quarta-feira, 23 de novembro de 2016

O sentido da Paz

Então meditei muito tempo sobre o sentido da paz. Ela só vem dos filhos nascidos, das colheitas feitas, da casa até que enfim arrumada. Ela vem da eternidade, em que ingressam as coisas perfeitas. Paz dos celeiros cheios, das ovelhas que dormem, dos lençóis dobrados, a paz da perfeição, paz do que se torna oferenda a Deus, uma vez bem feito.

Porque vi que o homem é muito semelhante à cidadela. Ele derruba as muralhas para assegurar a liberdade, mas nessa altura não passa de fortaleza desmantelada e aberta às estrelas. Começa então a angústia que vem de não ser. Que ele encontre a sua verdade no aroma do ramo de videira que arde ou da ovelha que tem para tosquiar. A verdade é cavada como um poço. O olhar, quando se dispersa, perde a visão de Deus. Sabe muito mais de Deus aquele sábio, que se concentrou e apenas conhece o peso das lãs, do que a esposa adúltera, aberta às promessas da noite.

Cidadela, te construirei na alma do homem.

Pois há um tempo para escolher entre as sementes, mas há também um tempo para se alegrar com a chegada da colheita, depois de ter escolhido a semente. Há um tempo para a criação, mas há também um tempo para a criatura. Há um tempo para a faísca rubra, que rompe os diques nos céus, mas há também um tempo para as cisternas em que as águas derramadas se vão reunir. Há um tempo para a conquista, mas lá vem o tempo da estabilidade dos impérios: eu, que sou servidor de Deus, tenho o gosto da eternidade.

Odeio o que muda. Estrangulo aquele que se levanta na calada da noite e lança aos quatro ventos as suas profecias, como a árvore que, tocada pela semente dos céus, estala e rebenta e abrasa com ela toda a floresta. Me apavoro quando Deus se agita. Ele, o imutável, que permaneça na eternidade! Porque há um tempo para a gênese, mas há um tempo, um tempo bem-aventurado, para o costume!

É preciso pacificar, cultivar e polir. Sou aquele que tapa as fendas do solo e esconde aos homens os traços do vulcão. Sou a grama sobre o abismo. Sou o celeiro que doura os frutos. Sou a barcaça que recebeu de Deus uma geração em penhor, e a passa de uma margem para a outra. Deus, por sua vez, a receberá de minhas mãos tal como me confiou, mais madura talvez, mais sábia, mais hábil no cinzelar dos jarros de prata, mas não mudada. Encerrei o meu povo dentro do meu amor.

É por isso que protejo aquele que, passadas sete gerações, volta a trabalhar na quilha do barco ou na curvatura do escudo, disposto a encaminhá-las para a perfeição. Protejo aquele que herda do avô cantor o poema anônimo e, ao dizê-lo por sua vez, e ao enganar-se por sua vez, lhe ajunta o seu sumo, o seu desgaste, a sua marca. Amo a mulher grávida ou a que dá de mamar, amo o rebanho que se perpetua, amo as estações que se sucedem. Porque sou, antes de mais nada, aquele que habita. Cidadela, minha morada, prometo salvar-te dos projetos da areia, e irei te adornar de clarins em volta, para tocarem na guerra contra os bárbaros!


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