terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Mas eu lembrava da sabedoria de meu pai.
                Depois de conquistar novos territórios, como os governadores ainda estavam pouco seguros, tinha lá colocado generais para os apoiarem. Ora os viajantes que circulavam dessas novas províncias para a capital, vinham prevenir meu pai:
                “Em tal província, contavam, o general insultou o governador. Já não se falam”.
                Um outro que vinha de outra província:
                “Senhor, o governador agora odeia o general”.
                De outro lugar, aparecia um terceiro:
                “Senhor, imploram a tua arbitragem para resolver um grave conflito. O governador e o general recorreram aos tribunais”.
                E meu pai, a princípio, ainda ouvia os motivos das discórdias. E esses motivos eram sempre evidentes. Quem havia sofrido afrontas decidira vingá-las. Era tudo traições vergonhosas e conflitos inconciliáveis. E raptos e ofensas. E sempre, como é lógico, devia haver um que tinha razão e outro que não tinha. Mas essas histórias cansavam meu pai.
                “Tenho mais que fazer, me disse, do que estudar suas estúpidas querelas. Nascem de um extremo a outro do território, diferentes umas das outras e apesar disso semelhantes. Como é que consegui fazer o milagre de escolher governadores e generais que não se toleram uns aos outros?
                “Quando os animais que pões num estábulo morrem uns após os outros, não te debruces sobre eles à procura da causa do mal. Debruça-te sobre o estábulo e queima-o”.
                Mandou, portanto, chamar um mensageiro:
                “Defini mal suas prerrogativas. Ignoram qual dos dois tem precedência sobre o outro nos banquetes. Se vigiam com mau humor. Avançam os dois frente a frente até o momento de se sentar. E o mais grosseiro ou menos estúpido é que vence e ocupa o lugar. O outro passa então a odiá-lo. Jura ser menos cretino na próxima vez e apressar o passo para se sentar primeiro E, depois, claro, se roubam as mulheres, pilham os rebanhos ou se insultam... Não passam de banalidades sem interesse, mas acreditam nelas e isso os faz sofrer. Mas não estou disposto a ouvir o estardalhaço que fazem.
                “Queres que se amem? Não lhes jogue o grão do poder para que o partilhem. Que cada um sirva o outro. E que o outro sirva o império. A essa altura irão se amar por se ajudar um ao outro e por edificarem em conjunto".
                Castigou-os, pois, cruelmente pela inútil algazarra das suas discórdias: “O império, lhes dizia ele, não tem nada a ver com os seus escândalos. Um general, é claro, deve obedecer ao governador. Castigarei, portanto este último por não ter sabido comandar. E o outro por não ter sabido obedecer. E vos recomendo o silêncio".
                E de um extremo a outro do território os homens foram se reconciliando. Os camelos roubados foram restituídos. As esposas adúlteras foram devolvidas ou repudiadas. As ofensas foram reparadas. E aquele que obedecia se sentia lisonjeado pelos elogios daquele que mandava. E se abriam nele fontes de alegria. E o que comandava ficava contente por mostrar seu poder ao enaltecer o subalterno. E o empurrava para a frente nos dias de banquete, para que se ele sentasse primeiro.
                “Não é que eles fossem estúpidos, dizia meu pai. É que as palavras da linguagem não carregam nada que seja digno de interesse. Aprenda a ouvir não o vento das palavras nem os raciocínios que lhes permitem se enganar. Aprenda a olhar mais longe. Porque o ódio deles não era assim tão absurdo. Se cada pedra não se encontra no seu lugar, não há templo. E se cada pedra estiver em seu lugar e servir ao templo, então só conta o silêncio que delas nasce, e a oração que lá se forma. E quem entende quando se fala só de pedras?"
                Por isso não me interessava com os problemas dos meus generais que vinham me pedir que buscasse nos atos dos homens as causas de suas discórdias a fim de que eu as pusesse em ordem com minha justiça. Mas no silêncio do meu amor eu atravessava o acampamento e os via se odiarem. E depois me retirava para compartilhar com Deus minha oração.
                “Senhor, eles estão divididos por já não construírem o império. O erro está em pensar que eles deixam de construir porque estão divididos. Mostra-me a torre que farei construir e que lhes permitirá se trocar por ela em suas aspirações diversas. Que irá convocar a todos e abençoar cada um ao atraí-lo para sua grandeza.
               

                Meu manto é curto e sei que sou um mau pastor que não sabe abrigá-los debaixo da asa. E se odeiam porque tem frio. Porque o ódio não passa de insatisfação. Todo ódio tem um sentido profundo, que aliás o domina. As diversas ervas se odeiam e se devoram umas às outras, mas não a árvore única, onde cada ramo cresce com a prosperidade dos outros. Me empresta uma tira do teu manto para que eu possa abrigar os meus guerreiros e meus operários e meus sábios e os maridos e as mulheres e até as crianças que choram...”




segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Em sua sólida estupidez meus generais se reuniram

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Em sua sólida estupidez meus generais se reuniram: “É preciso apurar, se diziam, por que nossos homens se dividem e se odeiam”. Mandavam chamá-los. E ouviam uns e outros, procurando conciliar as teses e estabelecer justiça e dar a cada um o que lhe era devido e tirar a outro o que detinha indevidamente. E se o motivo do ódio era a inveja, os generais procuravam determinar quem tinha razão e quem não tinha. E logo não entendiam mais nada, tanto os problemas se imbricavam uns aos outros, tanto o mesmo ato mostrava rostos diversos, nobre sob um ponto de vista, baixo sob outro, cruel e generoso ao mesmo tempo.
E suas reuniões entravam pela noite dentro. E, como não dormiam, sua estupidez ia aumentando. Então, vieram a mim: “Só há uma solução para essa balbúrdia. É o dilúvio dos hebreus! ”
Mas eu me lembrava de meu pai: “Quando o mofo dá no trigo, procura-o fora do trigo, muda-o de celeiro. Quando os homens se odeiam, não ouça a explicação imbecil das razões que eles têm para se odiar. Porque existem muitas outras, além das que eles citaram, e que nem imaginam. E têm outras tantas para se amarem. E outras tantas para viverem na indiferença. E eu que nunca me interesso pelas palavras, sabendo que elas carregam apenas signos difíceis de interpretar, como as pedras do edifício não mostram nem a sombra nem o silêncio, como os materiais da árvore não explicam a árvore, porque iria me interessar pelos materiais de seu ódio? Eles o edificam como um templo com as mesmas pedras que serviriam para edificar o amor”.
Então eu simplesmente assistia a esse ódio que eles vestiam com seus maus pretextos, e não pensava em curá-los através do exercício de uma justiça hipócrita. Ela serviria apenas para os endurecer nas suas razões, aprofundando os defeitos e as qualidades. Um rancor naquele que eu tivesse achado errado e orgulho de quem eu tivesse dado razão. E aí eu teria cavado o abismo.

