domingo, 25 de dezembro de 2016

Libertem o homem, e ele criará

https://www.catarse.me/cidadela

A guerra se torna difícil quando não é mais inclinação natural ou expressão de um desejo. Os meus generais, com sua sólida estupidez, estudavam táticas inteligentes e discutiam e procuravam a perfeição antes de agir. Pois em vez de serem animados por Deus, eram apenas honestos e trabalhadores. E então eles fracassavam. Mandei chamá-los para os exortar:
“Vocês nunca irão vencer, porque procuram a perfeição. Mas ela é objeto de museu. Proíbem os erros e esperam para agir até terem certeza de que um gesto ousado terá eficácia garantida. Mas onde encontrar a certeza do futuro? Da mesma forma que impedem no seu território o aparecimento de pintores, de escultores e de qualquer inventor fértil, também impedem a vitória. Pois eu já vos disse: a torre, a cidade ou o império crescem como a árvore. São manifestação da vida porque precisam do homem para nascer. E o homem julga calcular. Acredita que a razão governa a edificação das pedras, quando a escalada dessas pedras nasceu primeiramente do seu desejo. E a cidade está contida nele, na imagem que carrega na alma, tal como a árvore está guardada na semente. E os seus cálculos apenas encobrem o seu desejo. Tentando explicá-lo. Pois não conseguirão desvendar a árvore mostrando a água que ela bebeu, a seiva mineral que extraiu e o sol que lhe deu força. E não conseguirão interpretar a cidade ao dizer: "Eis aqui a explicação por que não desaba essa abóbada... aqui estão os cálculos dos arquitetos...” Pois se a cidade deve nascer, sempre se encontrarão calculistas competentes. Mas eles são apenas funcionários. Se os colocar em primeiro plano, achando que as cidades surgem de suas mãos, cidade alguma surgirá da areia. Eles sabem como nascem as cidades, mas não por que. Mas basta lançar o conquistador ignorante com seu povo sobre a terra áspera e sobre o cascalho, ao voltar mais tarde estará brilhando ao sol a cidade das trinta cúpulas... E as cúpulas estarão de pé como os ramos do cedro. Porque o desejo do conquistador se terá tornado cidade de cúpulas, e ele terá usado como meios, como ruas e como estradas, todos os calculistas de que precisava.
“Portanto, dizia a eles, irão perder a guerra por não desejarem nada. Nenhum declive os solicita. Em vez de colaborar, se destroem uns aos outros com decisões incoerentes. Olhem para a pedra e vejam como ela pesa. Ela rola para o fundo da ravina. Porque ela é a colaboração de todos os grãos de pó que a constituem e pesam todos para o mesmo fim. Olhem para a água no reservatório. Ela se apoia contra as paredes e aguarda as ocasiões. Porque virá o dia em que chegará a ocasião. E a água pesa incansavelmente noite e dia. Parece dormir e no entanto vive. Se aparece a menor fenda, eis que ela se põe em marcha, se insinua, encontra o obstáculo, o contorna se for possível, e parece voltar ao sono, se o caminho se fecha, até a próxima fenda que lhe abrirá outra rota. Jamais perde uma nova oportunidade. E, por vias indecifráveis, que calculista algum teria imaginado, uma simples pressão terá bastado para esvaziar o reservatório das vossas provisões de água.
“Vosso exército é semelhante a um mar que não exerce pressão contra o dique. Sois uma massa sem fermento. Uma terra sem semente. Uma multidão sem desejos. Administrais em vez de conduzir. São apenas testemunhas estúpidas. E as forças obscuras que pesam sobre as paredes do império não ligam para administradores e vos afogarão sob suas marés. E depois, os vossos historiadores, mais estúpidos ainda, explicarão as causas do desastre dizendo que a inteligência, o cálculo e a ciência do adversário foram a causa de seu êxito. Mas afirmo que não foi nem a inteligência, nem o cálculo nem a ciência da água que fizeram com que ela dissolvesse os diques e devorasse as cidades dos homens.
“E vou esculpir o futuro tal como o criador que extrai sua obra do mármore a golpes de cinzel. E caem de uma em uma as escamas que escondiam o rosto do deus. E os outros dirão: “Este mármore continha este deus. Ele o descobriu. E seu gesto foi apenas um meio”. Mas digo que ele não calculava, ele moldava a pedra. O sorriso do rosto não é feito de suor, de faíscas, de golpes de cinzel e de mármore. O sorriso não é da pedra, mas sim do criador. Libertem o homem, e ele criará”.

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