sábado, 17 de dezembro de 2016

Quando a devoção se extingue, é Deus que morre e se mostra doravante inútil

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Enganavam-se, mas o que eu havia de fazer? Quando a devoção se extingue, é Deus que morre e se mostra doravante inútil. Quando a devoção acaba, é o próprio império que se decompõe, porque é feito da devoção deles. Não que haja engano no império em si. Se chamo de propriedade aquela procissão de oliveiras e aquela cabana onde alguém se abriga, e quem as contempla experimenta amor e as unifica no fundo da alma, se ele passa a ver apenas oliveiras entre muitas, e no meio delas uma cabana perdida que só tem sentido ao abrigar da chuva, quem há de salvar essa propriedade de ser vendida e dividida? Porque essa venda não iria mudar em nada nem a cabana nem as oliveiras!
Vejam o dono da propriedade quando caminha sozinho pelas estradas, sob o orvalho da madrugada, sem carregar consigo nada da sua fortuna. Não goza dos seus rendimentos. É como se lhe houvessem tirado os bens que nesse momento não lhe servem para nada e que seu passo afunda na lama, se choveu, como os passos de um simples trabalhador, e afasta com a bengala o mato molhado, como o vagabundo mais humilde. E que do fundo daquele caminho escavado, nem sequer com o olhar abrange sua propriedade, simplesmente sabe que é o seu príncipe.
No entanto, se o encontrares e ele te olhar, é mesmo ele e não outro. Calmo e seguro de si, apoia-se sobre a escritura assinada, que não lhe serve de nada naquele momento. Não usa nada, mas nada lhe falta. Está bem alicerçado na certeza de que as pastagens, os campos de cevada e os palmeirais são seus. Os campos estão em repouso. Os celeiros dormem ainda. Os que malham o trigo ainda não fazem voar a sua luminosidade. Mas ele os abriga a todos na alma. Não é qualquer um que caminha ali, é o senhor que lentamente passeia, no meio da alfafa...
Muito cego é aquele que só sabe medir o homem pelos atos, que acredita que somente os atos o revelam, ou a experiência tangível ou o uso de um benefício. O que conta para o homem não é aquilo de que ele dispõe no momento, pois meu caminhante dispõe apenas do punhado de espigas que consegue colher com as mãos, ou do fruto que pode apanhar. Aquele que me segue na guerra está pleno da recordação da bem-amada: que não pode ver, nem tocar, nem apertar nos braços, e que nem está pensando nele, pois nesta hora de manhãzinha em que ele respira a planície e sente a atração que o liga a ela, no seu leito distante ela sequer acordou para o mundo. É como se estivesse ausente e morta. Adormecida. E, no entanto, o homem está carregado da existência dela, carregado de uma ternura que não utiliza e que dorme, esquecida de si própria, como os grãos no celeiro, cheia de perfumes que ele não cheira, carregada com o murmúrio da fonte que é a coração da casa e que ele não ouve, carregado ele também com o peso de um império que o torna diferente dos outros.
Ou aquele amigo que encontras na rua e que traz em si o filho doente. Ao longe doente. Do qual ele não sente com a sua mão a febre, e não ouve os lamentos. E que nada muda em sua vida naquele instante. E, no entanto, te parece esmagado com o peso de uma criança na alma.
O mesmo se passa com aquele que vem do império, mesmo que não o consiga abranger com um simples olhar, nem usar suas provisões nem receber dele a menor vantagem, mas que cresceu em sua alma como o dono da propriedade ou o pai da criança doente ou aquele que o amor engrandece quando a amada não só está longe, mas adormecida. Só o sentido das coisas conta para o homem.


Trecho de hoje do livro "Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a 80 apoiadores que já levantaram mais de 5.000 Reais para viabilizar esse projeto cultural. Contribua hoje para o financiamento da edição em papel. Consulte as condições dos prêmios no site abaixo.

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