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domingo, 25 de dezembro de 2016

Libertem o homem, e ele criará

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A guerra se torna difícil quando não é mais inclinação natural ou expressão de um desejo. Os meus generais, com sua sólida estupidez, estudavam táticas inteligentes e discutiam e procuravam a perfeição antes de agir. Pois em vez de serem animados por Deus, eram apenas honestos e trabalhadores. E então eles fracassavam. Mandei chamá-los para os exortar:
“Vocês nunca irão vencer, porque procuram a perfeição. Mas ela é objeto de museu. Proíbem os erros e esperam para agir até terem certeza de que um gesto ousado terá eficácia garantida. Mas onde encontrar a certeza do futuro? Da mesma forma que impedem no seu território o aparecimento de pintores, de escultores e de qualquer inventor fértil, também impedem a vitória. Pois eu já vos disse: a torre, a cidade ou o império crescem como a árvore. São manifestação da vida porque precisam do homem para nascer. E o homem julga calcular. Acredita que a razão governa a edificação das pedras, quando a escalada dessas pedras nasceu primeiramente do seu desejo. E a cidade está contida nele, na imagem que carrega na alma, tal como a árvore está guardada na semente. E os seus cálculos apenas encobrem o seu desejo. Tentando explicá-lo. Pois não conseguirão desvendar a árvore mostrando a água que ela bebeu, a seiva mineral que extraiu e o sol que lhe deu força. E não conseguirão interpretar a cidade ao dizer: "Eis aqui a explicação por que não desaba essa abóbada... aqui estão os cálculos dos arquitetos...” Pois se a cidade deve nascer, sempre se encontrarão calculistas competentes. Mas eles são apenas funcionários. Se os colocar em primeiro plano, achando que as cidades surgem de suas mãos, cidade alguma surgirá da areia. Eles sabem como nascem as cidades, mas não por que. Mas basta lançar o conquistador ignorante com seu povo sobre a terra áspera e sobre o cascalho, ao voltar mais tarde estará brilhando ao sol a cidade das trinta cúpulas... E as cúpulas estarão de pé como os ramos do cedro. Porque o desejo do conquistador se terá tornado cidade de cúpulas, e ele terá usado como meios, como ruas e como estradas, todos os calculistas de que precisava.
“Portanto, dizia a eles, irão perder a guerra por não desejarem nada. Nenhum declive os solicita. Em vez de colaborar, se destroem uns aos outros com decisões incoerentes. Olhem para a pedra e vejam como ela pesa. Ela rola para o fundo da ravina. Porque ela é a colaboração de todos os grãos de pó que a constituem e pesam todos para o mesmo fim. Olhem para a água no reservatório. Ela se apoia contra as paredes e aguarda as ocasiões. Porque virá o dia em que chegará a ocasião. E a água pesa incansavelmente noite e dia. Parece dormir e no entanto vive. Se aparece a menor fenda, eis que ela se põe em marcha, se insinua, encontra o obstáculo, o contorna se for possível, e parece voltar ao sono, se o caminho se fecha, até a próxima fenda que lhe abrirá outra rota. Jamais perde uma nova oportunidade. E, por vias indecifráveis, que calculista algum teria imaginado, uma simples pressão terá bastado para esvaziar o reservatório das vossas provisões de água.
“Vosso exército é semelhante a um mar que não exerce pressão contra o dique. Sois uma massa sem fermento. Uma terra sem semente. Uma multidão sem desejos. Administrais em vez de conduzir. São apenas testemunhas estúpidas. E as forças obscuras que pesam sobre as paredes do império não ligam para administradores e vos afogarão sob suas marés. E depois, os vossos historiadores, mais estúpidos ainda, explicarão as causas do desastre dizendo que a inteligência, o cálculo e a ciência do adversário foram a causa de seu êxito. Mas afirmo que não foi nem a inteligência, nem o cálculo nem a ciência da água que fizeram com que ela dissolvesse os diques e devorasse as cidades dos homens.
“E vou esculpir o futuro tal como o criador que extrai sua obra do mármore a golpes de cinzel. E caem de uma em uma as escamas que escondiam o rosto do deus. E os outros dirão: “Este mármore continha este deus. Ele o descobriu. E seu gesto foi apenas um meio”. Mas digo que ele não calculava, ele moldava a pedra. O sorriso do rosto não é feito de suor, de faíscas, de golpes de cinzel e de mármore. O sorriso não é da pedra, mas sim do criador. Libertem o homem, e ele criará”.

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sábado, 24 de dezembro de 2016

Foi então que recebi da sabedoria de Deus ensinamentos sobre o poder.

