domingo, 18 de dezembro de 2016

Porque tens necessidade de uma planície que só a linguagem te oferece

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Sem dúvida, conheço o ferreiro da minha aldeia que vem me dizer:
“Não dou importância ao que não me diz respeito. Se tenho meu chá, meu açúcar, meu burro alimentado e a mulher ao meu lado, se meus filhos progridem em idade e em virtude, então sou feliz e não peço outra coisa. Para que esses sofrimentos? ”
E como haveria de ser feliz se está perdido em sua casa no meio do mundo? Se mora com a família numa tenda perdida no deserto. O obrigo, portanto, a se corrigir:
“Se de noite encontras outros amigos dentro de outras tendas, se eles têm algo a te contar e te dão notícias do deserto...”
Porque eu vos vi, não esqueças! Eu vos vi ao redor das fogueiras noturnas, tostando o carneiro ou a cabra, e ouvi vossas vozes. Me aproximei a passos lentos, no silêncio do meu amor. É certo que falavam dos filhos, daquele que cresce e daquele que está doente, falavam da casa, mas sem insistir demais. E só começavas a te animar quando se sentava ao teu lado o viajante que voltava da caravana longínqua e estendia na tua frente as maravilhas de longe e os elefantes brancos de um príncipe e o casamento a mil quilômetros de distância daquela que conheces apenas o nome. Ou então aquele alvoroço dos inimigos. Ou quando ele contava sobre um cometa, ou alguma afronta, ou certo amor, ou da coragem diante da morte ou da raiva contra ti ou de uma grande preocupação. Era então que ficavas cheio de espaço e ligado a tantas coisas, pois aí é que adquiria significado a tua tenda amada e odiada, ameaçada e protegida. Apanhado numa rede milagrosa que te transformava em algo mais vasto do que tu...
Porque tens necessidade de uma planície que só a linguagem te oferece.
Lembro do que aconteceu quando meu pai alojou os três mil refugiados berberes num campo ao norte da cidade. Ele não queria que se misturassem com os nossos. Como era bondoso, os alimentou e abasteceu com roupas, açúcar e chá. Mas sem lhes exigir trabalho em troca das benesses da sua magnificência. Assim eles não tinham por que se inquietar com sua subsistência, e qualquer um deles poderia ter dito: “Não dou importância ao que não me diz respeito. Se tenho meu chá, meu açúcar, meu burro alimentado e a mulher a meu lado, se meus filhos progridem em idade e em virtude, então sou feliz e não peço outra coisa...”. Mas quem os teria achado felizes? Às vezes, quando meu pai desejava ensinar-me, íamos visitá-los.
“Veja, dizia ele, como começam a se tornar gado e a apodrecer docemente... não no corpo, mas nas almas”.
Porque tudo para eles perdia o significado. Se não jogas tua fortuna nos dados, é bom, no entanto o que os dados te possam simbolizar, em sonhos de propriedades e rebanhos, barras de ouro e diamantes que não possuis. Que existem noutro lugar. Mas chega uma hora em que os dados já nada podem representar. E o jogo não é mais possível.
E os nossos protegidos não tinham mais nada para dizer uns aos outros. Haviam gasto as histórias de família, que se pareciam todas, umas às outras. Haviam acabado de descrever uns aos outros as suas tendas, já que todas as suas tendas eram semelhantes. Haviam acabado de temer e de esperar e de inventar. Usavam ainda a linguagem para efeitos rudimentares: “Empresta-me o teu fogareiro”, podia dizer um”. Onde está o meu filho? ”, podia perguntar um outro. Humanidade deitada na cama de palha, debaixo da manjedoura, que havia de desejar? Em nome de que teria lutado? Pelo pão? Eles o recebiam. Pela liberdade? Mas dentro dos limites de seu universo eles eram infinitamente livres. Afogados nessa liberdade desmedida que esvazia certos ricos das suas entranhas. Para triunfarem dos inimigos? Mas já não tinham inimigos!
Meu pai me dizia:
“Podes usar um chicote em todos eles, deixá-los a todos feridos no rosto, não farão nada além de rosnar e recuar, ameaçando morder, como uma vulgar matilha de cães. Mas nenhum deles vai se arriscar e ninguém vai te morder. Podes cruzar os braços diante deles. E desprezá-los...”
Me dizia também:
“São carcaças de homens. Deixaram de ser homens. Podem te assassinar como covardes, pelas costas, porque a corja costuma ser perigosa. Mas não serão capazes de aguentar o teu olhar”.
No entanto, a discórdia instalou-se entre eles como uma doença. Uma discórdia incoerente que não os dividia em dois campos, mas lançava todos contra todos, porque aquele que comia sua parte das provisões os enganava. Vigiavam-se uns aos outros, como cães que circulam em volta do bebedouro, e em nome da sua justiça cometeram assassinatos, pois a justiça deles era principalmente igualdade. E qualquer um que se distinguisse em qualquer coisa era logo esmagado pelos outros.
“A massa, me disse meu pai, odeia a imagem do homem porque a massa é incoerente, empurra para todos os lados ao mesmo tempo e anula o esforço criador. É verdade que o homem não deve dominar o rebanho. Mas não procure aí a grande escravidão: ela aparece quando o rebanho esmaga o homem”.
Assim, em nome de direitos obscuros, os punhais que cortavam os ventres alimentavam a noite com cadáveres. E tal como se faz a limpeza do lixo, os arrastavam ao alvorecer até os limites do acampamento onde nossas carroças os carregavam como um serviço de limpeza pública. E me lembrava das palavras de meu pai: “Se queres que eles sejam irmãos, os obriga a construir uma torre. Mas, se quiser que se odeiem, joga-lhes um punhado de trigo”.
E constatamos pouco a pouco que eles iam perdendo o uso das palavras, que já não lhes serviam de mais nada. E meu pai me levava a passear por entre essas faces ausentes, que olhavam para nós sem nos conhecerem, embrutecidas e vazias. Só emitiam esses grunhidos vagos, que pediam o alimento. Vegetavam sem mágoas, nem desejos, nem ódio, nem amor. E logo deixaram mesmo de se lavar e nem sequer matavam os parasitas. Que assim foram prosperando. E aí começaram a aparecer as chagas e as úlceras. E o acampamento começou a empestear o ar. Meu pai tinha medo da peste. E, sem dúvida, também pensava na condição do homem.
“Vou decidir acordar o arcanjo que dorme, abafado, debaixo do esterco. Porque não são eles que eu respeito, mas é Deus através deles...”

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