sexta-feira, 25 de novembro de 2016

E os ritos são no tempo o que o lar é no espaço.

E os ritos são no tempo o que o lar é no espaço. Porque é bom que o tempo que desliza não dê a impressão de que nos gasta e nos perde, como a um punhado de areia, antes se nos afigure que nos realiza. Porque é bom que o tempo seja uma construção. Então, vou de festa em festa, e de aniversário a aniversário, de vindima a vindima, como passeava, criança, da sala do Conselho até à sala de repouso, na densidade do palácio de meu pai, em que todos os passos tinham um sentido.
Impus minha lei, que é como a forma das paredes e o arranjo de minha casa. O insensato veio me dizer: “Liberta-nos de tuas regras e então poderemos crescer”. Mas eu sabia que logo iriam perder o conhecimento de um rosto, e ao não o amar, perderiam o conhecimento de si próprios, e decidi, mesmo sem o desejarem, os engrandecer com o meu amor. Porque eles me propunham, para passear mais à vontade, que derrubasse as paredes do palácio de meu pai onde todos os passos tinham um sentido.

Era uma moradia ampla com a ala reservada às mulheres e o jardim secreto onde cantava o jato de água. (E ordeno então que em todas as casas exista um centro, para que se possa aproximar e afastar de algum ponto. Para que se possa sair e entrar. Caso contrário, não se está mais em lugar algum. E não é ser livre não estar em algum lugar.) Havia também os celeiros e os estábulos. Às vezes acontecia que os celeiros ficavam vazios e os estábulos desocupados. E meu pai se opunha a que se servissem deles para outros fins”. O celeiro, dizia ele, é antes de tudo um celeiro, e não moras mais numa casa se não sabes onde te encontras. Pouco importa, dizia ele ainda, um uso mais ou menos lucrativo. O homem não é cabeça de gado para engorda, e o amor, para ele, conta mais do que o usufruto. Não consegues amar uma casa que não tenha rosto, e onde os passos não tenham sentido.

Havia a sala reservada apenas para as grandes embaixadas, e que eram abertas ao sol apenas nos dias em que subia no ar a poeira de areia levantada pelos cavaleiros, e, no horizonte, os estandartes que o vento agitava como no mar. Mas ficava deserta quando se tratava de pequenos príncipes sem importância. Havia a sala onde se fazia justiça e a sala para onde levavam os mortos. Havia o quarto vazio, que nunca ninguém soube para que servia — e que talvez não servisse para nada, apenas para ensinar o sentido do segredo e que nunca se consegue penetrar todas as coisas. 

E os escravos, que percorriam os corredores carregados com o peso dos fardos, levavam de um lugar a outro, tapeçarias que lhes machucavam os ombros. Subiam degraus, empurravam portas, voltavam a descer novos degraus e, conforme estavam mais perto ou mais longe do jato de água central, se tornavam mais ou menos silenciosos, até se mostrarem inquietos como sombras no limiar dos aposentos das mulheres cujo conhecimento por erro lhes teria custado a vida. E as próprias mulheres: calmas, arrogantes ou furtivas, segundo o lugar que ocupavam na casa.

E ouço a voz do insensato: “Quanto espaço dilapidado, quantas riquezas inexploradas, quantas comodidades perdidas por negligência! É preciso demolir essas paredes inúteis e nivelar essas curtas escadarias, que dificultam a marcha. Então o homem será livre”. E respondo: “Então, os homens se tornarão gado de praça pública, e, com medo de se entediar, inventarão jogos estúpidos, que ainda serão regidos por regras, mas por regras sem grandeza. Porque o palácio pode inspirar poemas. Mas que poema escrever sobre a ninharia dos dados que eles lançam? É possível que ainda por muito tempo vivam da sombra dos muros, cujos poemas vão lhes trazer saudade, e depois a própria sombra se apagará e deixarão de compreendê-los”. 

E dali em diante o que os iria alegrar?
É assim com o homem perdido numa semana sem dias, ou num ano sem festas, que não exibe rosto algum. É assim com o homem sem hierarquia, que tem inveja do vizinho, se em algo este lhe passa à frente, sempre empenhado em reduzi-lo à sua medida. Que alegria tirarão eles, depois, do pântano que hão de constituir?

Mas recrio os campos de força. Construo barragens nas montanhas para conter as águas. Me oponho assim, injusto, às inclinações naturais. Restabeleço as hierarquias lá onde os homens se aglomerariam como as águas, depois de misturadas no pântano. Eu reteso os arcos. Com a injustiça de hoje, crio a justiça de amanhã. Restabeleço as direções lá onde cada um se instala onde quer e ainda chama felicidade a essa estagnação. Desprezo as águas estagnadas da sua justiça e liberto aquele que uma bela injustiça instituiu. E é assim que enobreço meu império.

Pois já conheço seus argumentos. Eles admiravam o homem que meu pai construiu”. Como ousar mudar, se disseram, um resultado tão perfeito? E, em nome daquele que tais barreiras havia fundado, quebraram essas barreiras. Enquanto permaneceram nas almas, ainda tiveram algum efeito. Depois, pouco a pouco, foram esquecidas. E aquele que queriam salvar foi morto.


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