quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Todas as noites pensava no meu exército

                Todas as noites pensava no meu exército, aprisionado na amplidão como um navio, e, no entanto, permanente, sabendo bem que o dia o mostraria intacto e todo eriçado como os galos para a alegria do despertar. Enquanto arriavam os cavalos, ouvia-se esse vozerio que ressoava na manhã, fresco como címbalos. Os homens, embriagados pelo licor do dia nascente, enchem os pulmões de novo e saboreiam o áspero prazer da planície.
                Eu os levava até o oásis a conquistar. Quem não compreendesse os homens, teria procurado no próprio oásis a religião do oásis. Mas os homens do oásis não conhecem sua morada. É na alma de um destacamento desgastado pela areia que ela deve ser descoberta. Eu ensinava esse amor.
                Eu lhes dizia: “Vocês encontrarão mais à frente erva perfumada, o cântico das fontes e mulheres de longos véus coloridos, que fugirão espavoridas como uma manada de corças ágeis, mas doces de agarrar, já que são feitas para a captura...”
                Eu lhes dizia: “Estão convencidas de que vos odeiam e, para vos repelir, recorrerão a unhas e dentes. Mas para domá-las bastará afundar a mão nos caracóis azuis dos seus cabelos! ”
                Eu lhes dizia: “Bastará exercer vossa força sobre sua doçura para ficarem quietas. Ainda fecharão os olhos para vos ignorar, mas vosso silêncio exercerá pressão sobre elas como a sombra de uma águia. Até que acabarão por abrir os olhos para vocês e eles se encherão de lágrimas”.
                “Tereis trazido para elas sua imensidão, como poderão vos esquecer? ”
                “E concluía, para embriagá-los deste paraíso:
                "Haveis de conhecer palmeiras e aves de todas as cores... O oásis se entregará a vós, que levais na alma a religião do oásis, pois os que expulsastes deixaram de ser dignos. As próprias mulheres deles, ao lavarem a roupa no riacho que canta sobre pedrinhas pequenas e brancas, julgam executar um triste dever universal quando celebram uma festa. Mas vocês, que terão se endurecido na areia e secado ao sol e salgado com a crosta ardente das salinas, haverão de as desposar e, de mãos nos quadris, as vendo lavar os lençóis na água azul, poderão então saborear a sua vitória.
                "Vocês sobrevivem hoje na areia tal como o cedro, graças aos inimigos que os rodeiam e os endurecem, e depois de ter conquistado o oásis, sobreviverão no oásis se ele se não for para vocês o abrigo onde alguém se encerra e esquece, mas sim uma vitória permanente sobre o deserto.
                "Venceram os inimigos porque eles se fecharam no seu egoísmo, satisfeitos com as suas provisões. Só viam na coroa de areia que os rodeava um ornamento para o oásis e riam dos importunos que procuravam convencê-los a revezarem ao menos as sentinelas que adormeciam nos limites dessa pátria de fontes.
                “Estagnavam na ilusão da felicidade que tiravam dos bens possuídos. Ora, a felicidade é apenas o calor dos atos e o contentamento da criação. Aqueles que deixam de trocar alguma parte de si próprios e recebem de outro o alimento, nem que seja o mais bem escolhido e o mais delicado, aqueles que ouvem sutilmente os poemas alheios sem escrever os poemas próprios, se aproveitam do oásis sem o revigorarem, consomem cânticos que lhes fornecem, se amarram sem ajuda às manjedouras no estábulo e, reduzidos ao papel de gado, estão prontos para a escravidão”.
                E lhes disse: “Depois do oásis conquistado, nada de essencial há de mudar para vocês. É apenas uma outra forma de acampamento no deserto. Porque meu império se encontra ameaçado de todos os lados. Sua matéria-prima não passa de um conjunto familiar de cabras, carneiros, moradas e montanhas, mas se nele desata o nó que os liga uns aos outros, apenas ficarão os materiais espalhados, sujeitos ao saque”. 

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