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No silêncio do meu amor mandei executar grande número deles. Mas cada morte ia alimentar a lava subterrânea da rebeldia. As evidências se devem aceitar. Mas já não as havia. Era difícil descobrir em nome de que virtude aquele homem morria. Foi então que recebi da sabedoria de Deus ensinamentos sobre o poder.
Porque o poder não se explica pelo rigor. Mas pela simplicidade da linguagem. E realmente é necessário o rigor para impor a nova linguagem, porque não há nada que a demonstre e ela nem é mais verdadeira nem mais falsa, mas sim outra. Mas como o rigor haveria de impor uma linguagem que já por si dividia os homens, por permitir se contradizerem? Impor uma tal linguagem é impor a divisão e desmantelar o rigor.
Posso usar meu arbítrio quando simplifico. Então imponho ao homem se tornar outro, mais tranquilo, mais lúcido, mais generoso e mais caloroso, unido enfim a si próprio em suas aspirações, e, uma vez transformado, como renega a larva que descobre ter sido, se admira com o seu próprio esplendor, maravilhado, se torna meu aliado e soldado do meu rigor. E meu rigor não tem outro fundamento além do papel que desempenha. Ele é a porta monumental pela qual às vezes com chicotadas se faz passar o rebanho para que mude e se transfigure. Mas todos eles não são obrigados: são convertidos.
Mas não existe rigor eficaz se, passado o pórtico, os homens despojados de si próprios e saídos das crisálidas, não sentirem abrir suas asas e, em vez de celebrar o sofrimento que os fundou, se descobrem amputados e tristes, e se voltam para a outra margem, que há pouco deixaram...
Então, tristemente inútil, o sangue dos homens enchia os rios... Aqueles que eu mandara executar, me mostravam que eu não conseguira convertê-los, e demonstravam o meu erro. Então inventei essa oração:
“Senhor, meu manto é muito curto e sou um mau pastor que não sabe abrigar seu povo. Atendo as necessidades de alguns e prejudico outros”.
“Senhor, sei que toda aspiração é bela. A da liberdade e a da disciplina. A do pão para os filhos e a do sacrifício do pão. A da ciência que examina e a do respeito que aceita e edifica. A das hierarquias que enaltece e a da partilha que distribui. A do tempo que permite a meditação e a do trabalho que preenche o tempo. A do amor pelo espírito que castiga o corpo e engrandece o homem, e a da compaixão que cura o corpo. A do futuro a construir e a do passado a salvar. A da guerra que planta as sementes e a da paz que as recolhe.
“Mas sei também que estes conflitos não passam de conflitos de linguagem e cada vez que o homem se eleva, os vê de um pouco mais alto. E deixa de haver conflitos.
“Senhor, quero instituir a grandeza dos meus guerreiros e a beleza dos templos pelos quais os homens se trocam e que dá sentido à vida. Mas essa noite, ao passear no deserto do meu amor, encontrei uma jovem lavada em lágrimas. Levantei-lhe a cabeça para ler nos seus olhos. E a tristeza que vi neles me emocionou.
Se me recuso, Senhor, a tomar conhecimento dela, recuso uma parte do mundo e minha obra fica inacabada. Não é que eu me afaste dos meus fins, mas essa jovem tem de ser consolada! Porque só então o mundo vai bem. Ela também é signo do mundo”.

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

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E durante toda a noite vigiava os meus homens, sob o crepitar da areia que se levantava e corria pelas dunas, para as desfazer e as formar um pouco mais adiante. Nessa noite sem idade, em que a lua aparecia e desaparecia na fumaça avermelhada que os ventos levavam consigo. E escutava as sentinelas se chamarem ainda umas às outras, nos três cantos do acampamento triangular — mas suas vozes eram apenas longos gritos sem crença, mais tristes ainda pela solidão que os envolvia.
                E eu dizia a Deus: “Não há nada para os acolher...Sua velha linguagem se desgastou. Os prisioneiros de meu pai eram infiéis, mas cercados por um império forte. Meu pai lhes enviou um cantor ao qual respondia um império. Por isso em apenas uma noite o poder de seu verbo os converteu. Mas esse poder não era dele, e sim do império.
                “Mas não tenho cantores, e nem verdades, e nem possuo um manto para me fazer pastor. Será que terão que se matar uns aos outros e começar a corromper a noite com essas facadas que vão diretas ao ventre e são inúteis como a lepra? Em nome do que os hei de juntar? ”
               
                E aqui e ali apareciam falsos profetas, que conseguiam juntar alguns adeptos. E os fiéis, embora raros, se encontravam animados e prontos a morrer por suas crenças. Mas as crenças deles não valiam nada para os outros. E as crenças se opunham todas umas às outras. E assim se construíam igrejinhas, que se odiavam umas às outras, por ter o costume de dividir tudo em erro e em verdade. E o que não é verdade é erro e o que não é erro é verdade. Mas eu, que sei muito bem que o erro não é o contrário da verdade, mas sim um arranjo diferente, outro templo construído com as mesmas pedras, nem mais verdadeiro nem mais falso, mas sim outro, ao descobri-los dispostos a morrer por verdades ilusórias, isso me cortava a alma. E implorava a Deus: "Não poderias me ensinar uma verdade que domine todas as verdades individuais deles e as acolha todas no seu seio? Se, destas ervas que se devoram umas às outras, eu fizer uma árvore que uma alma única anime, então este ramo aproveitará a prosperidade do outro ramo e toda a árvore será apenas colaboração maravilhosa e expansão ao sol.
                “Não terei eu uma alma bastante grande para os conter? ”
               
                Os virtuosos eram ridicularizados e os mercadores triunfavam. Vendiam. Alugavam as virgens. Saqueavam as provisões de cevada que eu tinha reservado para períodos de fome. Assassinavam. Mas eu não era ingênuo ao ponto de atribuir o fim do império a este fracasso da virtude, sabia perfeitamente que o fracasso da virtude era devido ao fim do império.
                “Senhor, rogava eu, me conceda essa imagem pela qual eles se trocarão no fundo da alma. E todos, através de cada um, crescerão em poder. E a virtude será signo do que eles são”.

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Resolvemos tentar o efeito do canto dos poetas sobre um exército que começava a se dividir

