quinta-feira, 24 de novembro de 2016

O Sentido das Coisas

Pois descobri uma grande verdade. É que os homens moram, e o sentido das coisas muda para eles conforme o sentido das casas. E o caminho, o campo de cevada e a linha da colina são diferentes para o homem conforme constituam ou não uma propriedade. De um momento para outro, essa matéria disforme se junta e pesa sobre a alma. E não moram no mesmo universo aquele que habita e aquele que não habita no reino de Deus. E se iludem os infiéis, que riem de nós e que julgam perseguir riquezas tangíveis, quando não as há. Porque se cobiçam este rebanho, é já por orgulho. E nem as alegrias do orgulho são tangíveis.

É assim com aqueles que, ao dividir o meu território, ficam convencidos de que o descobriram. Dizem eles: “Ora, o que há lá são carneiros, cabras, cevada, moradias e montanhas — e nada mais; ” São pobres, não possuem mais nada. E têm frio. E vim a descobrir que eles se parecem com aquele que esquarteja um cadáver. A vida, diz ele, é o que se pode ver em plena luz do dia; não passa de uma mistura de ossos, de sangue, de músculos e de vísceras”. Quando na verdade a vida era essa luz dos olhos que se deixou de perceber nas suas cinzas. Pois meu território é coisa absolutamente diferente destes carneiros, destes campos, destas moradias, e destas montanhas, mas o que os domina e o que os liga. É a pátria do meu amor. E ficam felizes se o sabem, porque moram na minha casa.
E os ritos são no tempo o que o lar é no espaço. Porque é bom que o tempo que desliza não dê a impressão de que nos gasta e nos perde, como a um punhado de areia, antes se nos afigure que nos realiza. Porque é bom que o tempo seja uma construção. Então, vou de festa em festa, e de aniversário a aniversário, de vindima a vindima, como passeava, criança, da sala do Conselho até à sala de repouso, na densidade do palácio de meu pai, em que todos os passos tinham um sentido.
Impus minha lei, que é como a forma das paredes e o arranjo de minha casa. O insensato veio me dizer: “Liberta-nos de tuas regras e então poderemos crescer”. Mas eu sabia que logo iriam perder o conhecimento de um rosto, e ao não o amar, perderiam o conhecimento de si próprios, e decidi, mesmo sem o desejarem, os engrandecer com o meu amor. Porque eles me propunham, para passear mais à vontade, que derrubasse as paredes do palácio de meu pai onde todos os passos tinham um sentido.



Trecho de hoje do livro "Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a mais de 70 apoiadores que já levantaram mais de 4.000 Reais, e contribua hoje para o financiamento da edição em papel. 
Mesmo que seja um valor simbólico.
Basta clicar no link abaixo.
https://www.catarse.me/cidadela



Nenhum comentário:

Postar um comentário