quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Resolvemos tentar o efeito do canto dos poetas sobre um exército que começava a se dividir

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Resolvemos tentar o efeito do canto dos poetas sobre um exército que começava a se dividir. Mas aconteceu o inesperado dos poetas serem ineficazes e os soldados riam deles.
“Que nos cantem nossas verdades. A fonte de água em nossa casa e o perfume de nossa sopa ao jantar. Que nos importam essas ladainhas? ”
Foi então que aprendi outra verdade: é que o poder perdido jamais se recupera. E ela havia perdido sua fertilidade, a imagem do império. Porque as imagens morrem como as plantas, quando seu poder se acabou e elas não passam de materiais mortos, prestes a se dispersarem, e de adubo para novas plantas. E me afastei para refletir sobre esse enigma. Porque nada é mais nem menos verdadeiro. Porém mais ou menos eficaz. E eu já não tinha nas mãos o nó milagroso da sua diversidade. Me escapava. E o império se deteriorava como que por si próprio, porque o cedro, quando a tempestade lhe quebra os ramos e o vento das areias o enrijece e ele cede ao deserto, não é porque a areia tenha se tornado mais forte, foi o cedro que renunciou e abriu a porta aos bárbaros.
Quando um cantor cantava, o censuravam por exagerar na emoção. E é verdade que o dramático soava falso e nos parecia de uma outra época. Será que está enganado sobre o amor que demonstra pelas cabras, pelos carneiros, pelas moradas, pelas montanhas que são apenas objetos dispersos? Será que está enganado sobre o amor que demonstra pelas curvas dos rios, que os acasos da guerra não ameaçam e nem sequer merecem o sangue? E é verdade que os próprios cantores tinham a consciência pesada, como se tivessem cantado fábulas grosseiras a crianças que já não acreditavam nelas...
Meus generais, com a sua sólida estupidez, vieram censurar meus cantores. “Cantam desafinado! ” Me diziam. Mas eu não estranhava que cantassem desafinados, pois celebravam um deus morto.
Meus generais, com sua sólida estupidez, me perguntavam então: “Por que nossos homens já não querem lutar? “Como se tivessem dito, escandalizados em outra profissão: “Porque não querem mais ceifar o trigo? ” E eu mudava a pergunta que feita dessa forma não dava em nada. Não era uma questão de profissão. E me perguntava no silêncio do meu amor: “Por que é que eles não querem mais morrer? ” E minha cabeça buscava uma resposta.
Porque não se morre por carneiros, nem por cabras, nem por lares, nem por montanhas. Porque os objetos subsistem sem que nada lhes seja sacrificado. Mas se morre para salvar o laço invisível que os liga uns aos outros e os transforma em propriedades, em império, em rosto reconhecido e familiar. Por essa unidade alguém se troca, porque ao morrer também a constrói. A morte recompensa, graças ao amor. E aquele que lentamente trocou sua vida pela obra benfeita e que dura mais que a vida, pelo templo que faz seu caminho pelos séculos, também aceita morrer se seus olhos conseguem distinguir o palácio da confusão dos materiais, e se fica deslumbrado com sua grandeza e deseja se fundir nela. Porque é acolhido por algo maior do que ele e se entrega a seu amor.
Mas como poderiam eles ter aceitado trocar suas vidas por interesses vulgares? Normalmente o prioritário é a vida. Por mais que se esforçassem meus cantores ofereciam aos meus homens uma moeda falsa em troca dos seus sacrifícios. Por não saberem isolar para eles o rosto que os teria animado. Meus homens não tinham o direito de morrer por amor. Por que morreriam então?
E aqueles que apesar disso morriam por cumprir um dever que aceitavam sem compreender, morriam tristemente, tensos, o olhar fixo, de poucas palavras, na sisudez de seu fastio.
Por isso procurava na minha alma uma lição nova, que fosse capaz de os arrebatar, pois havia compreendido que não existe argumento nem sabedoria que os conduza, porque é necessário fundar um rosto como o escultor que impõe à pedra o peso do seu arbítrio, e pedia a Deus que me iluminasse.

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