segunda-feira, 31 de julho de 2017

VOO NOTURNO - 17

           
 CAPÍTULO XVI


            Subiu observando melhor os redemoinhos, graças às referências das estrelas. Seu ímã pálido o atraía. Sofrera por tanto tempo à procura de uma luz que já não poderia deixar nem mesmo a mais confusa. Privilegiado por esse luar, teria dado voltas até a morte em torno daquele sinal do qual tinha fome. E eis que subia em direção a campos de luz.

            Elevava-se, pouco a pouco, em espiral, em um poço que havia se aberto e que se fechava abaixo dele. A medida que subia, as nuvens perdiam sua lama de sombras, passavam por ele com ondas cada vez mais puras e brancas. Fabien emergiu.

            Sua surpresa foi extrema: a claridade era tal que o cegava. Teve de fechar os olhos por alguns segundos. Nunca teria acreditado que as nuvens, à noite, pudessem cegar. Mas a lua cheia e todas as constelações transformavam-nas em ondas resplandecentes.

            No segundo em que emergiu, o avião ganhou, de um só golpe, uma calma que parecia extraordinária. Nem uma onda sequer o inclinava. Como um barco que transpõe o dique, entrava em águas reservadas. Havia penetrado em uma parte desconhecida e escondida do céu, que era como a baía das ilhas bem-aventuradas. A tempestade, abaixo dele, constituía outro mundo de três mil metros de espessura, percorrido por rajadas, trombas d’água, relâmpagos, mas apresentava aos astros uma face de cristal e neve.

            Fabien acreditava ter chegado a limbos estranhos, pois tudo se tornava luminoso, suas mãos, suas roupas, suas asas. Porque a luz não provinha dos astros, mas se desprendia, debaixo dele e à sua volta, dessas massas brancas.

            As nuvens, abaixo dele, devolviam toda a neve que recebiam da lua. As da direita e as da esquerda também, altas como torres. Circulava uma luz leitosa na qual a tripulação se banhava. Olhando para trás, Fabien percebeu que o telegrafista sorria.

            — Isso está bem melhor! - gritava.

            Mas a voz se perdia em meio ao barulho do voo, apenas o sorriso falava. “De qualquer forma, sou louco de sorrir”, pensava Fabien. “Estamos perdidos.” No entanto, mil braços obscuros o tinham largado. Haviam desatado suas algemas, como as de um prisioneiro que deixamos caminhar sozinho, por um tempo, entre as flores.

            “Belo demais”, pensou Fabien. Passeavam entre as estrelas amontoadas com a densidade de um tesouro, em um mundo no qual nada, absolutamente nada além dele, Fabien, e de seu colega, estava vivo. Assemelhavam-se a esses ladrões de cidades fabulosas, emparedados na sala do tesouro, de onde não sabiam mais como sair. Por entre pedrarias congeladas, passeiam, infinitamente ricos, mas condenados.

           
CAPÍTULO XVII   

           

            Um dos radiotelegrafistas de Comodoro Rivadavia, escala da Patagônia, fez um gesto brusco, e todos os que velavam impotentes no posto reuniram-se em torno desse homem e se inclinaram.

            Eles se inclinaram em torno de um papel virgem e bem iluminado. A mão do operador ainda hesitava, e o lápis tremia. A mão do operador ainda mantinha as letras prisioneiras, mas os dedos já tremiam.

            — Tempestades?

            O radiotelegrafista fez que sim com a cabeça. A crepitação impedia-o de compreender. Logo anotou alguns sinais indecifrá­veis. Em seguida, palavras. Logo, puderam restabelecer o texto:

            “Bloqueados a três mil e oitocentos metros acima da tempestade. Navegamos em direção ao Oeste, pelo interior, pois derivávamos sobre o mar. Abaixo de nós está tudo fechado. Ignoramos se ainda estamos sobrevoando o mar. Informem se a tempestade se estende para o interior”.

            Por causa da tempestade, para transmitir esse telegrama a Buenos Aires, foi necessário estabelecer uma cadeia entre os postos. A mensagem avançava na noite, como um fogo que ilumina uma torre após outra.

            Buenos Aires pediu que respondessem:

            — Tempestade geral no interior. Quanto de combustível ainda lhes resta?

            — Cerca de meia hora.

            E essa frase, de vigia noturno em vigia noturno, chegou até Buenos Aires.

            A tripulação estava condenada a mergulhar, antes de trinta minutos, em um ciclone que a lançaria em direção ao solo.

           

CAPÍTULO XVIII

            Rivière permaneceu reflexivo. Já não tinha mais esperança: aquela tripulação naufragaria em algum lugar na noite.

            Recordou-se de uma visão que havia marcado sua infância: esvaziaram um tanque para encontrar um corpo. Eles também não encontrariam nada antes que a massa de sombras abandonasse a Terra, que as areias, as planícies, os trigais voltassem à luz. Talvez, simples camponeses descubram dois meninos, com o antebraço cobrindo o rosto, parecendo dormir, encalhados na relva sobre um fundo dourado e aprazível. Mas a noite os terá afogado.

            Rivière pensa nos tesouros sepultados nas profundezas da noite como em mares fabulosos... Essas macieiras noturnas que esperam o dia com todas as suas flores, flores que ainda não têm valor. A noite é rica, repleta de perfumes, de cordeiros adormecidos e de flores que ainda não têm cor.

            Pouco a pouco, surgirão com o dia vastos campos cultivados, bosques orvalhados, luzernas frescas. Mas entre as colinas – agora inofensivas -, as pradarias e os cordeiros, na sabedoria do mundo, dois meninos parecerão dormir. E alguma coisa terá passado do mundo visível para o outro mundo.

            Rivière sabe que a mulher de Fabien é inquieta e terna: aquele amor lhe foi apenas emprestado, como um brinquedo a uma criança pobre.

            Rivière pensa nas mãos de Fabien que, por alguns minutos, ainda retêm o seu destino nos instrumentos de comando. Aquelas mãos que acariciou. Aquela mão que pousou sobre um seio e provocou o tumulto, como uma mão divina. Aquela mão que pousou sobre um rosto e transformou-o. Aquela mão que era milagrosa.

            Fabien erra sobre o esplendor de um mar de nuvens: a noite, porém, mais abaixo, é a eternidade. Está perdido entre as constelações que somente ele habita. Ainda tem o mundo em suas mãos e o embala contra o seu peito. Segura, no volante, o peso da riqueza humana e caminha desesperado, de uma estrela a outra, inútil tesouro que terá de devolver...

            Rivière imagina que um posto de rádio o escuta ainda. Apenas uma onda musical, uma modulação menor, ainda liga Fabien ao mundo. Não um grito. Mas o som mais puro que o desespero jamais expressou.

           

             
CAPÍTULO XIX
           

            Robineau tira-o da solidão:

            — Senhor diretor, eu pensei... poderíamos talvez tentar...

            Ele não tinha nada para propor, mas testemunhava assim sua boa vontade. Adoraria encontrar uma solução e a procuraria, de certa forma, como a resposta para um enigma. Sempre encontrava soluções que Rivière nunca escutava: “Veja, Robineau, na vida não há soluções. O que existe são forças em movimento: é preciso criá-las e as soluções aparecem”. Assim, Robineau limitava o seu papel a criar uma força em movimento na corporação de mecânicos. Uma humilde força em movimento que protegia os eixos das hélices da ferrugem.

