segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Porque a mágoa é sempre feita do tempo que corre e não formou o seu fruto

Fui caminhando ao longo da viela. Ouvia, através das portas, censurarem as empregadas. Arrumavam a casa, faziam as malas para a travessia da noite. Pouco me importava que a repreensão fosse justa ou injusta. Eu só ouvia a devoção. E, um pouco mais longe, encostada à fonte, uma jovem chorava, com o rosto oculto no cotovelo. Pousei docemente minha mão nos cabelos e virei para mim seu rosto, sem lhe perguntar a causa da tristeza, por saber muito bem que ela estava muito longe de o entender. Porque a mágoa é sempre feita do tempo que corre e não formou o seu fruto. Há a mágoa da fuga dos dias, da pulseira perdida, que é o tempo que se dispersa, ou da morte do irmão, que é o tempo que não serve para mais nada. E ela, quando for velha, irá chorar a partida do amante e que será, sem que ela o saiba, caminho perdido para a realidade, para a chaleira, para a casa bem fechada e para os filhos que se amamenta. E o tempo de repente passará, inútil, através dela, como através da ampulheta.
                E eis que uma mulher apareceu sorridente na soleira da porta e me olhou de frente, na plenitude da sua alegria, devido talvez ao filho que havia adormecido, ou à sopa perfumada ou a um simples regresso. E, de repente, todo o tempo se encontrava à sua disposição. E passei diante do meu sapateiro, que só tem uma perna, ocupado em embelezar com filigranas de ouro as suas sandálias e, apesar de ele ter perdido a voz, sabia que cantava”. Ó sapateiro, o que é que te torna tão feliz? ” Mas nem sequer ouvi a resposta, eu sabia que ele se enganaria e iria me falar do dinheiro ganho ou da refeição que o esperava ou do descanso. Sem saber que a felicidade vinha de se transfigurar em sandálias de ouro.


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