domingo, 4 de dezembro de 2016

Deus, como o agricultor na colheita, ceifa flores junto com a cevada

Quando deixaram desabar o celeiro antes de estar cheio, é que eu pude avaliar bem a sua miséria. Pois a morte do avô, feito terra depois de ter se doado todo, é apenas uma maravilha, instrumento que passou a ser inútil. Eu vi nas minhas tribos essas crianças à beira da morte sem fôlego e nada dizendo, os olhos semicerrados, guardando ainda um resto de brasa sob os cílios imensos. É que Deus, como o agricultor na colheita, ceifa flores junto com a cevada. E quando recolhe a colheita, rica de grão, encontra lá essa preciosidade inútil.

      “É o filho de Ibrahim que está morrendo, dizia o povo. E lá fui eu, no meu passo lento, sem eles o saberem, até a casa de Ibrahim, com a certeza de que, acima das ilusões da linguagem, podemos nos entender se nos encerramos no silêncio do amor. E eles nem sequer me prestaram atenção, tão ocupados estavam em ouvi-lo morrer.
 Falavam baixo na casa, andavam arrastando as sandálias, como se ali houvesse alguém cheio de medo, pronto a fugir ao menor ruído mais nítido. Não ousavam mexer-se, nem abrir ou fechar as portas, como se ali houvesse uma chama trêmula acesa sobre uma leve capa de azeite. Quando o vi, senti que estava se indo, pela respiração breve, as mãozinhas fechadas, carregado pelo galope da febre, os olhos obstinadamente fechados, dispostos a não ver. Percebi em sua volta que as pessoas procuravam cativá-lo, como se cativa os animaizinhos selvagens. Traziam-lhe, como que tremendo, a tigela de leite. Talvez lhe agradasse o leite e ele reparasse no cheirinho e o bebesse. E se comunicavam com ele como a gazela que mordisca na palma da mão. Mas continuava sério e impassível como antes. Não era de leite que precisava. As velhinhas, baixo, muito baixinho, começavam a cantar uma canção da qual ele havia gostado — a das nove estrelas que se banham na fonte — mas estava claro que ele já estava longe demais, e não ouvia. Nem sequer se voltava para trás em sua fuga. Tão infiel ao morrer. E imploravam ao menos um gesto, um olhar, que o viajante, mesmo sem diminuir o passo, lança ao amigo...um sinal de reconhecimento. O viravam na cama, lhe enxugavam o rosto banhado em suor, forçavam-no a beber — e tudo isso talvez para o despertarem da morte.

     E resolvi deixá-los, atarefados em lhe estender laços para que vivesse. Oh! Tão fragilizados por essa criança de nove anos! E punham brinquedos à sua disposição para o capturarem com a felicidade. Mas a sua mãozinha os rejeitava, inexorável, quando os traziam para muito perto, como quem afasta os arbustos que obrigaram a reduzir o galope.
     Então saí e olhei de novo para a porta. Deixava atrás de mim apenas um momento, uma luz frouxa, um aspecto da cidade entre muitos outros. Uma criança chamada por engano tinha sorrido, tinha respondido ao apelo. Acabava de se voltar para a parede. Presença de criança já mais frágil que uma presença de pássaro... E os deixei fazendo o silêncio para aprisionar a criança que morria.


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