quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Cidadela! Te construí, portanto, como um navio

Porque sou o chefe. E escrevo as leis e estabeleço as festas e ordeno os sacrifícios e, dos seus carneiros, suas cabras, suas moradas, suas montanhas, extraio essa civilização semelhante ao palácio de meu pai, onde todos os passos têm um sentido.

Porque sem mim, que teriam eles feito do montão de pedras, a levá-las da direita para a esquerda, a não ser outro montão de pedras menos bem organizado ainda? Eu governo e escolho. E sou o único a governar. E eles podem rezar no silêncio e na sombra que devem às minhas pedras. Minhas pedras ordenadas segundo a imagem de minha alma.


Eu sou o chefe. Sou o senhor. Sou o responsável. E solicito a ajuda deles. Já compreendi que chefe não é aquele que salva os outros, mas sim aquele que lhes pede que o salvem. Porque é graças a mim, à imagem que carrego, que se funde a unidade que extraí, sozinho, dos meus carneiros, das minhas cabras, das minhas moradas, das minhas montanhas, e os vejo apaixonados por elas, como por uma jovem divindade que abrisse os braços macios ao sol e que não tivessem a princípio reconhecido. Eis que amam a casa que inventei segundo o meu desejo. E, através dela, amam a mim, o arquiteto. Como quem ama uma estátua não ama a argila, nem o tijolo, nem o bronze, mas sim a ação do escultor. E vinculo às suas casas os homens do meu povo, para que cada um deles saiba reconhecer a sua. E só a reconhecerão depois de a terem alimentado com o seu sangue. E adornado com os seus sacrifícios. Ela exigirá deles até o sangue, até seu corpo, porque será seu próprio significado. E não poderão deixar de reconhecê-la, essa estrutura divina em forma de imagem. E sentirão por ela o amor. E suas noites hão de ser calorosas. E os pais, quando seus filhos abrirem os olhos e os ouvidos, irão se ocupar primeiramente de a fazer descobrir, para que ela não venha a se afogar na confusão das coisas.


E, por ter construído a minha morada bastante ampla para dar um sentido até às estrelas, se eles se aventurarem à noite no seu limiar e levantarem a cabeça, darão graças a Deus por guiar tão bem esses navios. E, se a construí bastante duradoura para conter a vida na sua duração, eles então irão de festa em festa e de vestíbulo em vestíbulo, sabendo para onde vão, e descobrindo, através da diversidade da vida, o rosto de Deus.


Cidadela! Te construí, portanto, como um navio. Eu te preguei, te aparelhei, e depois te soltei no tempo que não é mais do que um vento favorável.
Navio dos homens, sem o qual eles perderiam a eternidade.


Conheço bem, as ameaças que pesam sobre o meu navio. Sempre atormentado pelo mar escuro do exterior. E pelas outras imagens possíveis. Porque sempre é possível derrubar o templo, e levar as pedras para um outro templo. E o outro não é nem mais verdadeiro, nem mais falso, nem mais justo, nem mais injusto. E ninguém perceberá o fracasso, porque a qualidade do silêncio não está inscrita no monte de pedras.


É por isso que quero que eles escorem solidamente as vigas mestras do navio. Para os salvar de geração em geração, pois nunca conseguirei embelezar um templo se o recomeço a cada instante.


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