            Mas os acontecimentos dessa noite encontraram Robineau desarmado. Seu título de inspetor não tinha nenhum poder sobre as tempestades, nem sobre uma tripulação fantasma que, na realidade, já não se debatia por um prêmio de pontualidade, mas para escapar a uma única sanção que anulava as de Robineau: a morte.

             E Robineau, agora inútil, vagava nos escritórios, sem ter o que fazer.



            A mulher de Fabien se fez anunciar. Movida pela inquietação, esperava, no escritório dos secretários, que Rivière a recebesse. Os secretários, às escondidas, levantavam os olhos para o seu rosto. Ela experimentava uma espécie de vergonha e observava com temor o espaço ao seu redor: tudo ali a repugnava. Aqueles homens que continuavam seu trabalho, como se marchassem sobre um corpo, aqueles dossiês nos quais a vida humana, o sofrimento humano não deixavam nada além de um resíduo de algarismos insensíveis. Ela procurava sinais que lhe falassem de Fabien. Na sua casa tudo apontava para essa ausência: a cama entreaberta, o café servido, um buquê de flores... Não descobria nenhum sinal. Tudo se opunha à compaixão, à amizade, às lembranças. A única frase que ouviu, porque ninguém levantava a voz diante dela, foi a praga de um empregado, que reclamava de uma fatura. “...A fatura dos dínamos, bom Deus! Que nós expedimos para Santos.” Levantou os olhos para esse homem com uma expressão infinita de surpresa. Depois, observou a parede onde havia um mapa. Seus lábios tremiam um pouco, discretamente.

            Adivinhava, com embaraço, que ali ela representava uma verdade inimiga, quase lamentava ter ido; desejou esconder-se e, por medo de ser excessivamente notada, tentou conter a tosse e o choro. Sentia-se insólita e inconveniente, como se estivesse nua. Mas sua verdade era tão forte que os olhares fugidios voltavam, às escondidas, incansavelmente, para lê-la no seu rosto. Essa mulher era muito bela. E revelava aos homens o mundo sagrado da felicidade. Revelava em que matéria augusta tocamos, sem o saber, quando agimos. Sob tantos olhares, fechou os olhos. Ela revelou quanta paz podemos destruir, sem saber.

            Rivière a recebeu.

            Ela vinha advogar timidamente em nome das suas flores, do seu café servido, da sua carne jovem. Uma vez mais, naquele escritório ainda mais frio, seus lábios voltaram a tremer levemente. Ela também descobria sua própria verdade, inexprimível neste outro mundo.

            Tudo o que nela se revestia de amor, quase selvagem - de tão ardente, de tão entregue -, parecia-lhe que tomava um aspecto inoportuno, egoísta. Desejou fugir:

            — Estou incomodando-o...

            — Senhora - disse-lhe Rivière -, não está me incomodando. Infelizmente, eu e a senhora não podemos fazer mais nada além de esperar.

            Ela encolheu levemente os ombros, mas Rivière compreendeu o sentido do gesto: "De que servem a lâmpada, o jantar servido, as flores que voltarei a encontrar...”. Uma jovem mãe havia confessado a Rivière um dia: “Ainda não compreendi a morte de meu filho. São as pequenas coisas que são duras, suas roupinhas que encontro e, se me levanto à noite, essa ternura que, mesmo assim, sobe ao meu coração, ainda que, a partir de agora, seja inútil como o meu leite...”. Também para aquela mulher, a morte de Fabien começaria apenas no dia seguinte: em cada ato, dali em diante, em cada objeto... Fabien deixaria lentamente a sua casa. Rivière calava uma profunda compaixão.

            — Senhora...

            A jovem se retirou, com um sorriso quase humilde, ignorando seu próprio poder.

            Rivière sentou-se, um pouco pesaroso.

            “Contudo, ela me ajudou a descobrir o que eu procurava...”

             Batia distraidamente os dedos sobre os telegramas de proteção das escalas do Norte. Sonhava.

            “Nós não pedimos para ser eternos, mas para não ver os atos e as coisas perderem repentinamente o sentido. O vazio que nos rodeia se mostra então...”

            Com os olhos nos telegramas, pensou: “E eis por que meios, entre nós, a morte se faz anunciar: essas mensagens já não fazem sentido...”.

            Observou Robineau. Aquele rapaz medíocre, agora inútil, não tinha mais sentido. Rivière lhe disse em um tom quase alterado:

            — Será preciso que eu mesmo lhe dê trabalho!

            Em seguida, Rivière empurrou a porta que dava para a sala dos secretários e o desaparecimento de Fabien o atingiu, de forma evidente, por meio dos sinais que a senhora Fabien não soube ver. A ficha do R.B. 903 já figurava no mural, na coluna do material indisponível. Os secretários, que preparavam o material do correio da Europa, sabendo que sairia com atraso, trabalhavam mal. Do campo de aviação, pediam instruções por telefone para as equipes que permaneciam em vigília, sem objetivo. As funções da vida tinham diminuído o ritmo. “A morte, ei-la!”, pensou Rivière. Sua obra era semelhante a um veleiro avariado, sem vento, sobre o mar.




            Ouviu a voz de Robineau:

            — Senhor diretor... estavam casados havia seis semanas...

            — Vá trabalhar.

            Rivière permaneceu observando os secretários e, atrás destes, os operários, os mecânicos, os pilotos, todos os que o haviam ajudado na sua obra, com uma fé de construtores. Pensou nas pequenas cidades de outros tempos, que, ouvindo falar de “ilhas”, construíram o seu navio. Para carregá-lo com a sua esperança. Para que os homens pudessem ver sua esperança e abrir as velas sobre o mar. Todos engrandecidos, todos fora de si mesmos, todos libertos por um navio. “O objetivo talvez não justifique nada, mas a ação liberta da morte. Aqueles homens perdurariam por seu navio.”

            E Rivière também lutará contra a morte, quando tiver dado aos telegramas seu sentido pleno, às equipes de vigilância noturna, à sua inquietação e aos pilotos, seu objetivo dramático. Quando a vida reanimar essa obra, como o vento reanima um veleiro no mar.
            Mas os acontecimentos dessa noite encontraram Robineau desarmado. Seu título de inspetor não tinha nenhum poder sobre as tempestades, nem sobre uma tripulação fantasma que, na realidade, já não se debatia por um prêmio de pontualidade, mas para escapar a uma única sanção que anulava as de Robineau: a morte.

             E Robineau, agora inútil, vagava nos escritórios, sem ter o que fazer.



