domingo, 30 de julho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 17

            IV

            Estávamos, ali, em contato com os mouros insubmissos. Eles apareciam às vezes do fundo dos territórios proibidos, daqueles territórios que transpúnhamos em nossos voos; arriscavam-se a ir aos fortins de Juby ou Cisneros comprar açúcar ou chá. Depois mergulhavam outra vez em seus mistérios. Tentávamos, quando eles vinham, ganhar a confiança de alguns.

            Quando eram chefes influentes, nós os levávamos às vezes a bordo, de acordo com a direção das linhas, para lhes mostrar o mundo. Tratava-se de extinguir o seu orgulho. Porque era mais por desprezo que por ódio que eles matavam os prisioneiros. Quando passavam por nós perto de um fortim, nem sequer nos injuriavam: viravam a cara e cuspiam. Tiravam esse orgulho da ilusão de sua força. Quantos dentre eles não me repetiram, tendo posto em pé de guerra um exército de trezentos fuzis: “Vocês, lá da França, têm sorte de estar a mais de cem dias de marcha..."

            Assim, nós os levávamos a passear. E assim três deles visitaram aquela França desconhecida. Eram da raça dos que, tendo uma vez me acompanhado ao Senegal, choraram ao ver árvores.

           Quando os encontrei novamente em suas tendas, eles falavam com admiração dos music-halls em que haviam visto mulheres nuas dançando entre flores. Aqueles homens jamais haviam visto, antes uma árvore, ou uma fonte ou uma rosa. Só através do Alcorão conheciam a existência de jardins em que murmuram regatos, pois assim é chamado o Paraíso. Esse paraíso e suas belas cativas é ganho pela morte amarga sobre a areia, a um tiro de fuzil de um infiel, depois de trinta anos de miséria. Mas Deus os engana, porque Deus não exige dos franceses, aos quais são concedidos todos aqueles tesouros, o sacrifício da sede nem da morte. E por isso que eles estão meditando agora, os velhos chefes. E é por isso que ali, olhando o Saara que se estende, deserto, em volta de sua tenda, o Saara que até a morte lhes dará tão magros prazeres, eles se entregam a confidências.


            — Veja você... o Deus dos franceses... Ele é mais generoso para os franceses do que o Deus dos mouros para os mouros!

            Algumas semanas antes, haviam sido levados a passear na Savoia. O guia os conduziu a uma grande cascata, uma espécie de coluna de pedras de onde desciam tranças de águas barulhentas, e lhes disse:

            — Bebam.

            E era água doce. Água! Aqui, quantos dias de marcha para atingir o poço mais próximo e, quando se encontra esse poço, quantas horas para cavar na areia que o cobriu, até chegar a uma pobre lama misturada com urina de camelo! Agua! Em cabo Juby, em Cisneros, em Port-Étienne os meninos mouros não mendigam dinheiro. Com uma lata de conserva vazia na mão, pedem esmola de água:

            — Me dá um pouquinho de água, me dá...

            — Se você se portar bem...

            Água, água que vale seu peso em ouro; água, cuja menor gota tira da areia a centelha verde de uma folha... Quando chove em algum lugar, um grande êxodo anima o Saara. As tribos caminham para aquela erva que crescerá a trezentos quilômetros de distância. E essa água tão avara, da qual não caiu nem uma gota em Port-Étienne durante dez anos, essa água roncava ali como se de uma cisterna arrebentada saltassem todas as provisões do mundo.

            — Vamos embora — disse-lhes o guia.

            Mas eles não se mexiam:

            — Deixe-nos ficar um pouco mais...

            Calavam-se e assistiam graves, mudos, ao desenrolar de um mistério solene. O que saltava assim, do ventre da montanha, era a vida, era o próprio sangue dos homens. A água que passava em um só segundo teria ressuscitado caravanas inteiras que, bêbadas de sede, haviam mergulhado, para sempre, no infinito dos lagos de sal e das miragens. Deus, ali, se manifestava: não se Lhe podiam virar as costas. Deus abria suas represas e mostrava sua potência: os três mouros permaneciam imóveis.

            — Que querem ver mais? Vamos embora...

            — É preciso esperar.

            — Esperar o quê?

            — O rim.

            Queriam esperar a hora em que Deus Se cansasse de sua loucura. Ele Se arrepende depressa, Ele é avaro.

            — Mas essa água corre há milhares de anos!

            Assim, naquela noite, eles não insistiam sobre a cascata. É melhor calar certos milagres. E melhor não pensar muito nessas coisas porque então não se compreende mais nada. Pode-se até duvidar de Deus...

            — Veja você... o Deus dos franceses...




            Mas eu conheço bem esses meus amigos bárbaros. Ali estão eles, perturbados em sua fé, desconcertados, prestes à submissão.

             Sonham em ser abastecidos de cevada pela intendência francesa e viver garantidos pelas nossas tropas do Saara. E é verdade que, uma vez submissos, eles ganharão bastante em bens materiais.

            Mas são, todos os três, do sangue de El Mammoun, emir de Trarza. (Não sei se escrevo errado o seu nome.)

            Conheci-o quando era nosso vassalo. Admitido às honras oficiais pelos serviços prestados, enriquecido pelos governadores e respeitado pelas tribos, nada lhe faltava, ao que parecia, das riquezas visíveis. Mas uma noite, sem que nenhum sinal o fizesse prever, massacrou os oficiais que estavam em sua companhia no deserto, apoderou-se dos camelos, dos fuzis e foi se juntar às tribos insubmissas.

            Dá-se o nome de traições a essas súbitas revoltas, a essas fugas, às vezes heroicas e desesperadas, de um chefe que volta ao deserto atrás de uma curta glória que se apagará bem cedo, como um fogo de artifício, em face da coluna volante de Atar. E admiram-se esses gestos de loucura.

            Entretanto, a história de El Mammoun foi a de muitos outros árabes. Ele envelhecia. Quando a gente envelhece, começa a meditar. Assim, uma tarde, descobriu que havia traído o Deus do Islã e que havia sujado a sua mão selando na mão dos cristãos um pacto em que perdia tudo.

            Que lhe importavam, com efeito, a cevada e a paz? Guerreiro decaído que se tomou pastor, ele de repente se lembra de haver habitado um Saara onde cada dobra de areia era rica de ameaças escondidas, onde o acampamento, noite alta, destacava sentinelas em todas as direções, onde as notícias que chegavam dos movimentos dos inimigos faziam bater os corações em volta dos fogos noturnos. Lembra-se de um gosto de alto-mar— um gosto que uma vez provado por um homem, nunca mais é esquecido.

            Hoje, ele erra ingloriamente por uma terra pacificada, vazia de todo o prestígio. Hoje, somente hoje, o Saara é um deserto.

           


Talvez ele venere os oficiais que vai assassinar. Mas primeiro vem o amor de Alá.

            — Boa noite, El Mammoim.

            — Que Deus o proteja!

            Os oficiais enrolam-se em suas cobertas esticadas na areia como numa jangada, sob os astros. E agora as estrelas caminham lentamente — um céu inteiro marcando a hora. Agora, a lua desce atrás das areias, reconduzida ao nada pela Suprema Sabedoria. Os cristãos não tardam a dormir. Ainda alguns minutos, e só as estrelas brilharão. Então, para que as tribos abastardadas sejam restabelecidas em seu passado esplendor, para que retomem suas correrias que dão um sentido luminoso ao deserto, bastará um grito fraco desses cristãos que serão afogados em seu próprio sono... Ainda alguns segundos e do irreparável nascerá um mundo...


            E os belos tenentes adormecidos são massacrados.



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