“A
justiça, a meu ver, disse-me meu pai, está em honrar o depositário por causa do
depósito. Tanto como honro a mim próprio. Porque ele reflete a mesma luz. Por
muito pouco visível que seja nele. A justiça é considerá-lo como veículo e como
caminho. A minha caridade é fazê-lo nascer de si próprio.
“Mas este esgoto que mergulha no
mar me entristece diante dessa podridão. Deus fica tão desfigurado... Espero
deles o sinal que me mostrará o homem, e nunca o recebo”.
— E, no entanto, eu disse a meu
pai, já vi um ou outro partilhar o pão e ajudar alguém mais apodrecido do que
ele a descarregar um saco ou acolher por compaixão uma criança doente...
— Eles põem tudo em comum, respondeu
meu pai, e com essa massa fazem sua caridade. Aquilo que chamam caridade. Eles
partilham. Mas nesse pacto, que também os chacais sabem fazer em volta de uma carcaça,
propõem-se celebrar um grande sentimento. Querem nos fazer crer que há uma
doação nisso! Mas o valor da dádiva depende daquele a quem se dirige. E, nesse
caso, se dirige ao mais baixo. Como álcool para o bêbado. Assim a dádiva é
doença. Mas se dou a saúde, é seu corpo que curo... e ele me odeia.
“Chegam ao ponto, acrescentou
ainda meu pai, de, com toda a sua caridade, preferirem a podridão..., mas e se
prefiro a saúde? ”
“Quando te salvarem a vida,
continuou meu pai, não agradeças nunca. Não leves longe demais tua gratidão.
Porque se aquele que te salvou espera gratidão, isso é muito baixo, afinal o que
pensa ele? Te ter servido? Foi a Deus que ele serviu ao te preservar, se é que
vales alguma coisa. E do teu lado, se exprimes com exuberância demais teu
agradecimento, é que te falta modéstia e humildade. Porque o importante que ele
salvou não foi teu pequeno destino pessoal, mas sim a obra em que colaboras e que
se apoia também em ti. E como ele está submetido à mesma obra, não tens por que
lhe agradecer. Quem lhe agradece é o próprio trabalho de ter te salvo. É aí que
se encontra a sua colaboração na obra”.
“Também pecas por orgulho se te
submetes às suas emoções mais vulgares. E se o elogias na sua mesquinhez, está fazendo
de ti seu escravo. Porque, se ele se fosse nobre, rejeitaria tua gratidão.
“Não há nada que eu respeite
tanto, dizia meu pai, como a admirável colaboração de um através de outro.
Posso me servir de ti ou da pedra. Quem é que demonstra agradecimento à pedra
por ter servido de fundação ao templo?
“Mas eles não colaboram em nada
mais do que neles próprios. E este esgoto que se lança ao mar não alimenta
cânticos, nem dá origem a estátuas de mármore, nem é caserna para as conquistas.
Para eles, se trata apenas de partilhar o melhor possível suas provisões. Não
te deixes enganar. As provisões são necessárias, porém mais perigosas do que a
fome.
“Dividiram tudo em dois tempos,
ambos sem significado: a conquista e o prazer. Viste por acaso a árvore crescer
e, uma vez já grande, se impor sobre outra árvore? A árvore cresce, simplesmente.
E eu te digo: aqueles que, depois da conquista, se fazem sedentários, já estão
mortos...”
A caridade, de acordo com o
sentido do meu império, é colaboração.
Trecho de hoje do livro
"Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a 80 apoiadores que
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https://www.catarse.me/cidadela
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