            A mulher de Fabien se fez anunciar. Movida pela inquietação, esperava, no escritório dos secretários, que Rivière a recebesse. Os secretários, às escondidas, levantavam os olhos para o seu rosto. Ela experimentava uma espécie de vergonha e observava com temor o espaço ao seu redor: tudo ali a repugnava. Aqueles homens que continuavam seu trabalho, como se marchassem sobre um corpo, aqueles dossiês nos quais a vida humana, o sofrimento humano não deixavam nada além de um resíduo de algarismos insensíveis. Ela procurava sinais que lhe falassem de Fabien. Na sua casa tudo apontava para essa ausência: a cama entreaberta, o café servido, um buquê de flores... Não descobria nenhum sinal. Tudo se opunha à compaixão, à amizade, às lembranças. A única frase que ouviu, porque ninguém levantava a voz diante dela, foi a praga de um empregado, que reclamava de uma fatura. “...A fatura dos dínamos, bom Deus! Que nós expedimos para Santos.” Levantou os olhos para esse homem com uma expressão infinita de surpresa. Depois, observou a parede onde havia um mapa. Seus lábios tremiam um pouco, discretamente.

            Adivinhava, com embaraço, que ali ela representava uma verdade inimiga, quase lamentava ter ido; desejou esconder-se e, por medo de ser excessivamente notada, tentou conter a tosse e o choro. Sentia-se insólita e inconveniente, como se estivesse nua. Mas sua verdade era tão forte que os olhares fugidios voltavam, às escondidas, incansavelmente, para lê-la no seu rosto. Essa mulher era muito bela. E revelava aos homens o mundo sagrado da felicidade. Revelava em que matéria augusta tocamos, sem o saber, quando agimos. Sob tantos olhares, fechou os olhos. Ela revelou quanta paz podemos destruir, sem saber.

            Rivière a recebeu.

            Ela vinha advogar timidamente em nome das suas flores, do seu café servido, da sua carne jovem. Uma vez mais, naquele escritório ainda mais frio, seus lábios voltaram a tremer levemente. Ela também descobria sua própria verdade, inexprimível neste outro mundo.

            Tudo o que nela se revestia de amor, quase selvagem - de tão ardente, de tão entregue -, parecia-lhe que tomava um aspecto inoportuno, egoísta. Desejou fugir:

            — Estou incomodando-o...

            — Senhora - disse-lhe Rivière -, não está me incomodando. Infelizmente, eu e a senhora não podemos fazer mais nada além de esperar.

            Ela encolheu levemente os ombros, mas Rivière compreendeu o sentido do gesto: "De que servem a lâmpada, o jantar servido, as flores que voltarei a encontrar...”. Uma jovem mãe havia confessado a Rivière um dia: “Ainda não compreendi a morte de meu filho. São as pequenas coisas que são duras, suas roupinhas que encontro e, se me levanto à noite, essa ternura que, mesmo assim, sobe ao meu coração, ainda que, a partir de agora, seja inútil como o meu leite...”. Também para aquela mulher, a morte de Fabien começaria apenas no dia seguinte: em cada ato, dali em diante, em cada objeto... Fabien deixaria lentamente a sua casa. Rivière calava uma profunda compaixão.

            — Senhora...

            A jovem se retirou, com um sorriso quase humilde, ignorando seu próprio poder.

            Rivière sentou-se, um pouco pesaroso.

            “Contudo, ela me ajudou a descobrir o que eu procurava...”

             Batia distraidamente os dedos sobre os telegramas de proteção das escalas do Norte. Sonhava.

            “Nós não pedimos para ser eternos, mas para não ver os atos e as coisas perderem repentinamente o sentido. O vazio que nos rodeia se mostra então...”

            Com os olhos nos telegramas, pensou: “E eis por que meios, entre nós, a morte se faz anunciar: essas mensagens já não fazem sentido...”.

            Observou Robineau. Aquele rapaz medíocre, agora inútil, não tinha mais sentido. Rivière lhe disse em um tom quase alterado:

            — Será preciso que eu mesmo lhe dê trabalho!

            Em seguida, Rivière empurrou a porta que dava para a sala dos secretários e o desaparecimento de Fabien o atingiu, de forma evidente, por meio dos sinais que a senhora Fabien não soube ver. A ficha do R.B. 903 já figurava no mural, na coluna do material indisponível. Os secretários, que preparavam o material do correio da Europa, sabendo que sairia com atraso, trabalhavam mal. Do campo de aviação, pediam instruções por telefone para as equipes que permaneciam em vigília, sem objetivo. As funções da vida tinham diminuído o ritmo. “A morte, ei-la!”, pensou Rivière. Sua obra era semelhante a um veleiro avariado, sem vento, sobre o mar.




            Ouviu a voz de Robineau:

            — Senhor diretor... estavam casados havia seis semanas...

            — Vá trabalhar.

            Rivière permaneceu observando os secretários e, atrás destes, os operários, os mecânicos, os pilotos, todos os que o haviam ajudado na sua obra, com uma fé de construtores. Pensou nas pequenas cidades de outros tempos, que, ouvindo falar de “ilhas”, construíram o seu navio. Para carregá-lo com a sua esperança. Para que os homens pudessem ver sua esperança e abrir as velas sobre o mar. Todos engrandecidos, todos fora de si mesmos, todos libertos por um navio. “O objetivo talvez não justifique nada, mas a ação liberta da morte. Aqueles homens perdurariam por seu navio.”


            E Rivière também lutará contra a morte, quando tiver dado aos telegramas seu sentido pleno, às equipes de vigilância noturna, à sua inquietação e aos pilotos, seu objetivo dramático. Quando a vida reanimar essa obra, como o vento reanima um veleiro no mar.

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 28


            Terra dos Homens não proporciona uma idéia clara da carreira de piloto de Saint-Exupéry, pois a obra passa sem ordem cronológica da França à África do Norte e depois à América do Sul, retornando depois à África. Ele se dedica mais a descrever suas sensações e estados de espírito que os detalhes dos aviões ou das viagens. A ausência de descrições factuais intensifica a qualidade lírica de sua prosa. As aterrissagens parecem regressos de uma viagem purifica­dora, evocando o reencontro da esperança, a imagem de um planeta colorido coberto de flores e povoado de pessoas sorridentes. Os aeródromos são percebidos como o centro de universos otimistas, cujas fronteiras seriam o auxílio mútuo, a amizade e a satisfação do dever cumprido. Algumas horas de vôo eram suficientes para em­briagá-lo e fazê-lo esquecer o tédio na terra.

            Montaudran inspirava-lhe um sentimento de orgulho que nunca experimentara antes, e teria achado desleal e de mau gosto descrever a cena com suas cores verdadeiras, um pouco deprimentes. Feliz­mente, a paixão epistolar de Saint-Exupéry compensou em grande parte a falta de detalhes de sua obra literária. Daurat e Massimi, bem como diversos outros pioneiros de Latécoère, também escreve­ram memórias que proporcionam imagens mais exatas de uma vida penosa e esgotadora, da qual o tédio e a rotina não estavam ausentes.

