sábado, 24 de dezembro de 2016

Foi então que recebi da sabedoria de Deus ensinamentos sobre o poder.

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No silêncio do meu amor mandei executar grande número deles. Mas cada morte ia alimentar a lava subterrânea da rebeldia. As evidências se devem aceitar. Mas já não as havia. Era difícil descobrir em nome de que virtude aquele homem morria. Foi então que recebi da sabedoria de Deus ensinamentos sobre o poder.
Porque o poder não se explica pelo rigor. Mas pela simplicidade da linguagem. E realmente é necessário o rigor para impor a nova linguagem, porque não há nada que a demonstre e ela nem é mais verdadeira nem mais falsa, mas sim outra. Mas como o rigor haveria de impor uma linguagem que já por si dividia os homens, por permitir se contradizerem? Impor uma tal linguagem é impor a divisão e desmantelar o rigor.
Posso usar meu arbítrio quando simplifico. Então imponho ao homem se tornar outro, mais tranquilo, mais lúcido, mais generoso e mais caloroso, unido enfim a si próprio em suas aspirações, e, uma vez transformado, como renega a larva que descobre ter sido, se admira com o seu próprio esplendor, maravilhado, se torna meu aliado e soldado do meu rigor. E meu rigor não tem outro fundamento além do papel que desempenha. Ele é a porta monumental pela qual às vezes com chicotadas se faz passar o rebanho para que mude e se transfigure. Mas todos eles não são obrigados: são convertidos.
Mas não existe rigor eficaz se, passado o pórtico, os homens despojados de si próprios e saídos das crisálidas, não sentirem abrir suas asas e, em vez de celebrar o sofrimento que os fundou, se descobrem amputados e tristes, e se voltam para a outra margem, que há pouco deixaram...
Então, tristemente inútil, o sangue dos homens enchia os rios... Aqueles que eu mandara executar, me mostravam que eu não conseguira convertê-los, e demonstravam o meu erro. Então inventei essa oração:
“Senhor, meu manto é muito curto e sou um mau pastor que não sabe abrigar seu povo. Atendo as necessidades de alguns e prejudico outros”.
“Senhor, sei que toda aspiração é bela. A da liberdade e a da disciplina. A do pão para os filhos e a do sacrifício do pão. A da ciência que examina e a do respeito que aceita e edifica. A das hierarquias que enaltece e a da partilha que distribui. A do tempo que permite a meditação e a do trabalho que preenche o tempo. A do amor pelo espírito que castiga o corpo e engrandece o homem, e a da compaixão que cura o corpo. A do futuro a construir e a do passado a salvar. A da guerra que planta as sementes e a da paz que as recolhe.
“Mas sei também que estes conflitos não passam de conflitos de linguagem e cada vez que o homem se eleva, os vê de um pouco mais alto. E deixa de haver conflitos.
“Senhor, quero instituir a grandeza dos meus guerreiros e a beleza dos templos pelos quais os homens se trocam e que dá sentido à vida. Mas essa noite, ao passear no deserto do meu amor, encontrei uma jovem lavada em lágrimas. Levantei-lhe a cabeça para ler nos seus olhos. E a tristeza que vi neles me emocionou.
Se me recuso, Senhor, a tomar conhecimento dela, recuso uma parte do mundo e minha obra fica inacabada. Não é que eu me afaste dos meus fins, mas essa jovem tem de ser consolada! Porque só então o mundo vai bem. Ela também é signo do mundo”.

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