sábado, 26 de novembro de 2016

O palácio de meu pai, onde todos os passos tinham um sentido.

 É por isso que odeio a ironia, que não faz parte do homem, mas sim do insensível. Porque o insensível lhes diz: “Os costumes são uns num lugar e outros noutro. Por que não haveis de mudar de costumes? ” Da mesma maneira que lhes teria dito: “O que vos força a instalar as colheitas no celeiro e os rebanhos nos estábulos? ”. Mas é ele que se engana com as palavras, porque ignora o que as palavras não podem apreender. Ignora que os homens vivem numa casa.

                E suas vítimas, que já não são capazes de reconhecê-la, começam a desmantelá-la. Os homens dilapidam assim o seu bem mais precioso: o sentido das coisas. E se julgam gloriosos, se nos dias de festa não cedem aos costumes, traem as tradições, festejam o inimigo. É verdade, experimentam alguns movimentos interiores nos rituais de seus sacrilégios. Enquanto houver sacrilégio. Enquanto se insurgirem contra algo que ainda exerce pressão sobre eles. E vivem da respiração do inimigo ainda ativa. A sombra das leis os limita ainda o bastante para se sentirem contra as leis. Mas a própria sombra em breve se apaga. E então não sentem mais nada, porque esqueceram o gosto da vitória. E eles bocejam. Transformaram o palácio em praça pública, mas uma vez utilizado o prazer de nele pisar com uma arrogância de fanfarrão, não sabem mais o que fazem lá, no meio dessa feira. E eis que sonham vagamente em reconstruir uma casa de mil portas, de tapeçarias que machucam os ombros, de antecâmaras lentas. E sonham com o quarto secreto que torna toda a morada secreta. E sem o saberem, depois de o terem esquecido, choram o palácio de meu pai, onde todos os passos tinham um sentido.

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