            O aeródromo de Latécoère, em Toulouse, não tão sedutor quan­to o apresenta Saint-Exupéry, era uma pista de cimento rodeada de hangares de concreto e de um conjunto de construções dispersas. A base era tão mal equipada quanto na época em que Latécoère, em tempos de guerra, construíra vagões de estrada de ferro. Para virem do hotel do Grand Balcon, onde ficavam hospedados, os aviadores tomavam um antigo ônibus Ford que ia buscar os pilotos em serviço às 4 horas da manhã. Segundo as regras inflexíveis estabelecidas por Daurat, nem o tempo, nem a fraqueza humana, nem os incidentes mecânicos representavam obstáculos para o transporte do correio durante a viagem de cerca de 5.000 quilômetros que separava a cidade francesa do sudoeste do porto colonial africano de Dacar, no Senegal. Saint-Exupéry descreveu o regime imposto por Daurat em Mantau- dran como “uma espécie de guerra”. Esse é o clima que recriou em Terra dos Homens, no trecho em que Antoine, a bordo do velho ônibus que o leva para a base, fica sabendo da morte de Émile Lécrivain, um dos pilotos mais valentes da companhia.

            O sacrifício humano que se esperava das tripulações era explicado em parte pela correlação existente entre os itinerários aéreos e a expansão colonial. O primeiro apoio influente de Latécoère veio do marechal Louis Lyautey, que “pacificou” o protetorado francês do Marrocos, antes e depois da Primeira Guerra Mundial, e que compreendeu a importância das comunicações rápidas com os novos territórios africanos.

            A França estava competindo diretamente com a Espanha pelo controle do Saara ocidental. Na África do Norte, a Legião Estran­geira francesa, junto com outros regimentos regulares, estava envol­vida em combates aparentemente incessantes contra tribos do deserto e grupos rebeldes que rejeitavam o domínio francês. Entre os oficiais da artilharia figurava Louis de Bonnevie, o antigo colega de Fribur- go, que morreu de tifo no Marrocos, em 1927. Esse foi outro acon­tecimento trágico que afetou Saint-Exupéry, porém não figura em seus escritos publicados.

            Só por sorte Saint-Exupéry não morreu antes do amigo. Sua primeira viagem à África foi um simples vôo de rotina como pas­sageiro num cockpit aberto, repleto de sacolas de correio, mas, em sua viagem inaugural no comando de um aparelho, o tempo estava particularmente desfavorável. O transporte do correio para Casablan­ca era feito em duas etapas. O primeiro piloto fazia escala em Bar­celona e Alicante, antes de confiar o aparelho a outro aviador, que chegava ao Marrocos em duas etapas. A viagem de ida de Saint-Exupéry até Alicante ocorreu sem problemas; no regresso, porém, perto de Carcassone, uma neblina baixa na hora do crespúsculo obri­gou-o a fazer uma aterrissagem forçada num campo. Durante toda a noite esperou um carro que viesse socorrê-lo.

            Às vezes era obrigado a percorrer sozinho as quatro etapas da viagem. Durante um vôo, pensou que os comandos tinham enguiçado, quando o avião despencou rumo ao solo após ter passado por uma turbulência. Em outra ocasião, após ter abandonado um Bréguet em estado calamitoso em Rabat, teve de enfrentar os 2.000 quilômetros de regresso a Toulouse através de uma tempestade que durou nove horas e o fez saracotear como uma bola de tênis. Depois dessa experiência escreveu a uma amiga, Lucie-Marie Decour, admi­rando-se que um avião pudesse suportar esse teste. Após ter supe­rado um segundo temporal, Saint-Exupéry chegou a Alicante, onde foi informado de que um passageiro do vôo anterior tinha morrido ejetado, pois a correia de seu assento arrebentara.

            Saint-Exupéry não se referiu muito a essas viagens aterrorizantes em suas obras, por duas razões: a primeira delas era a modéstia. Suas proezas parecem comuns ao lado das façanhas de alguns dos seus colegas em Latécoère, como Jean Mermoz, o mais célebre de todos os aviadores franceses do período anterior à guerra, que mor­reu três anos antes da publicação de Terra dos Homens. A outra razão, sem dúvida, era que a aventura pura não era tão propícia à elevação espiritual quanto certas experiências que ele reavivou e embelezou mais tarde.

            Entre essas lembranças distingue-se o período que passou na qualidade de diretor da base Latécoère em cabo Juby, uma escala na África ocidental na linha de Dacar. Esse retiro isolado e desértico às margens do oceano deixou profundas marcas em Terra dos Homens, O Pequeno Príncipe e Cidadela. A solidão, mesclada com breves pe­ríodos de camaradagem, deixaria Saint-Exupéry em estado de graça. Anos mais tarde, seu pesar por ter abandonado o retiro solitário do Saara incitou-o a preencher o vazio com um idealismo simplista. Na atmosfera libertina e egocêntrica do ambiente parisiense que freqüentou na maior parte dos anos 30, a saudade da pureza de cabo Juby levava-o a acreditar que a civilização européia estava prestes a perder seus princípios e deveria recuperar seus valores morais.

            O tempo tinha transformado totalmente sua percepção desse paraíso desolado, e ele tinha consciência desse fato. Para explicar essa distorção, Saint-Exupéry tinha de admitir que a mais deprimente ro­tina pode gradualmente parecer sublime. Numa carta a Charles Sallès, na qual relembra um sobrevoo sobre os desertos do sul do Marrocos, Saint-Exupéry comentava que essa experiência dava “uma idéia exata do nada”, acrescentando: “Passei dias de sinistra depressão dentro de uma barraca podre, mas agora recordo apenas uma vida cheia de poesia”.

             Encontramos uma descrição mais precisa desses “dias de depressão” numa carta a Simone de Saint-Exupéry, na qual descreve os mouros como “ladrões, mentirosos, bandidos, falsos e cruéis”. Embora tivesse chegado a cabo Juby cheio de ilusões humanitárias, já estava começando a julgá-los com menos benevolência. “Matam homens como se fossem galinhas, porém cuidam de seus piolhos”, lembra-se, em 1928. No entanto, escrevia 10 anos depois, em Wind, Sand and Stars, a versão inglesa ampliada de Terra dos Homens, que à primeira vista ficara encantado com o deserto, impactado pela nobreza do homem que desempenhava um drama secreto num Saara aparentemente vazio.

            Numa carta a Louise de Vilmorin, datada de 1928, apresenta sua vida em cabo Juby como “uma aventura mágica”, acrescentando: “Sentia que estava pronto para entender melhor essa areia, essa mi­ragem e esse surpreendente silêncio. Pode imaginar isso? Antes que nada, o Saara mostra-me uma perspectiva”.

            Cabo Juby não tinha nada de nobre. Geograficamente, fazia parte das possessões espanholas de Rio de Oro, ao sul do Marrocos, abandonadas pela Espanha em 1976. O território foi anexado à força por Rabat após a partida dos espanhóis, porém as mesmas tribos nômades, que tinham se revoltado contra a dominação colonial du­rante os anos 30, uniram-se em 1976 para formar a Frente Polisária e opor-se ao regime marroquino. Em 1928, quando Saint-Exupéry foi nomeado responsável pelo campo de aterrissagem após mais de um ano de vôo pelas linhas da África do Norte e do Oeste, a Espanha desconfiou das intenções francesas. Séculos de rivalidade entre Paris e Madri tinham criado dificuldades para os acordos precários de vôo sobre a Espanha, que na época não escondia suas simpatias pró-alemãs. Os espanhóis tinham sido derrotados na região de Rif, ao norte do Marrocos, e 20 mil soldados tinham sido mortos numa batalha contra os rebeldes liderados por Abdel Krim. Os franceses aproveitaram a derrota para estabelecer seu domínio no territóxio enviando o marechal Philippe Pétain ao Marrocos, em 1926, com uma força expedicionária de mais de 100 mil homens para aniquilar o exército rebelde de Rif.