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Resolvemos tentar o efeito do canto dos poetas sobre um exército que começava a se dividir. Mas aconteceu o inesperado dos poetas serem ineficazes e os soldados riam deles.
“Que nos cantem nossas verdades. A fonte de água em nossa casa e o perfume de nossa sopa ao jantar. Que nos importam essas ladainhas? ”
Foi então que aprendi outra verdade: é que o poder perdido jamais se recupera. E ela havia perdido sua fertilidade, a imagem do império. Porque as imagens morrem como as plantas, quando seu poder se acabou e elas não passam de materiais mortos, prestes a se dispersarem, e de adubo para novas plantas. E me afastei para refletir sobre esse enigma. Porque nada é mais nem menos verdadeiro. Porém mais ou menos eficaz. E eu já não tinha nas mãos o nó milagroso da sua diversidade. Me escapava. E o império se deteriorava como que por si próprio, porque o cedro, quando a tempestade lhe quebra os ramos e o vento das areias o enrijece e ele cede ao deserto, não é porque a areia tenha se tornado mais forte, foi o cedro que renunciou e abriu a porta aos bárbaros.
Quando um cantor cantava, o censuravam por exagerar na emoção. E é verdade que o dramático soava falso e nos parecia de uma outra época. Será que está enganado sobre o amor que demonstra pelas cabras, pelos carneiros, pelas moradas, pelas montanhas que são apenas objetos dispersos? Será que está enganado sobre o amor que demonstra pelas curvas dos rios, que os acasos da guerra não ameaçam e nem sequer merecem o sangue? E é verdade que os próprios cantores tinham a consciência pesada, como se tivessem cantado fábulas grosseiras a crianças que já não acreditavam nelas...
Meus generais, com a sua sólida estupidez, vieram censurar meus cantores. “Cantam desafinado! ” Me diziam. Mas eu não estranhava que cantassem desafinados, pois celebravam um deus morto.
Meus generais, com sua sólida estupidez, me perguntavam então: “Por que nossos homens já não querem lutar? “Como se tivessem dito, escandalizados em outra profissão: “Porque não querem mais ceifar o trigo? ” E eu mudava a pergunta que feita dessa forma não dava em nada. Não era uma questão de profissão. E me perguntava no silêncio do meu amor: “Por que é que eles não querem mais morrer? ” E minha cabeça buscava uma resposta.
Porque não se morre por carneiros, nem por cabras, nem por lares, nem por montanhas. Porque os objetos subsistem sem que nada lhes seja sacrificado. Mas se morre para salvar o laço invisível que os liga uns aos outros e os transforma em propriedades, em império, em rosto reconhecido e familiar. Por essa unidade alguém se troca, porque ao morrer também a constrói. A morte recompensa, graças ao amor. E aquele que lentamente trocou sua vida pela obra benfeita e que dura mais que a vida, pelo templo que faz seu caminho pelos séculos, também aceita morrer se seus olhos conseguem distinguir o palácio da confusão dos materiais, e se fica deslumbrado com sua grandeza e deseja se fundir nela. Porque é acolhido por algo maior do que ele e se entrega a seu amor.
Mas como poderiam eles ter aceitado trocar suas vidas por interesses vulgares? Normalmente o prioritário é a vida. Por mais que se esforçassem meus cantores ofereciam aos meus homens uma moeda falsa em troca dos seus sacrifícios. Por não saberem isolar para eles o rosto que os teria animado. Meus homens não tinham o direito de morrer por amor. Por que morreriam então?
E aqueles que apesar disso morriam por cumprir um dever que aceitavam sem compreender, morriam tristemente, tensos, o olhar fixo, de poucas palavras, na sisudez de seu fastio.
Por isso procurava na minha alma uma lição nova, que fosse capaz de os arrebatar, pois havia compreendido que não existe argumento nem sabedoria que os conduza, porque é necessário fundar um rosto como o escultor que impõe à pedra o peso do seu arbítrio, e pedia a Deus que me iluminasse.

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quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

E meu pai enviou um cantor a essa humanidade apodrecida

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E meu pai enviou um cantor a essa humanidade apodrecida. O cantor sentou-se de tardinha no meio da praça e começou a cantar. Cantou as coisas que ressoam umas sobre as outras. Cantou a princesa encantada que só é possível alcançar depois de duzentos dias de marcha na areia sem poços sob o sol. E a ausência de poços se torna sacrifício e embriaguez de amor. E a água dos odres se torna oração, porque leva à bem-amada. Dizia ele: “Eu desejava o palmeiral e a chuva fininha... mas desejava acima de tudo aquela que eu esperava me receber no seu sorriso... e não conseguia mais distinguir minha febre do meu amor...”
E eles tiveram sede da sede, e levantaram os punhos em direção de meu pai: “Desgraçado, nos privaste da sede que é embriaguez do sacrifício por amor! ”
Ele cantou esse temor que reina quando a guerra é declarada e transforma a areia em ninho de víboras. Cada duna assume um poder de vida e morte. E tiveram sede do risco da morte que anima a areia. Ele cantou o prestígio do inimigo, quando se espera de todo lado e se desloca de um extremo ao outro no horizonte, como se fosse um sol que a gente não soubesse de onde vai surgir! E tiveram sede de um inimigo que os houvesse rodeado com sua grandiosidade, como o mar.
E quando sentiram sede do amor percebido como um rosto, os punhais saltaram das bainhas. E choravam de alegria acariciando os sabres! Suas armas esquecidas, enferrujadas, desprezadas, mas que descobriram como uma virilidade perdida, porque só elas permitem ao homem criar o mundo. E foi esse o sinal da rebelião, que veio a ser bela como um incêndio!
E todos eles morreram como homens!

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terça-feira, 20 de dezembro de 2016

“Porque o alimento essencial não lhe vem das coisas, mas sim do laço que liga as coisas

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                “Porque aquele que sabe interpretar a imagem, e que a traz na alma, ligada a ele como a criança ao seio, aquele para quem ela é a pedra angular, para quem ela é o sentido e o significado e ocasião de grandeza, espaço e plenitude, esse, se separado de sua nascente, se sente dividido, desmantelado, e morre de asfixia como a árvore que cortaram as raízes. Nunca mais se encontrará. E ainda assim, enquanto a imagem que nele morre o faz morrer, já não sofre e se acomoda na sua mediocridade sem perceber.
                “É por isso que convém manter permanentemente acordado no homem aquilo que é grande, e o converter à sua própria grandeza.
                “Porque o alimento essencial não lhe vem das coisas, mas sim do laço que liga as coisas. Não é o diamante, mas sim uma certa relação entre o diamante e os homens que o pode saciar. Nem as areias, mas sim uma certa relação entre as areias e as tribos. Não as palavras no livro, mas sim a relação entre as palavras do livro, que são amor, poema e sabedoria de Deus.

                “E se os convido a colaborar e a estar unidos e compor uma grande figura que engrandece cada um, que participa de todos, filhos do império, se vos envolvo na grandeza de meu amor, como não se sentir ampliado e porque resistir? A beleza da imagem só existe por causa da ressonância de cada parte sobre todas as outras. E essa visão te perturba. É o caso do poema que te leva às lágrimas. Agarrei estrelas, fontes, mágoas. Nada demais. Mas as juntei de acordo com meu jeito e elas serviram de pedestal a uma divindade que as domina e em nenhuma delas se contém”. 

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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

E de que vale um enfeite, se não há uma festa?

