Esta imagem do meu império me foi sugerida certa vez quando eu e
alguns do meu povo nos fizemos ao mar, integrados numa peregrinação.
Eles estavam encerrados a bordo de uma nau em alto mar. Às
vezes, eu passeava em silêncio no meio deles. Agachados em torno das bandejas
de alimento, dando de mamar às crianças ou ocupados no encadeamento do rosário
da prece, haviam-se tornado habitantes do navio. O navio havia se tornado
morada.
Mas eis que uma noite os elementos se sublevaram. Quando fui
visitá-los, no silêncio do meu amor, vi que nada havia mudado. Eles cinzelavam
os seus anéis, fiavam a lã, ou falavam em voz baixa, tecendo incansavelmente
essa comunidade de homens, essa rede de laços que, se a seguir um deles morre,
arranca algo a todos os outros. E os ouvia falar, no silêncio do meu amor,
passava por cima do conteúdo das suas palavras, das suas histórias de chaleiras
ou de doenças, sabendo que não é no objeto que reside o sentido das coisas, mas
sim no processo. E aquele lá, quando sorria com recato, fazia uma doação de si
próprio...e aquele outro, que se entediava, não sabia se era por medo ou
ausência de Deus. Assim eu olhava para eles, no silêncio do meu amor.
E, no entanto, os pesados ombros do mar, desconhecido para eles,
os sacudiam com os seus movimentos lentos e terríveis. Às vezes, no pico de uma
subida, tudo flutuava numa espécie de ausência. Então todo o navio tremia como
se o casco tivesse rachado, como se já houvesse sido desfeito e, enquanto
durava essa fusão das realidades, deixavam de rezar, de falar, de dar de mamar
às crianças ou de cinzelar a prata pura. Mas todas essas vezes, um estalido
único, duro como a faísca, atravessava o madeiramento de lado a lado. O navio
voltava a cair como que em si mesmo, com grande estrondo, sobre todos os seus
contrafortes, e isso arrancava vômitos aos homens.
Apertavam-se uns contra os outros, como num estábulo que
rangesse sob o balanço enjoativo das lamparinas. Mandei lhes dizer, com medo de
que se deixassem invadir pela angústia:
“Os que trabalham a prata ponham-se a cinzelar-me uma jarra. Os
que cozinham as refeições dos outros procurem fazê-lo ainda melhor. Os sãos que
cuidem dos doentes. Os que rezam que mergulhem mais na oração...”
Quando descobri alguém encostado a uma viga, lívido de terror,
ouvindo através das calafetagens espessas o canto proibido do mar, ordenei-lhe:
“Vai ao porão contar os carneiros mortos. Estão com tanto medo
que se sufocam uns de encontro aos outros...”
Me respondeu: “Deus está martelando o mar. Estamos perdidos.
Ouço estalar as vigas-mestras do navio... Não deveriam se mover, pois são
armação e estrutura. Tal como as bases do globo às quais confiamos nossas casas
e a procissão das oliveiras e a ternura dos carneiros de lã que à tardinha
mastigam lentamente a erva de Deus. É bom nos ocupar das oliveiras, dos
carneiros e da refeição e do amor dentro de casa. Mas é mau que a própria
estrutura nos atormente. Que o que estava pronto volte a ser obra. Eis que
aquilo que devia estar calado, toma a palavra. Que será de nós se as montanhas
murmurarem? Ouvi esse murmúrio, e nunca mais poderei esquecê-lo...
— Que murmúrio? Perguntei-lhe”.
— Senhor, eu outrora morava numa aldeia edificada na encosta
segura de uma colina, bem plantada na terra e no seu céu, uma aldeia plantada
para durar e que durava. Um desgaste maravilhoso reluzia sobre o parapeito dos
nossos poços, sobre a pedra das nossas soleiras, sobre o parapeito curvo das
nossas fontes. Mas eis que, uma noite, algo despertou no nosso assento
subterrâneo". Compreendemos que, debaixo de nós, a terra começava a viver
e a se modelar. O que estava pronto voltava a se tornar em obra. Começamos a
sentir medo. Não tanto por nós próprios como pelo objeto dos nossos esforços.
Por aquilo em que nos transformamos ao longo da vida. Eu era cinzelador e
comecei a temer pelo grande jarro de prata em que trabalhava havia já dois
anos. Tinha trocado dois anos de vigília por ele. Um outro tremia pelas
tapeçarias de lã farta, que tinha tecido com alegria. Todos os dias as
desenrolava ao sol. Estava orgulhoso de ter trocado algo de seu corpo enrugado
por essa onda que a princípio parecia profunda. Outro teve medo por causa das
oliveiras que havia plantado. E creio que nenhum de nós temia a morte, mas
todos tremíamos por causa de pequenos objetos estúpidos. Descobríamos que a
vida não tem sentido se não nos trocamos pouco a pouco. A morte do jardineiro
não afeta a árvore. Mas, se ameaças a árvore, então o jardineiro morre duas
vezes. Havia entre nós um velho narrador que conhecia os mais belos contos do
deserto. E que os tinha embelezado. Era ele o único que os conhecia, porque não
tinha filhos. E quando a terra começou a mexer, ele tremia pelos pobres contos
que jamais seriam contados por ninguém. Mas a terra continuava a viver e a
moldar-se, e uma maré viva e marrom começava a se formar e a descer. E o que
queres que se troque de uma pessoa para embelezar uma maré agitada que se
revolve lentamente e engole tudo? O que construir sobre esse movimento? “Sob a
pressão, as casas se viravam lentamente e sob o efeito de uma torção quase
invisível as vigas estouravam bruscamente, como barris de pólvora negra. Ou
então as paredes começavam a tremer até desabar de um momento para o outro. E
aqueles de nós que sobreviviam perdiam o seu significado. A não ser o narrador,
que enlouquecera e cantava.
"Aonde é que nos levas? Este navio vai afundar, levando
consigo o fruto dos nossos esforços. Lá fora sinto que o tempo corre em vão.
Sinto que o tempo corre. Ele não deveria correr assim tão visível, mas sim
enrijecer, amadurecer e envelhecer. Deve condensar pouco a pouco sua obra. Mas
a partir de agora, o que ele irá enrijecer e dar permanência que venha de nós e
que ficará?
Trecho de hoje do livro "Cidadela" de
Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a 77 apoiadores que já levantaram mais de
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Estamos com 8 exemplares para entrega ANTES DO NATAL, consulte as condições dos prêmios no site abaixo.
https://www.catarse.me/cidadela
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