            As tribos nômades do sul do Saara, conhecidas pelo nome de mouros, resistiram à tentativa francesa de dominar integralmente a Áfiica ocidental, e suas guerrilhas atacaram de forma encarniçada e pitoresca a Legião Estrangeira francesa e o corpo de soldados montados em camelos. A luta atingira seu ponto culminante quando Saint-Exupéry chegou a cabo Juby em 1928, e os aviões da Aéropostale serviam regularmente de isca enquanto sobrevoavam os campos árabes ao longo da costa atlântica.

            No enclave de Rio de Oro, pequenas guarnições espanholas ocupavam postos isolados, e seu abastecimento dependia das ilhas Canárias, outra possessão espanhola. Evitavam enfrentamentos com as tribos nômades e mantinham a paz por meio de pactos provisórios e de oferecimento de asilo a saqueadores, salvando-os das represálias francesas. Com essa estratégia estabelecia-se uma rede de intrigas imperialistas européias, na qual o território desértico de Rio de Oro não passava de um mero peão. Mas sem a autorização para sobrevoar essa longa faixa de deserto desabitada, a ambição de Latécoère de abrir a rota do Atlântico, de Dacar até a América do Sul, não teria podido se concretizar.

            Enquanto se desencadeava uma batalha diplomática com relação ao direito de sobrevoar territórios espanhóis, Daurat decidiu enviar Saint-Exupéry a cabo Juby, com a esperança de estabelecer melhores relações com o governador espanhol da localidade. “Ele logo me pareceu o mais natural dos nossos embaixadores, um homem que, pelas suas indiscutíveis qualidades, parecia capaz de acalmar susce­tibilidades”, dizia Daurat.

            Antoine não falava espanhol, porém seus antecedentes aristocráticos pesavam muito em suas relações com a Espanha, que, na época, estava sob o domínio de uma ditadura militar dirigida pelo marquês Miguel Primo de Rivera.

            Essa transferência para um posto em pleno deserto não apre­sentava perspectivas muito atraentes. Significava o abandono do am­biente excitante do transporte do correio, rico em emoção e ca­maradagem, em troca de uma função solitária e sedentária. Em compensação, o chefe da base tinha a possibilidade de tomar inicia­tivas. Como um dos seus papéis principais era ajudar os pilotos em dificuldade no deserto, Saint-Exupéry teve pela primeira vez na vida a oportunidade de demonstrar suas qualidades de comando.

            Apesar desses eventuais consolos, deve ter se sentido angustiado ao chegar a cabo Juby. Meses de solidão o aguardavam, interrom­pidos apenas pelos contatos por rádio com as bases da Aéropostale no Marrocos ou na Mauritânia e pela passagem das equipes que lá faziam escala. Ele aterrissara diversas vezes em cabo Juby em 1927, ao ir de Casablanca a Dacar, um périplo de 2.000 quilômetros de deserto. Na chegada a cabo Juby, sobrevoava-se uma imponente for­taleza vetusta, cujas muralhas brancas encostavam no Atlântico. À frente estendia-se o deserto a perder de vista, com exceção de um conjunto de construções rodeadas de arame farpado, que desempe­nhavam o papel de aeroporto. No solo, a vista era ainda mais sinistra. O forte ficava ao lado de uma colônia penitenciária. A guarnição da Legião Estrangeira espanhola, comandada por um coronel, não tinha nada a fazer senão esperar o improvável ataque de um inimigo árabe invisível, cujos espiões estavam instalados num acampamento situado ao pé das muralhas da fortaleza.

            O tempo passava de maneira imutável, pontuado a cada quarto de hora pelo grito dos sentinelas que faziam a ronda, vigiando a chegada de um inimigo que nunca aparecia. Joseph Kessel visitou cabo Juby e escreveu que os soldados praticamente não se distin­guiam dos prisioneiros que guardavam. Passavam semanas sem se lavar e seus uniformes estavam em farrapos. A solidão deprimia tan­to os oficiais quanto os recrutas. Kessel passou uma hora com os oficiais no forte, e o único barulho que ouvia era o dos dados que rolavam em cima da mesa. Na sua opinão, cabo Judy hospedava fantasmas.

            Apesar dos anos passados em hotéis e pensões sem conforto, Saint-Exupéry não estava preparado para a rusticidade do alojamento destinado a acolher o representante da companhia Latécoère. Os desconfiados espanhóis não queriam o novo diretor da base nem seus três mecânicos no centro da fortaleza, e estes foram então ob­rigados a ocupar uma choça construída na parede norte, diante do oceano. À noite ficavam à mercê dos nômades ou dos saqueadores, e tiveram de criar um sistema rudimentar de segurança: um fio elé­trico ligado a um gerador a hélice amarrado ao trinco da porta de entrada, que dava um choque no intruso.

            No longo silêncio da noite, perturbado apenas pelo ruído das ondas quebrando na areia, Saint-Exupéry escrevia e reescrevia Correio Sul à luz de um lampião de querosene, aperfeiçoava seus truques de baralho e redigia relatórios para Latécoère; alguns deles chegaram até o Ministério das Relações Exteriores francês e a seus especialistas em colônias. Sua principal tarefa consistia em atender os aviões que transportavam o correio, provenientes do norte e do sul, e que ater­rissavam a cada três dias, tentando manter em boas relações com o governador espanhol e as tribos locais. Embora mais tarde tivesse a oportunidade de relatar apaixonantes expedições de socorro em bus­ca de aviadores em perigo, às vezes sob o fogo inimigo, suas primei­ras impressões ao chegar foram profundamente deprimentes. Em 1928, escrevia à mãe que o cenário lhe parecia “cada vez mais ab­surdo”. Seu canto do Saara, dizia, estava povoado de 200 soldados espanhóis que se agarravam há trinta anos no forte e cujos únicos visitantes eram os árabes mais piolhentos.

            “Esses bastidores do Saara, enfeitados com alguns figurantes, aborrecem-me como um subúrbio sujo”, praguejava, ao descrever uma paisagem que mais tarde exaltaria em Terra dos Homens.

Antoine de Saint-Exupéry em Cap Juby, com o coronel de la Peña, 1928.
Ao fundo se pode ver o forte espanhol


            

domingo, 30 de julho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 17

            IV

            Estávamos, ali, em contato com os mouros insubmissos. Eles apareciam às vezes do fundo dos territórios proibidos, daqueles territórios que transpúnhamos em nossos voos; arriscavam-se a ir aos fortins de Juby ou Cisneros comprar açúcar ou chá. Depois mergulhavam outra vez em seus mistérios. Tentávamos, quando eles vinham, ganhar a confiança de alguns.

