível à habilidade do discurso, olhava para meu pai, duvidando do brilho da resposta, tão brilhantes me pareciam os argumentos invocados:
                “Me diga, recomeçava o outro, quanto pesa a mais o terço de treze contas? ”
                — O terço de treze contas, respondeu meu pai, pesa o peso de todas as cabeças que em seu nome mandei cortar até hoje...”

                Deus iluminou o incrédulo e ele se converteu.

Trecho de hoje do livro "Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a mais de 70 apoiadores que já levantaram mais de 4.500 Reais, e contribua hoje para o financiamento da edição em papel. 
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