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    “Eis aí, dizia meu pai, um grande mistério do homem. Eles perdem o essencial e não percebem que o perderam. Como também não percebem os sedentários dos oásis, sentados em cima das provisões. Na verdade, o que eles perderam não se vê nos bens materiais que não mudam. E os homens contemplam sempre o mesmo conjunto de carneiros, de cabras, de moradas e de montanhas, mas que deixaram de constituir uma propriedade...
                “Se eles perdem o sentido do império, não percebem que se endureceram e perderam sua substância e deixaram de dar valor às coisas. As coisas conservam a sua aparência, mas de que vale um diamante ou uma pérola, se ninguém os quer: são apenas vidro polido. E a criança que embalas perdeu alguma coisa de si quando deixa de ser oferenda para o império. Mas nem percebes isso, porque o sorriso é o mesmo.
                “Não notam seu empobrecimento porque os objetos continuam a ter o mesmo uso. Mas qual é o uso de um diamante? E de que vale um enfeite, se não há uma festa? E de que vale a criança se não é do império, se não sonhas em fazer dela um conquistador, um senhor ou um arquiteto? Se a reduziste a um simples corpo material? ”
                “Desconhecem o seio invisível que os amamentava noite e dia, porque o império te alimenta a alma como tua amada te alimenta de amor e transforma em ti o sentido das coisas, embora esteja distante, repousando, ausente como se estivesse morta. Ao longe sabes que existe uma frágil respiração que nem podes sequer perceber e o mundo para ti é verdadeiro milagre. Assim o senhor da propriedade, no orvalho da manhã, leva na alma, ao passear, até o sono dos empregados.
                “O que é estranho é o homem ficar desesperado quando a amada o deixa, mas se ele próprio deixa de amar ou de venerar o império, nem sequer suspeita de seu empobrecimento. Simplesmente diz: “Não era tão bonita como eu julgava, nem tão simpática...” e lá se vai satisfeito, ao sabor do vento. Mas o mundo já não é um milagre para ele. E a madrugada já não é a madrugada do regresso ou a madrugada do despertar nos braços dela. A noite já não é o grande santuário para o amor. Ela deixou de ser, graças àquela que ressona mansamente, esse grande manto de pastor. Tudo desbotou. Tudo se endureceu. E o homem que ignora o desastre não chora a sua plenitude acabada. Fica satisfeito com sua liberdade, que é a liberdade de não existir.
                “O mesmo ocorre com aquele no qual o império morreu: A minha devoção, acha ele, era cegamente estúpida”. É verdade, ele tem razão. Só existe em sua volta um aglomerado desordenado de cabras, de carneiros, de casas e montanhas. O império era uma criação do seu coração.

                “Mas a beleza de uma mulher, onde é que a hospedas se não há homem que se possa emocionar com ela? E o valor do diamante, se ninguém o deseja possuir? E o império, se já não há servidores do império?

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domingo, 18 de dezembro de 2016

Porque tens necessidade de uma planície que só a linguagem te oferece

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Sem dúvida, conheço o ferreiro da minha aldeia que vem me dizer:
“Não dou importância ao que não me diz respeito. Se tenho meu chá, meu açúcar, meu burro alimentado e a mulher ao meu lado, se meus filhos progridem em idade e em virtude, então sou feliz e não peço outra coisa. Para que esses sofrimentos? ”
E como haveria de ser feliz se está perdido em sua casa no meio do mundo? Se mora com a família numa tenda perdida no deserto. O obrigo, portanto, a se corrigir:
“Se de noite encontras outros amigos dentro de outras tendas, se eles têm algo a te contar e te dão notícias do deserto...”
Porque eu vos vi, não esqueças! Eu vos vi ao redor das fogueiras noturnas, tostando o carneiro ou a cabra, e ouvi vossas vozes. Me aproximei a passos lentos, no silêncio do meu amor. É certo que falavam dos filhos, daquele que cresce e daquele que está doente, falavam da casa, mas sem insistir demais. E só começavas a te animar quando se sentava ao teu lado o viajante que voltava da caravana longínqua e estendia na tua frente as maravilhas de longe e os elefantes brancos de um príncipe e o casamento a mil quilômetros de distância daquela que conheces apenas o nome. Ou então aquele alvoroço dos inimigos. Ou quando ele contava sobre um cometa, ou alguma afronta, ou certo amor, ou da coragem diante da morte ou da raiva contra ti ou de uma grande preocupação. Era então que ficavas cheio de espaço e ligado a tantas coisas, pois aí é que adquiria significado a tua tenda amada e odiada, ameaçada e protegida. Apanhado numa rede milagrosa que te transformava em algo mais vasto do que tu...
Porque tens necessidade de uma planície que só a linguagem te oferece.
Lembro do que aconteceu quando meu pai alojou os três mil refugiados berberes num campo ao norte da cidade. Ele não queria que se misturassem com os nossos. Como era bondoso, os alimentou e abasteceu com roupas, açúcar e chá. Mas sem lhes exigir trabalho em troca das benesses da sua magnificência. Assim eles não tinham por que se inquietar com sua subsistência, e qualquer um deles poderia ter dito: “Não dou importância ao que não me diz respeito. Se tenho meu chá, meu açúcar, meu burro alimentado e a mulher a meu lado, se meus filhos progridem em idade e em virtude, então sou feliz e não peço outra coisa...”. Mas quem os teria achado felizes? Às vezes, quando meu pai desejava ensinar-me, íamos visitá-los.
“Veja, dizia ele, como começam a se tornar gado e a apodrecer docemente... não no corpo, mas nas almas”.
Porque tudo para eles perdia o significado. Se não jogas tua fortuna nos dados, é bom, no entanto o que os dados te possam simbolizar, em sonhos de propriedades e rebanhos, barras de ouro e diamantes que não possuis. Que existem noutro lugar. Mas chega uma hora em que os dados já nada podem representar. E o jogo não é mais possível.
E os nossos protegidos não tinham mais nada para dizer uns aos outros. Haviam gasto as histórias de família, que se pareciam todas, umas às outras. Haviam acabado de descrever uns aos outros as suas tendas, já que todas as suas tendas eram semelhantes. Haviam acabado de temer e de esperar e de inventar. Usavam ainda a linguagem para efeitos rudimentares: “Empresta-me o teu fogareiro”, podia dizer um”. Onde está o meu filho? ”, podia perguntar um outro. Humanidade deitada na cama de palha, debaixo da manjedoura, que havia de desejar? Em nome de que teria lutado? Pelo pão? Eles o recebiam. Pela liberdade? Mas dentro dos limites de seu universo eles eram infinitamente livres. Afogados nessa liberdade desmedida que esvazia certos ricos das suas entranhas. Para triunfarem dos inimigos? Mas já não tinham inimigos!
Meu pai me dizia:
“Podes usar um chicote em todos eles, deixá-los a todos feridos no rosto, não farão nada além de rosnar e recuar, ameaçando morder, como uma vulgar matilha de cães. Mas nenhum deles vai se arriscar e ninguém vai te morder. Podes cruzar os braços diante deles. E desprezá-los...”
Me dizia também:
“São carcaças de homens. Deixaram de ser homens. Podem te assassinar como covardes, pelas costas, porque a corja costuma ser perigosa. Mas não serão capazes de aguentar o teu olhar”.
No entanto, a discórdia instalou-se entre eles como uma doença. Uma discórdia incoerente que não os dividia em dois campos, mas lançava todos contra todos, porque aquele que comia sua parte das provisões os enganava. Vigiavam-se uns aos outros, como cães que circulam em volta do bebedouro, e em nome da sua justiça cometeram assassinatos, pois a justiça deles era principalmente igualdade. E qualquer um que se distinguisse em qualquer coisa era logo esmagado pelos outros.
“A massa, me disse meu pai, odeia a imagem do homem porque a massa é incoerente, empurra para todos os lados ao mesmo tempo e anula o esforço criador. É verdade que o homem não deve dominar o rebanho. Mas não procure aí a grande escravidão: ela aparece quando o rebanho esmaga o homem”.
Assim, em nome de direitos obscuros, os punhais que cortavam os ventres alimentavam a noite com cadáveres. E tal como se faz a limpeza do lixo, os arrastavam ao alvorecer até os limites do acampamento onde nossas carroças os carregavam como um serviço de limpeza pública. E me lembrava das palavras de meu pai: “Se queres que eles sejam irmãos, os obriga a construir uma torre. Mas, se quiser que se odeiem, joga-lhes um punhado de trigo”.
E constatamos pouco a pouco que eles iam perdendo o uso das palavras, que já não lhes serviam de mais nada. E meu pai me levava a passear por entre essas faces ausentes, que olhavam para nós sem nos conhecerem, embrutecidas e vazias. Só emitiam esses grunhidos vagos, que pediam o alimento. Vegetavam sem mágoas, nem desejos, nem ódio, nem amor. E logo deixaram mesmo de se lavar e nem sequer matavam os parasitas. Que assim foram prosperando. E aí começaram a aparecer as chagas e as úlceras. E o acampamento começou a empestear o ar. Meu pai tinha medo da peste. E, sem dúvida, também pensava na condição do homem.
“Vou decidir acordar o arcanjo que dorme, abafado, debaixo do esterco. Porque não são eles que eu respeito, mas é Deus através deles...”