            Quando eram chefes influentes, nós os levávamos às vezes a bordo, de acordo com a direção das linhas, para lhes mostrar o mundo. Tratava-se de extinguir o seu orgulho. Porque era mais por desprezo que por ódio que eles matavam os prisioneiros. Quando passavam por nós perto de um fortim, nem sequer nos injuriavam: viravam a cara e cuspiam. Tiravam esse orgulho da ilusão de sua força. Quantos dentre eles não me repetiram, tendo posto em pé de guerra um exército de trezentos fuzis: “Vocês, lá da França, têm sorte de estar a mais de cem dias de marcha..."

            Assim, nós os levávamos a passear. E assim três deles visitaram aquela França desconhecida. Eram da raça dos que, tendo uma vez me acompanhado ao Senegal, choraram ao ver árvores.

           Quando os encontrei novamente em suas tendas, eles falavam com admiração dos music-halls em que haviam visto mulheres nuas dançando entre flores. Aqueles homens jamais haviam visto, antes uma árvore, ou uma fonte ou uma rosa. Só através do Alcorão conheciam a existência de jardins em que murmuram regatos, pois assim é chamado o Paraíso. Esse paraíso e suas belas cativas é ganho pela morte amarga sobre a areia, a um tiro de fuzil de um infiel, depois de trinta anos de miséria. Mas Deus os engana, porque Deus não exige dos franceses, aos quais são concedidos todos aqueles tesouros, o sacrifício da sede nem da morte. E por isso que eles estão meditando agora, os velhos chefes. E é por isso que ali, olhando o Saara que se estende, deserto, em volta de sua tenda, o Saara que até a morte lhes dará tão magros prazeres, eles se entregam a confidências.


            — Veja você... o Deus dos franceses... Ele é mais generoso para os franceses do que o Deus dos mouros para os mouros!

            Algumas semanas antes, haviam sido levados a passear na Savoia. O guia os conduziu a uma grande cascata, uma espécie de coluna de pedras de onde desciam tranças de águas barulhentas, e lhes disse:

            — Bebam.

            E era água doce. Água! Aqui, quantos dias de marcha para atingir o poço mais próximo e, quando se encontra esse poço, quantas horas para cavar na areia que o cobriu, até chegar a uma pobre lama misturada com urina de camelo! Agua! Em cabo Juby, em Cisneros, em Port-Étienne os meninos mouros não mendigam dinheiro. Com uma lata de conserva vazia na mão, pedem esmola de água:

            — Me dá um pouquinho de água, me dá...

            — Se você se portar bem...

            Água, água que vale seu peso em ouro; água, cuja menor gota tira da areia a centelha verde de uma folha... Quando chove em algum lugar, um grande êxodo anima o Saara. As tribos caminham para aquela erva que crescerá a trezentos quilômetros de distância. E essa água tão avara, da qual não caiu nem uma gota em Port-Étienne durante dez anos, essa água roncava ali como se de uma cisterna arrebentada saltassem todas as provisões do mundo.

            — Vamos embora — disse-lhes o guia.

            Mas eles não se mexiam:

            — Deixe-nos ficar um pouco mais...

            Calavam-se e assistiam graves, mudos, ao desenrolar de um mistério solene. O que saltava assim, do ventre da montanha, era a vida, era o próprio sangue dos homens. A água que passava em um só segundo teria ressuscitado caravanas inteiras que, bêbadas de sede, haviam mergulhado, para sempre, no infinito dos lagos de sal e das miragens. Deus, ali, se manifestava: não se Lhe podiam virar as costas. Deus abria suas represas e mostrava sua potência: os três mouros permaneciam imóveis.

            — Que querem ver mais? Vamos embora...

            — É preciso esperar.

            — Esperar o quê?

            — O rim.

            Queriam esperar a hora em que Deus Se cansasse de sua loucura. Ele Se arrepende depressa, Ele é avaro.

            — Mas essa água corre há milhares de anos!

            Assim, naquela noite, eles não insistiam sobre a cascata. É melhor calar certos milagres. E melhor não pensar muito nessas coisas porque então não se compreende mais nada. Pode-se até duvidar de Deus...

            — Veja você... o Deus dos franceses...




            Mas eu conheço bem esses meus amigos bárbaros. Ali estão eles, perturbados em sua fé, desconcertados, prestes à submissão.

             Sonham em ser abastecidos de cevada pela intendência francesa e viver garantidos pelas nossas tropas do Saara. E é verdade que, uma vez submissos, eles ganharão bastante em bens materiais.

            Mas são, todos os três, do sangue de El Mammoun, emir de Trarza. (Não sei se escrevo errado o seu nome.)

            Conheci-o quando era nosso vassalo. Admitido às honras oficiais pelos serviços prestados, enriquecido pelos governadores e respeitado pelas tribos, nada lhe faltava, ao que parecia, das riquezas visíveis. Mas uma noite, sem que nenhum sinal o fizesse prever, massacrou os oficiais que estavam em sua companhia no deserto, apoderou-se dos camelos, dos fuzis e foi se juntar às tribos insubmissas.

            Dá-se o nome de traições a essas súbitas revoltas, a essas fugas, às vezes heroicas e desesperadas, de um chefe que volta ao deserto atrás de uma curta glória que se apagará bem cedo, como um fogo de artifício, em face da coluna volante de Atar. E admiram-se esses gestos de loucura.

            Entretanto, a história de El Mammoun foi a de muitos outros árabes. Ele envelhecia. Quando a gente envelhece, começa a meditar. Assim, uma tarde, descobriu que havia traído o Deus do Islã e que havia sujado a sua mão selando na mão dos cristãos um pacto em que perdia tudo.

            Que lhe importavam, com efeito, a cevada e a paz? Guerreiro decaído que se tomou pastor, ele de repente se lembra de haver habitado um Saara onde cada dobra de areia era rica de ameaças escondidas, onde o acampamento, noite alta, destacava sentinelas em todas as direções, onde as notícias que chegavam dos movimentos dos inimigos faziam bater os corações em volta dos fogos noturnos. Lembra-se de um gosto de alto-mar— um gosto que uma vez provado por um homem, nunca mais é esquecido.

            Hoje, ele erra ingloriamente por uma terra pacificada, vazia de todo o prestígio. Hoje, somente hoje, o Saara é um deserto.

           


Talvez ele venere os oficiais que vai assassinar. Mas primeiro vem o amor de Alá.

            — Boa noite, El Mammoim.

            — Que Deus o proteja!

            Os oficiais enrolam-se em suas cobertas esticadas na areia como numa jangada, sob os astros. E agora as estrelas caminham lentamente — um céu inteiro marcando a hora. Agora, a lua desce atrás das areias, reconduzida ao nada pela Suprema Sabedoria. Os cristãos não tardam a dormir. Ainda alguns minutos, e só as estrelas brilharão. Então, para que as tribos abastardadas sejam restabelecidas em seu passado esplendor, para que retomem suas correrias que dão um sentido luminoso ao deserto, bastará um grito fraco desses cristãos que serão afogados em seu próprio sono... Ainda alguns segundos e do irreparável nascerá um mundo...


            E os belos tenentes adormecidos são massacrados.



