sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

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E durante toda a noite vigiava os meus homens, sob o crepitar da areia que se levantava e corria pelas dunas, para as desfazer e as formar um pouco mais adiante. Nessa noite sem idade, em que a lua aparecia e desaparecia na fumaça avermelhada que os ventos levavam consigo. E escutava as sentinelas se chamarem ainda umas às outras, nos três cantos do acampamento triangular — mas suas vozes eram apenas longos gritos sem crença, mais tristes ainda pela solidão que os envolvia.
                E eu dizia a Deus: “Não há nada para os acolher...Sua velha linguagem se desgastou. Os prisioneiros de meu pai eram infiéis, mas cercados por um império forte. Meu pai lhes enviou um cantor ao qual respondia um império. Por isso em apenas uma noite o poder de seu verbo os converteu. Mas esse poder não era dele, e sim do império.
                “Mas não tenho cantores, e nem verdades, e nem possuo um manto para me fazer pastor. Será que terão que se matar uns aos outros e começar a corromper a noite com essas facadas que vão diretas ao ventre e são inúteis como a lepra? Em nome do que os hei de juntar? ”
               
                E aqui e ali apareciam falsos profetas, que conseguiam juntar alguns adeptos. E os fiéis, embora raros, se encontravam animados e prontos a morrer por suas crenças. Mas as crenças deles não valiam nada para os outros. E as crenças se opunham todas umas às outras. E assim se construíam igrejinhas, que se odiavam umas às outras, por ter o costume de dividir tudo em erro e em verdade. E o que não é verdade é erro e o que não é erro é verdade. Mas eu, que sei muito bem que o erro não é o contrário da verdade, mas sim um arranjo diferente, outro templo construído com as mesmas pedras, nem mais verdadeiro nem mais falso, mas sim outro, ao descobri-los dispostos a morrer por verdades ilusórias, isso me cortava a alma. E implorava a Deus: "Não poderias me ensinar uma verdade que domine todas as verdades individuais deles e as acolha todas no seu seio? Se, destas ervas que se devoram umas às outras, eu fizer uma árvore que uma alma única anime, então este ramo aproveitará a prosperidade do outro ramo e toda a árvore será apenas colaboração maravilhosa e expansão ao sol.
                “Não terei eu uma alma bastante grande para os conter? ”
               
                Os virtuosos eram ridicularizados e os mercadores triunfavam. Vendiam. Alugavam as virgens. Saqueavam as provisões de cevada que eu tinha reservado para períodos de fome. Assassinavam. Mas eu não era ingênuo ao ponto de atribuir o fim do império a este fracasso da virtude, sabia perfeitamente que o fracasso da virtude era devido ao fim do império.
                “Senhor, rogava eu, me conceda essa imagem pela qual eles se trocarão no fundo da alma. E todos, através de cada um, crescerão em poder. E a virtude será signo do que eles são”.

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