sábado, 10 de dezembro de 2016

“A justiça, a meu ver, disse-me meu pai, está em honrar o depositário por causa do depósito.

“A justiça, a meu ver, disse-me meu pai, está em honrar o depositário por causa do depósito. Tanto como honro a mim próprio. Porque ele reflete a mesma luz. Por muito pouco visível que seja nele. A justiça é considerá-lo como veículo e como caminho. A minha caridade é fazê-lo nascer de si próprio.
                “Mas este esgoto que mergulha no mar me entristece diante dessa podridão. Deus fica tão desfigurado... Espero deles o sinal que me mostrará o homem, e nunca o recebo”.
                — E, no entanto, eu disse a meu pai, já vi um ou outro partilhar o pão e ajudar alguém mais apodrecido do que ele a descarregar um saco ou acolher por compaixão uma criança doente...
                — Eles põem tudo em comum, respondeu meu pai, e com essa massa fazem sua caridade. Aquilo que chamam caridade. Eles partilham. Mas nesse pacto, que também os chacais sabem fazer em volta de uma carcaça, propõem-se celebrar um grande sentimento. Querem nos fazer crer que há uma doação nisso! Mas o valor da dádiva depende daquele a quem se dirige. E, nesse caso, se dirige ao mais baixo. Como álcool para o bêbado. Assim a dádiva é doença. Mas se dou a saúde, é seu corpo que curo... e ele me odeia.
                “Chegam ao ponto, acrescentou ainda meu pai, de, com toda a sua caridade, preferirem a podridão..., mas e se prefiro a saúde? ”
                “Quando te salvarem a vida, continuou meu pai, não agradeças nunca. Não leves longe demais tua gratidão. Porque se aquele que te salvou espera gratidão, isso é muito baixo, afinal o que pensa ele? Te ter servido? Foi a Deus que ele serviu ao te preservar, se é que vales alguma coisa. E do teu lado, se exprimes com exuberância demais teu agradecimento, é que te falta modéstia e humildade. Porque o importante que ele salvou não foi teu pequeno destino pessoal, mas sim a obra em que colaboras e que se apoia também em ti. E como ele está submetido à mesma obra, não tens por que lhe agradecer. Quem lhe agradece é o próprio trabalho de ter te salvo. É aí que se encontra a sua colaboração na obra”.
                “Também pecas por orgulho se te submetes às suas emoções mais vulgares. E se o elogias na sua mesquinhez, está fazendo de ti seu escravo. Porque, se ele se fosse nobre, rejeitaria tua gratidão.
                “Não há nada que eu respeite tanto, dizia meu pai, como a admirável colaboração de um através de outro. Posso me servir de ti ou da pedra. Quem é que demonstra agradecimento à pedra por ter servido de fundação ao templo?
                “Mas eles não colaboram em nada mais do que neles próprios. E este esgoto que se lança ao mar não alimenta cânticos, nem dá origem a estátuas de mármore, nem é caserna para as conquistas. Para eles, se trata apenas de partilhar o melhor possível suas provisões. Não te deixes enganar. As provisões são necessárias, porém mais perigosas do que a fome.
                “Dividiram tudo em dois tempos, ambos sem significado: a conquista e o prazer. Viste por acaso a árvore crescer e, uma vez já grande, se impor sobre outra árvore? A árvore cresce, simplesmente. E eu te digo: aqueles que, depois da conquista, se fazem sedentários, já estão mortos...”
               

                A caridade, de acordo com o sentido do meu império, é colaboração.

                  Trecho de hoje do livro "Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a 80 apoiadores que já levantaram mais de 5.000 Reais, e contribua hoje para o financiamento da edição em papel. Consulte as condições dos prêmios no site abaixo.
https://www.catarse.me/cidadela




Nenhum comentário:

Postar um comentário