segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

E de que vale um enfeite, se não há uma festa?

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    “Eis aí, dizia meu pai, um grande mistério do homem. Eles perdem o essencial e não percebem que o perderam. Como também não percebem os sedentários dos oásis, sentados em cima das provisões. Na verdade, o que eles perderam não se vê nos bens materiais que não mudam. E os homens contemplam sempre o mesmo conjunto de carneiros, de cabras, de moradas e de montanhas, mas que deixaram de constituir uma propriedade...
                “Se eles perdem o sentido do império, não percebem que se endureceram e perderam sua substância e deixaram de dar valor às coisas. As coisas conservam a sua aparência, mas de que vale um diamante ou uma pérola, se ninguém os quer: são apenas vidro polido. E a criança que embalas perdeu alguma coisa de si quando deixa de ser oferenda para o império. Mas nem percebes isso, porque o sorriso é o mesmo.
                “Não notam seu empobrecimento porque os objetos continuam a ter o mesmo uso. Mas qual é o uso de um diamante? E de que vale um enfeite, se não há uma festa? E de que vale a criança se não é do império, se não sonhas em fazer dela um conquistador, um senhor ou um arquiteto? Se a reduziste a um simples corpo material? ”
                “Desconhecem o seio invisível que os amamentava noite e dia, porque o império te alimenta a alma como tua amada te alimenta de amor e transforma em ti o sentido das coisas, embora esteja distante, repousando, ausente como se estivesse morta. Ao longe sabes que existe uma frágil respiração que nem podes sequer perceber e o mundo para ti é verdadeiro milagre. Assim o senhor da propriedade, no orvalho da manhã, leva na alma, ao passear, até o sono dos empregados.
                “O que é estranho é o homem ficar desesperado quando a amada o deixa, mas se ele próprio deixa de amar ou de venerar o império, nem sequer suspeita de seu empobrecimento. Simplesmente diz: “Não era tão bonita como eu julgava, nem tão simpática...” e lá se vai satisfeito, ao sabor do vento. Mas o mundo já não é um milagre para ele. E a madrugada já não é a madrugada do regresso ou a madrugada do despertar nos braços dela. A noite já não é o grande santuário para o amor. Ela deixou de ser, graças àquela que ressona mansamente, esse grande manto de pastor. Tudo desbotou. Tudo se endureceu. E o homem que ignora o desastre não chora a sua plenitude acabada. Fica satisfeito com sua liberdade, que é a liberdade de não existir.
                “O mesmo ocorre com aquele no qual o império morreu: A minha devoção, acha ele, era cegamente estúpida”. É verdade, ele tem razão. Só existe em sua volta um aglomerado desordenado de cabras, de carneiros, de casas e montanhas. O império era uma criação do seu coração.

                “Mas a beleza de uma mulher, onde é que a hospedas se não há homem que se possa emocionar com ela? E o valor do diamante, se ninguém o deseja possuir? E o império, se já não há servidores do império?

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