A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 26

Didier Daurat

            A importância de Didier Daurat na vida e na obra de Saint-Exupéry é enorme. Ele aparece no último e mais importante livro de Saint-Ex na figura do “Pai”, que forma o caráter do narrador, líder da Cidadela no Saara. Esse personagem do livro é talvez o mais marcante, o mais citado nas histórias, nas parábolas, nos ensinamentos morais, éticos, humanos, e filosóficos. Para entender “Cidadela” é importante entender e conhecer Daurat.

            Nomeado Diretor de Operações da Latécoère no outono de 1920, ele era um homem atarracado, de ombros fortes como um buldogue, com olhos penetrantes e um bigode que criava uma barreira no seu rosto. Herdou do pai — um chofer-mecânico empregado da empresa de gás de Paris — o jeitão direto e sem rodeios do pessoal da região de Auvergne. Com quinze anos foi enviado para a Ecole d’Horlogerie et de Mécanique de Paris, quando desenvolveu um enorme interesse por astronomia bem como por relojoaria, geometria sólida, projetos de engenharia e resistência dos metais. Mas veio a Primeira Guerra, com todo o horror que caracterizou o conflito.

Foi enviado para o Front, onde viveu toda a intensa ferocidade que o amadureceu prematuramente. Noites geladas em galpões onde o medo da morte aparecia nos rostos sujos e barbados iluminados por uma vela bruxuleante; trincheiras de inverno e abrigos gelados cavados atrás de montes de cadáveres; combates de tronco a tronco em florestas destruídas; o interminável, contínuo, ensurdecedor bombardeio de Verdun abrindo crateras por quilômetros sem fim — viu e sobreviveu a tudo. Certo dia, nas ruínas do que fora uma igreja, se viu frente a um solitário general que ordenou avançasse completamente sozinho para libertar sua brigada capturada. “Avance, continue a avançar, que você consegue!” foi a ordem que recebeu do oficial com um gesto largo — que para Daurat pareceu ser a síntese da loucura da guerra.

            Evacuado para Vichy com pedaços de metal no crâneo e no tornozelo, Daurat inicialmente tinha um desdém típico do soldado de infantaria pelos aviadores cheios de medalhas cuja passagem pelos salões era acompanhada por olhos brilhantes e palpitações de corações femininos. Mas a curiosidade venceu o preconceito e logo se viu voluntário para serviço na Força Aérea. Na base aérea de La Cheppes, próximo a Chalons-sur-Marne, foi designado como piloto de reconhecimento fotográfico sobre as linhas alemãs, a fim de guiar a artilharia francesa. Lá conheceu Beppo de Massimi, cujo domínio do Latim era igualado por incríveis reservas de coragem. Foi Daurat que colocou o antigo boêmio para montar e desmontar metralhadoras e lhe ensinou os rudimentos de reconhecimento aéreo; e embora  Massimi fosse dez anos mais velho do que ele, os dois com o tempo construíram uma solida amizade.

            A guerra no ar, como Daurat logo descobriu, era quase tão letal como em terra. Certa vez atacado por cinco Fokkers, conseguiu trazer o avião perfurado por tiros de volta à base, para só na hora de descer da cabine descobrir que seu observador estava morto. Pilotando um biplano Bréguet 14 certo dia sobrevoou o Quartel-General do castelo de Kronprinz e avistou cinquenta caças alemães subindo em sua direção tentando chegar aos 5 mil metros onde estava. Mais tarde, durante um voo noturno de reconhecimento, pôde ver o clarão provocado pelo enorme e gigantesco “Big Bertha”, ajudando a localizar o monstro que bombardeava Paris. Destacado para bombardear pontes alemãs durante a Segunda Batalha do Marne, foi o único sobrevivente de quatro dias de pesadelo em um esquadrão de 64 pilotos! Depois de derrubar um avião alemão, foi atacado por cinco caças inimigos, que transformaram as asas e a fuselagem de seu avião em uma peneira. Um projétil passou raspando por sua cabeça, e outro destroçou três dedos de sua mão direita. Enfraquecido pela perda de sangue, refugiou-se em uma nuvem, e conseguiu com dificuldade achar o caminho de volta, segurando a mão ferida contra o vidro da cabine para estancar a hemorragia.

            Esse era o homem que se juntou à Latécoère e ao próprio Massimi em agosto de 1919 e que um ano depois se tornou Diretor de Operações da empresa. Com apenas vinte e nove anos de idade, mas com um acúmulo de experiência humana nos seis anos anteriores suficientes para durar várias encarnações. Toda essa fibra foi necessária naquele sombrio outono, quando no espaço de três dias duas mensagens chegaram informando que Rodier havia desaparecido no mar ao largo de Perpignan e que Genthon, outro veterano, havia perecido no incêndio de seu avião ao tentar uma aterrissagem forçada em um campo rochoso entre Valencia e Alicante. Um clima de profundo desestimulo se abateu sobre a empresa, alimentado por uma sensação de que os obstáculos eram por demais formidáveis e o azar intransponível. “Discussões haviam tomado o lugar da coragem e o ceticismo havia substituído a inteligência,” relatou Daurat anos depois em sua autobiografia admiravelmente sincera, Dans le Vent des Hélices (No Vento das Hélices). “Lamentei ter de demitir muitos colegas cujo valor eu reconhecia e aos quais era ligado por uma sincera amizade. Mas eles haviam se tornado um perigo para empresa.  Haviam perdido sua fé e começado a difundir um espirito critico destrutivo; passaram a usar sua experiência ao contrário; para corromper o entusiasmo dos outros. Alguns deles haviam criado o hábito de não comparecer no aeroporto ao menor sinal de um vento mais forte nas persianas do Hôtel du Grand Balcon, onde estavam hospedados.

            Um ônibus foi alugado para trazer os aviadores relutantes para Montaudran, e todos aqueles que não chegavam a tempo foram sumáriamente demitidos. Esposas e namoradas que costumavam se agrupar para admirar a perícia de seus aviadores em acrobacias e que imploravam a eles que não decolassem com vento e chuva foram proibidas de se aproximar do campo de aviação.

            Os “heróis” e “azes” que se recusaram a se submeter ao novo regime foram mandados embora. Para substitui-los Daurat teve de contratar outros veteranos de guerra – na época não havia muita escolha – e todos tiveram de passar pelas oficinas, tal como ele havia feito com Massimi em La Cheppes. “Para quebrar a carapaça de orgulho que caracterizava a maioria deles, tive de impor um período de estágio nas oficinas de manutenção. Alguns acharam que aparafusar peças, limpar motores, e chegar no horário era um vexame inaceitável. Saíram rapidamente, simplificando meu problema de seleção.”

            Os resultados dessa postura de “pé-no-chão” logo começaram a surgir. Em lugar de se sentir superiores aos mecânicos, até então considerados como uma classe de  “inferiores”, os pilotos desenvolveram um sentimento de companheirismo com os homens que tinham a tarefa de manter seus motores funcionando, e como ocorria frequentemente, ir até eles consertar motores quando tinham de fazer alguma aterrissagem forçada em uma praia ou num campo. A imagem da companhia começou a mudar – deixaram de ser um grupo de aventureiros arrojados arriscando a vida,  para se tornarem  uma empresa séria de correio aéreo, que se empenhava em voar a favor, e não contra, os elementos da natureza. Os padrões exigidos eram considerados como os mais severos no setor, e conseguir ser admitido na Latécoère era um privilégio para  poucos.

