sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Pareceu-me que eles estavam enganados sobre o respeito

Pareceu-me que eles estavam enganados sobre o respeito. Porque apenas tenho me preocupado com os direitos de Deus através do homem. E a verdade é que sempre concebi o mendigo como embaixador de Deus, sem por isso lhe dar demasiada importância.
                Mas nunca reconheci os direitos do mendigo, da úlcera do mendigo e de sua indignidade, embora ele as trate como ídolos.
                Nunca até hoje encontrei nada mais repugnante do que esse bairro da cidade, que começava no flanco de uma colina e ia até ao mar, semelhante a um esgoto. Os becos, que desembocavam nas ruelas, exalavam baforadas imundas e empesteadas. A ralé só emergia destas profundezas esponjosas para se ofender com uma voz gasta e sem cólera verdadeira, como bolhas flácidas que rebentam regularmente na superfície dos pântanos.
                Lembro-me de ver um leproso rindo gordurosamente e limpando um dos olhos com um trapo sórdido. Era acima de tudo vulgar e estava todo satisfeito com a sua baixeza.
                Meu pai decidiu o incêndio. E aquela turba, que gostava das espeluncas bolorentas, começou a fermentar, reclamando em nome dos seus direitos. O direito à lepra no bolor.
                “Isto é natural, me disse meu pai, porque, segundo eles, a justiça consiste em perpetuar aquilo que existe”.
                E eles gritavam, apoiados no direito à podridão. Fundados pela podridão, defendiam a podridão.
                “Se deixas que se multipliquem os hipócritas, continuou meu pai, aí nascem os direitos dos hipócritas. Os quais são evidentes. E nascerão cantores para os celebrar. E te cantarão como é grande o drama dos hipócritas condenados a desaparecer”.
                “Ser justo..., disse meu pai, é preciso escolher. Justo para o arcanjo ou justo para o homem? Justo para a chaga ou justo para o corpo saudável? Por que hei de ouvir aquele que vem me falar em nome da sua pestilência? ”
                “Mas cuidarei dele por causa de Deus. Porque é também uma morada de Deus. Mas não conforme o desejo dele, que não passa de desejo expresso pela úlcera”.
                “Depois que o tiver limpado e lavado e ensinado, então seu desejo será outro e renegará a si próprio tal como era antes. E porque haveria eu de ter sido aliado de quem ele próprio viria a renegar? Porque haveria eu de seguir o desejo do leproso vulgar, e o impedir de nascer e de se enobrecer?


                “Por que tomaria o partido do que é, contra o que há de ser? Do que vegeta, contra o que permanece em potencial? ”

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