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sábado, 17 de dezembro de 2016

Quando a devoção se extingue, é Deus que morre e se mostra doravante inútil

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Enganavam-se, mas o que eu havia de fazer? Quando a devoção se extingue, é Deus que morre e se mostra doravante inútil. Quando a devoção acaba, é o próprio império que se decompõe, porque é feito da devoção deles. Não que haja engano no império em si. Se chamo de propriedade aquela procissão de oliveiras e aquela cabana onde alguém se abriga, e quem as contempla experimenta amor e as unifica no fundo da alma, se ele passa a ver apenas oliveiras entre muitas, e no meio delas uma cabana perdida que só tem sentido ao abrigar da chuva, quem há de salvar essa propriedade de ser vendida e dividida? Porque essa venda não iria mudar em nada nem a cabana nem as oliveiras!
Vejam o dono da propriedade quando caminha sozinho pelas estradas, sob o orvalho da madrugada, sem carregar consigo nada da sua fortuna. Não goza dos seus rendimentos. É como se lhe houvessem tirado os bens que nesse momento não lhe servem para nada e que seu passo afunda na lama, se choveu, como os passos de um simples trabalhador, e afasta com a bengala o mato molhado, como o vagabundo mais humilde. E que do fundo daquele caminho escavado, nem sequer com o olhar abrange sua propriedade, simplesmente sabe que é o seu príncipe.
No entanto, se o encontrares e ele te olhar, é mesmo ele e não outro. Calmo e seguro de si, apoia-se sobre a escritura assinada, que não lhe serve de nada naquele momento. Não usa nada, mas nada lhe falta. Está bem alicerçado na certeza de que as pastagens, os campos de cevada e os palmeirais são seus. Os campos estão em repouso. Os celeiros dormem ainda. Os que malham o trigo ainda não fazem voar a sua luminosidade. Mas ele os abriga a todos na alma. Não é qualquer um que caminha ali, é o senhor que lentamente passeia, no meio da alfafa...
Muito cego é aquele que só sabe medir o homem pelos atos, que acredita que somente os atos o revelam, ou a experiência tangível ou o uso de um benefício. O que conta para o homem não é aquilo de que ele dispõe no momento, pois meu caminhante dispõe apenas do punhado de espigas que consegue colher com as mãos, ou do fruto que pode apanhar. Aquele que me segue na guerra está pleno da recordação da bem-amada: que não pode ver, nem tocar, nem apertar nos braços, e que nem está pensando nele, pois nesta hora de manhãzinha em que ele respira a planície e sente a atração que o liga a ela, no seu leito distante ela sequer acordou para o mundo. É como se estivesse ausente e morta. Adormecida. E, no entanto, o homem está carregado da existência dela, carregado de uma ternura que não utiliza e que dorme, esquecida de si própria, como os grãos no celeiro, cheia de perfumes que ele não cheira, carregada com o murmúrio da fonte que é a coração da casa e que ele não ouve, carregado ele também com o peso de um império que o torna diferente dos outros.
Ou aquele amigo que encontras na rua e que traz em si o filho doente. Ao longe doente. Do qual ele não sente com a sua mão a febre, e não ouve os lamentos. E que nada muda em sua vida naquele instante. E, no entanto, te parece esmagado com o peso de uma criança na alma.
O mesmo se passa com aquele que vem do império, mesmo que não o consiga abranger com um simples olhar, nem usar suas provisões nem receber dele a menor vantagem, mas que cresceu em sua alma como o dono da propriedade ou o pai da criança doente ou aquele que o amor engrandece quando a amada não só está longe, mas adormecida. Só o sentido das coisas conta para o homem.


Trecho de hoje do livro "Cidadela" de Antoine de Saint-Exupéry. Junte-se a 80 apoiadores que já levantaram mais de 5.000 Reais para viabilizar esse projeto cultural. Contribua hoje para o financiamento da edição em papel. Consulte as condições dos prêmios no site abaixo.

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sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

“É preciso muita paciência, não para agarrá-la, mas sim para amá-la”.