            Quase imperceptivelmente implantou-se um novo “espírito de corpo” que se tornou o bem mais precioso da empresa, embora intangível. Era acompanhado por uma crescente mitologia, à medida que os “veteranos” se tornavam protagonistas de um número cada vez maior de “histórias”.

Um caso exemplar ocorreu com Jean Mermoz, que viria a ser o piloto mais famoso da linha, e que quase foi reprovado quando se apresentou para admissão em Montaudran dois anos antes de Saint-Exupéry. Levado ao escritório de Daurat, uma sala sóbria e simples com apenas uma mesa e um enorme mapa da Espanha marcado a lápis com linhas coloridas, Mermoz confiantemente tirou do bolso seu histórico de voos e seus certificados militares. Com um cigarro pendurado abaixo do bigode, Daurat passou os olhos pelos papeis. O rosto impassível.

            “Estou vendo” finalmente disse, os olhos negros friamente fitando os olhos do jovem Mermoz, “até agora você não fez nada.”

            “Mas eu tenho seiscentas horas de voo!” protestou Mermoz veementemente. Um general francês havia até escrito uma carta de recomendação extremamente elogiosa.

            “Isso não é nada... nada demais,” resmungou Daurat. Olhou Mermoz de alto a baixo, observando os ombros largos, o torso evidentemente atlético, o terno que o infeliz havia passado horas escovando, e o cabelo comprido, arrumado cuidadosamente por trás das orelhas.

            “Você tem um cabelo cuidado, concorda?” comentou ele, com um ligeiro toque de sarcasmo. “Mas não tem a cabeça de um operário.”

            “Mas eu vim aqui para ser piloto!”

            “Aqui, se você quer ser piloto, começa por ser um operário. Irá seguir as etapas normais, como todos os outros. Vou te contratar como mecânico. Vá procurar o chefe da oficina e peça-lhe um macacão.”

            “Está bem, Monsieur le Directeur,” disse Mermoz, engolindo em seco, “mas quando será que eu poderei voar?”...

            “Aqui não se aceita perguntas... Você saberá no devido tempo quando poderá voar... caso venha a ser autorizado a voar,” retrucou Daurat rispidamente.

            E nas três semanas seguintes Jean Mermoz e seis outros iniciantes enrijeceram as mãos esfregando cilindros em um tonel de potássio. Depois disso foram colocados para montar e desmontar motores. “Eu estava começando a achar a vida enormemente monótona,” Mermoz contou posteriormente, “quando um dia Monsieur Daurat rosnou para nós, de passagem: “Estejam no aeroporto amanhã as 6:30 da manhã.

            Exuberante, Mermoz se apresentou na manhã seguinte e já encontrou meia dúzia de anciens (veteranos) agrupados para curtir o espetáculo. Entre eles estava um alsaciano chamado Doertlinger, um “ás” da guerra de 14-18 que havia derrubado treze aviões franceses, voando pelos alemães.

            O aeroplano que os “aprendizes” iam voar era um Bréguet 14, um biplano de nariz quadrado com um motor Renault de 300 HP. Era um avião que parecia um “caixão voador”, desengonçado, com um radiador enorme retangular na frente e uma peça que parecia uma bota encravada bem atrás da hélice. Esta peça,  frequentemente chamada de “chifre do rinoceronte”, era simplesmente o cano de descarga do motor colocada de forma a soltar a fumaça sobre a asa de cima e a cabeça do piloto, sentado pouco atrás em uma cabine aberta, logo embaixo da borda de trás da asa.

            Os primeiros dois candidatos fizeram decolagens e aterrissagens desastradas e foram sumáriamente dispensados por Daurat; depois deles chegou a vez de Mermoz. Ainda furioso com o descaso do chefe por suas 600 horas de voo como “nada”, Mermoz decolou, decidido a mostrar-lhe a que vinha.

O avião padrão da linha, o Bréguet 14, seria mais comparável a um cavalo robusto Percheron do que a um cavalo de corrida, não era feito para voos acrobáticos - que haviam tanto impressionado o Capitão René Bouscat; mas Mermoz estava com o sangue fervendo, e decidido a impressionar o público com as façanhas que seu caixote podia fazer.
Acelerando na pista a toda potência, esperou até o limite até puxar o manche, e colocar o pesado avião em uma subida espetacular, depois do que realizou uma serie de loops admiráveis antes de aterrissar o avião bem no meio do círculo de giz que havia sido desenhado no meio da pista de terra para testes de precisão.

            Satisfeito com sua exibição, Mermoz desceu confiante do Bréguet, e para sua surpresa Daurat sumira. Os “veteranos” ainda estavam lá, observando sardonicamente, tocos de cigarro pendurados nos lábios, mãos enfiadas nos bolsos de suas jaquetas de couro. Pareciam nada impressionados.

            “Nem se preocupe em tentar achá-lo,” um deles finalmente disse, com um forte sotaque de Marselha. “Você pode arrumar suas malas.”

            “Então você está satisfeito?” disse Daurat, aparecendo de um hangar já com seu chapéu de feltro e sua capa de chuva.

            “Sim, Monsieur le Directeur

            “Bem, eu não. Aqui não contratamos pilotos de acrobacia. Se você quer ser um artista de circo, pode ir se exibir em outro lugar.”

            Mermoz arrancou o capacete de couro da cabeça, e foi para o vestiário onde começou a jogar seus poucos pertences em uma mala, decidido a sacudir a poeira de Montraudan de seus pés para sempre. Mas de repente aparece Daurat atrás dele, observando em um enigmático silêncio.

            “Então você está indo,” disse ele finalmente, ao mesmo tempo em que tirava um maço de cigarros Caporal do bolso.

            “Sim” respondeu lacônicamente Mermoz.

            “Um... Você não é disciplinado... é convencido... se acha o tal... um... naturalmente...”

            “Sim, me acho bom.”

            “E você tem coragem de me rebater.”

            “Claro, já que o senhor me faz perguntas.”

            “Você tem pavio curto.”

            “Não, Monsieur le Directeur,” retrucou Mermoz, “mas detesto injustiça. Eu sei que pilotei bem,”

            “Como eu pensava... pretencioso...On vous dressera,” continuou Daurat. E dito isso, mal acreditando no que ouvia, Mermoz foi mandado a entrar no Bréguet de novo, e levá-lo até 600 pés, efetuar uma lenta curva horizontal, e depois trazer o avião para uma aterrissagem elegante e suave. Daurat nem se deu ao trabalho de presenciar o final de seu segundo voo, que Mermoz realizou conforme as instruções; mas para a lição ficar clara, colocou o orgulhoso piloto de volta à oficina por mais uma semana, apertando parafusos, a fim de, como ele posteriormente comentou, “inculcar nele uma noção mais exata de suas responsabilidades como aviador.”

            Esse era o homem que se tornou o personagem principal de “Cidadela”, o mentor e exemplo profissional para Saint-Exupéry.

Didier Daurat,
Diretor de Operações da Latécoère e mentor de Saint-Exupéry