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“Quando, me perguntavam, quando é que acabará a guerra? Também gostaríamos de compreender as coisas. Já é tempo de voltarmos...”
Se, uma vez por outra, algum deles capturava uma raposa das areias ainda pequena e que comia nas suas mãos, ou gazelas que condescendiam em não morrer, as alimentavam, e a raposa das areias a cada dia ia ficando mais valiosa ao se enriquecer de pelos sedosos, de animação e principalmente da necessidade de alimento que tão imperiosamente exigia a bondade do guerreiro. E ele vivia na ilusão inútil de fazer passar algo de seu para o animalzinho, como se este fosse alimentado, formado e composto pelo seu amor.
Até que um dia a raposa que ele amava fugia pela areia e esvaziava de repente a alma do homem. Houve um que vi morrer por não ter se defendido durante uma emboscada. E me veio à memória, quando recebemos a notícia da sua morte, a frase misteriosa que ele tinha dito depois da fuga da sua raposa, quando os companheiros o sentindo melancólico lhe tinham sugerido que capturasse uma outra: “É preciso muita paciência, não para agarrá-la, mas sim para amá-la”.
No entanto eles já se sentiam cansados das raposas e das gazelas, pois viam que as suas trocas eram vãs: uma raposa que fugia do seu amor não enriquecia para eles o deserto.
“Eu tenho filhos, dizia-me outro, e eles estão crescendo sem que eu os tenha criado. Nada de meu vou depositando neles. E para onde irei quando morrer? ”

E eu os encerrava no silêncio do meu amor, vendo o exército que começava a se dissolver na areia e lá se perder como esses rios nascidos das tempestades que o subsolo de argila não consegue salvar e morrem estéreis, sem sequer ao longo das margens se terem mudado em árvores, em capim, em alimento para os homens.
O meu exército desejara mudar-se em oásis pelo bem do império, para embelezar o meu palácio de residências longínquas, para quando falassem dele, poderem dizer: "Que diferentes são ao sul essas palmeiras, esses palmeirais novos, essas aldeias em que se esculpe o marfim...”
Mas nós combatíamos sem ânimo e cada um de nós pensava no regresso. E a imagem do império se destruía neles como um rosto para o qual já não sabemos olhar e deixamos perder na desordem do mundo.
“Que nos importa, diziam eles, possuir ou não este oásis desconhecido? O que ele nos acrescenta? Em que ele nos engrandece? Quando, voltando para casa, nos fecharemos na aldeia? O oásis servirá apenas para quem lá ficar morando, ou colhendo as tâmaras das suas palmeiras, ou lavando roupa na água viva dos seus riachos...”



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quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

É preciso olhar muito tempo para a árvore, para ela nascer também em nós


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Meu exército estava tão cansado, como se meus homens tivessem transportado um fardo pesadíssimo. Os comandantes vieram falar comigo:
“Quando é que voltaremos para casa? O deleite das mulheres dos oásis conquistados não vale o deleite das nossas mulheres.
Um deles me dizia:
“Senhor, não paro de sonhar com aquela que é feita do meu tempo, das minhas disputas. Gostaria de voltar, de ir embora quando quiser. Senhor, é uma verdade que já não sei lançar raízes mais fundas. Deixa-me crescer no silêncio de minha aldeia. Sinto necessidade de meditar sobre minha vida”.
E compreendi que eles tinham necessidade de silêncio. Pois só no silêncio a verdade de cada um vinga e lança raízes. Porque o tempo é contado como na amamentação. E o próprio amor maternal é, em primeiro lugar, feito de amamentação. Quem é que vê a criança crescer de um momento para o outro? Ninguém. São aqueles que vêm de fora que dizem: “Como cresceu! Mas nem a mãe nem o pai o viram crescer. Ele foi se fazendo, com o tempo. Ele era a cada momento, o que devia ser.
Assim os meus homens tinham necessidade de tempo, nem que fosse para compreender uma árvore. Para se sentar todos os dias no portal da entrada, diante da mesma árvore e dos mesmos ramos. E eis que pouco a pouco a árvore se vai revelando.
Havia um poeta, que certa noite em que estávamos reunidos em volta do fogo no deserto, falava pura e simplesmente da sua árvore. E os meus homens o escutavam, muitos deles só conheciam o capim que os camelos pastam e palmeiras anãs e arbustos de espinhos”. Vocês não sabem o que é uma árvore. Eu vi uma que tinha brotado por acaso num edifício abandonado, simples abrigo sem janelas, e dali partira à procura de luz. Como o homem deve estar mergulhado no ar, como a carpa deve estar mergulhada na água, a árvore deve estar mergulhada na claridade. Pois instalada na terra graças às raízes, instalada nos astros graças aos ramos, ela é o caminho da troca entre as estrelas e nós. Essa árvore, nascida cega, havia então desenvolvido em plena noite a sua poderosa musculatura, e tateara de uma parede a outra e titubeado, e o drama lhe ficou impresso nos galhos retorcidos. Depois de esburacar uma fresta na direção do sol, irrompeu reta como o tronco de uma coluna, e eu assistia, num recuo próprio de historiador, aos movimentos da sua vitória.
“Em magnífico contraste com os nós confinados pelo esforço de seu tronco no seu ataúde, expandia-se na calma abarcando o espaço como uma mesa farta de folhagem onde o sol era servido, amamentado pelo próprio céu, sustentado soberbamente pelos deuses.
“E a observava todos os dias despertar de alto a baixo. Era carregada de pássaros. E desde a aurora começava a viver e a cantar, e depois do sol nascer, abandonava suas provisões ao céu, como um velho pastor complacente, minha árvore casa, minha árvore castelo, ficava depois vazia até a noitinha...”
Era assim que ele contava e nós sabíamos que é preciso olhar muito tempo para a árvore, para ela nascer também em nós. E cada um dos meus homens sentia inveja daquele que levava na alma essa massa de folhagem e de pássaros.

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

“O homem, dizia meu pai, é em primeiro lugar aquele que cria.

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“O homem, dizia meu pai, é em primeiro lugar aquele que cria. E só são seus irmãos os homens que colaboram. E só vivem realmente aqueles que não encontraram a paz nas provisões armazenadas”. 
Um dia, levantaram-lhe uma objeção:
“O que é que chamas criar? Porque, se se trata de uma invenção importante, poucos serão capazes de fazê-lo. Então falas só para alguns... E os outros? ”
Meu pai respondeu:
“Criar é talvez falhar um determinado passo na dança. E dar de lado este golpe de cinzel na pedra. Pouco importa o destino do gesto. Esse esforço parece estéril a ti, cego, que tens o nariz encostado nele, mas experimenta dar um passo atrás. Observe mais de longe o movimento deste bairro da cidade. Só vês subir de lá uma grande devoção e a poeira dourada do trabalho. E não reparas mais nos gestos falhos. Porque este povo debruçado sobre a obra, bem ou mal, edifica os palácios ou as cisternas ou os grandes jardins suspensos. As obras nascem como que inevitavelmente, do encantamento dos dedos. E te garanto, elas nascem tanto daqueles que falham nos gestos como daqueles que os acertam, porque não podes dividir o homem, se salvas só os grandes escultores, ficarás privado de grandes escultores. Ninguém iria escolher um ofício que desse tão poucas possibilidades de viver. O grande escultor nasce do terreno de maus escultores. Servem-lhe de degrau e são eles que o elevam. E a bela dança nasce da devoção com que se dança. E a dedicação à dança exige que todos dancem — mesmo aqueles que dançam mal — senão deixa de haver dedicação e passa a haver apenas academia petrificada e espetáculo sem significado.
“Não condenes os seus erros como o historiador que julga uma era já concluída. Quem poderá censurar o cedro por não passar ainda de semente ou de caule ou de raminho que brota inclinado? Deixa estar. De erro em erro se erguerá a floresta de cedros que, nos dias de ventania, distribuirá o incenso das suas aves.
E meu pai dizia, para concluir:
“Eu já te disse. Erro de um, êxito de outro, não te importes com essas divisões. Nada é fértil sem a grande colaboração de um através do outro. E o gesto que erra serve ao gesto que acerta. E o gesto que acerta mostra o objetivo que buscavam juntos a quem errou. Aquele que encontra o deus o encontra para todos. Porque o meu império é semelhante a um templo e eu instiguei os homens. Convidei os homens a o construir. Então é o seu templo. E o nascimento do templo extrai deles seu mais elevado significado. E eles inventam os dourados. E aquele que os procurava sem os conseguir também os inventa. Porque foi especialmente desta dedicação que os novos dourados nasceram”.

Dizia ele de outra vez:
“Não queiras inventar um império onde tudo seja perfeito. Porque o bom gosto é virtude de guardião de museu. E se fores desprezar o mau gosto, não terás nem pintura, nem dança, nem palácio, nem jardim. Irás torcer o nariz por repugnância ao trabalho sujo na terra. Tu serás privado dele devido a esse teu vazio desejo de perfeição. Inventa um império onde tudo seja simplesmente caloroso”.

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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

A dança é fugaz como um incêndio

E assim dizia meu pai: “Obriga-os a construir juntos uma torre e os transformarás em irmãos. Mas se queres que se odeiem, joga-lhes um punhado de trigo”. E me dizia mais: “Primeiro me tragam o fruto do seu trabalho. Que façam desaguar nos meus celeiros o rio das suas colheitas. Que se construam em mim nos seus celeiros. Quero que sirvam a minha glória quando açoitam o trigo e a casca dourada estoura em volta. Porque então o trabalho que era função para o alimento, se transforma em cântico. Tenho menos pena daqueles cujas costas se curvam sob os pesados sacos quando os trazem para o moinho. Ou que os que trazem de lá, brancos de farinha. O peso do saco os engrandece como uma oração. E ficam a rir alegremente, quando trazem o feixe de centeio, como se fosse um candelabro de grãos, com suas pontas e o seu brilho. Pois uma civilização repousa sobre o que exige dos homens, não sobre o que lhes fornece. É verdade que eles voltam esgotados e depois se alimentam desse trigo. Mas não está voltada para o homem a face importante das coisas. O que os alimenta na alma não é o que recebem do trigo. É o que lhe dão. “Insisto, mais uma vez, que se deve desprezar essas tribos que recitam os poemas de outro e comem o trigo de outro ou mandam vir arquitetos assalariados para lhes edificarem as cidades. Só merecem um nome, sedentários. E não vejo ao redor deles, semelhante a uma auréola, o pó do trigo que se malha. “É justo que eu receba ao mesmo tempo em que dou, para poder continuar a dar. Abençoo essa troca entre o dar e o receber, que permite prosseguir na marcha e dar mais adiante ainda. E, se a devolução permite que o corpo se recomponha, é somente a dádiva que alimenta a alma. “Eu vi dançarinas preparar suas danças. E a dança, uma vez criada e dançada, ninguém consegue transformar em fruto de trabalho para converter em provisões. A dança é fugaz como um incêndio. E, no entanto, considero civilizado o povo que compõe suas danças, embora não haja para as danças nem colheita nem celeiros. Ao passo que chamo de bruto o povo que alinha nas prateleiras os objetos nascidos do trabalho de outro, mesmo que seja capaz de se inebriar com a perfeição deles.


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segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Mas eu sentia também a bondade de meu pai.

Mas eu sentia também a bondade de meu pai. "Todo aquele, dizia ele, que tiver desempenhado um papel importante, todo aquele que tenha sido honrado não pode ser aviltado. Quem reinou não pode ser privado do seu reino, não podes transformar em mendigo aquele que dava aos mendigos, porque o que destróis, neste caso, é algo como a armação e a forma do teu navio. É por isso que decido os castigos na medida dos culpados. Aqueles que resolvi fazer nobres, os executo, mas não os reduzo à condição de escravos, se porventura erraram. Encontrei um dia uma princesa que era lavadeira de roupa. E as companheiras riam dela: “O que é feito da tua realeza, lavadeira? Podias mandar cortar cabeças e agora podemos impunemente te desonrar com as nossas ofensas... Isso é justiça! A justiça, segundo elas, era compensação.

E a lavadeira calava-se. Talvez humilhada por si própria, mas sobretudo por algo maior do que ela própria. E a princesa se debruçava, tesa e branca, sobre a lavanderia. E as companheiras impunemente a cutucavam. Nada nela convidava à zombaria, porque tinha um rosto bonito, gestos reservados e silenciosa, e compreendi que as companheiras ridicularizavam não a mulher, mas sim o seu declínio. Porque aquele que invejavas, se cai debaixo das tuas garras, o devoras. Mandei, pois, que a trouxessem à minha presença:
“Só sei de ti que antes reinavas. A partir de hoje, terás direito de vida e morte sobre as tuas companheiras de lavanderia. Te reintegro ao teu reino. Podes ir”.

“E quando voltou a ocupar seu lugar acima da plebe vulgar, desdenhou justamente de se lembrar das ofensas. E as próprias mulheres da lavanderia, sem poder mais alimentar seus movimentos interiores com o declínio dela, passaram a alimentá-los com a sua nobreza e a veneraram. Organizaram grandes festas para celebrarem o seu regresso à realeza e se prosternavam à sua passagem, se sentindo engrandecidas por outrora lhe terem encostado a mão”.

“É por isso, dizia meu pai, que não irei submeter os príncipes às ofensas da plebe nem à grosseria dos carcereiros. Mas mandarei lhes cortar a cabeça, num grande circo de clarins de ouro”.
“Aquele que rebaixa um outro, dizia meu pai, é porque é baixo”. “Nunca um chefe, dizia meu pai, será julgado pelos subalternos”.

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