IV
Estávamos,
ali, em contato com os mouros insubmissos. Eles apareciam às vezes do fundo dos
territórios proibidos, daqueles territórios que transpúnhamos em nossos voos;
arriscavam-se a ir aos fortins de Juby ou Cisneros comprar açúcar ou chá.
Depois mergulhavam outra vez em seus mistérios. Tentávamos, quando eles vinham,
ganhar a confiança de alguns.
Quando
eram chefes influentes, nós os levávamos às vezes a bordo, de acordo com a
direção das linhas, para lhes mostrar o mundo. Tratava-se de extinguir o seu
orgulho. Porque era mais por desprezo que por ódio que eles matavam os
prisioneiros. Quando passavam por nós perto de um fortim, nem sequer nos
injuriavam: viravam a cara e cuspiam. Tiravam esse orgulho da ilusão de sua
força. Quantos dentre eles não me repetiram, tendo posto em pé de guerra um
exército de trezentos fuzis: “Vocês, lá da França, têm sorte de estar a mais de
cem dias de marcha..."
Assim,
nós os levávamos a passear. E assim três deles visitaram aquela França
desconhecida. Eram da raça dos que, tendo uma vez me acompanhado ao Senegal,
choraram ao ver árvores.
Quando
os encontrei novamente em suas tendas, eles falavam com admiração dos music-halls
em que haviam visto mulheres nuas dançando entre flores. Aqueles homens jamais
haviam visto, antes uma árvore, ou uma fonte ou uma rosa. Só através do Alcorão
conheciam a existência de jardins em que murmuram regatos, pois assim é chamado
o Paraíso. Esse paraíso e suas belas cativas é ganho pela morte amarga sobre a
areia, a um tiro de fuzil de um infiel, depois de trinta anos de miséria. Mas
Deus os engana, porque Deus não exige dos franceses, aos quais são concedidos
todos aqueles tesouros, o sacrifício da sede nem da morte. E por isso que eles
estão meditando agora, os velhos chefes. E é por isso que ali, olhando o Saara
que se estende, deserto, em volta de sua tenda, o Saara que até a morte lhes
dará tão magros prazeres, eles se entregam a confidências.
—
Veja você... o Deus dos franceses... Ele é mais generoso para os franceses do
que o Deus dos mouros para os mouros!
Algumas
semanas antes, haviam sido levados a passear na Savoia. O guia os conduziu a
uma grande cascata, uma espécie de coluna de pedras de onde desciam tranças de
águas barulhentas, e lhes disse:
—
Bebam.
E
era água doce. Água! Aqui, quantos dias de marcha para atingir o poço mais
próximo e, quando se encontra esse poço, quantas horas para cavar na areia que
o cobriu, até chegar a uma pobre lama misturada com urina de camelo! Agua! Em
cabo Juby, em Cisneros, em Port-Étienne os meninos mouros não mendigam
dinheiro. Com uma lata de conserva vazia na mão, pedem esmola de água:
—
Me dá um pouquinho de água, me dá...
—
Se você se portar bem...
Água,
água que vale seu peso em ouro; água, cuja menor gota tira da areia a centelha
verde de uma folha... Quando chove em algum lugar, um grande êxodo anima o
Saara. As tribos caminham para aquela erva que crescerá a trezentos quilômetros
de distância. E essa água tão avara, da qual não caiu nem uma gota em
Port-Étienne durante dez anos, essa água roncava ali como se de uma cisterna
arrebentada saltassem todas as provisões do mundo.
—
Vamos embora — disse-lhes o guia.
Mas
eles não se mexiam:
—
Deixe-nos ficar um pouco mais...
Calavam-se
e assistiam graves, mudos, ao desenrolar de um mistério solene. O que saltava
assim, do ventre da montanha, era a vida, era o próprio sangue dos homens. A
água que passava em um só segundo teria ressuscitado caravanas inteiras que,
bêbadas de sede, haviam mergulhado, para sempre, no infinito dos lagos de sal e
das miragens. Deus, ali, se manifestava: não se Lhe podiam virar as costas.
Deus abria suas represas e mostrava sua potência: os três mouros permaneciam
imóveis.
—
Que querem ver mais? Vamos embora...
—
É preciso esperar.
—
Esperar o quê?
—
O rim.
Queriam
esperar a hora em que Deus Se cansasse de sua loucura. Ele Se arrepende depressa,
Ele é avaro.
—
Mas essa água corre há milhares de anos!
Assim,
naquela noite, eles não insistiam sobre a cascata. É melhor calar certos
milagres. E melhor não pensar muito nessas coisas porque então não se
compreende mais nada. Pode-se até duvidar de Deus...
—
Veja você... o Deus dos franceses...
Mas
eu conheço bem esses meus amigos bárbaros. Ali estão eles, perturbados em sua
fé, desconcertados, prestes à submissão.
Sonham em ser abastecidos de cevada pela
intendência francesa e viver garantidos pelas nossas tropas do Saara. E é
verdade que, uma vez submissos, eles ganharão bastante em bens materiais.
Mas
são, todos os três, do sangue de El Mammoun, emir de Trarza. (Não sei se
escrevo errado o seu nome.)
Conheci-o
quando era nosso vassalo. Admitido às honras oficiais pelos serviços prestados,
enriquecido pelos governadores e respeitado pelas tribos, nada lhe faltava, ao
que parecia, das riquezas visíveis. Mas uma noite, sem que nenhum sinal o
fizesse prever, massacrou os oficiais que estavam em sua companhia no deserto,
apoderou-se dos camelos, dos fuzis e foi se juntar às tribos insubmissas.
Dá-se
o nome de traições a essas súbitas revoltas, a essas fugas, às vezes heroicas e
desesperadas, de um chefe que volta ao deserto atrás de uma curta glória que se
apagará bem cedo, como um fogo de artifício, em face da coluna volante de Atar.
E admiram-se esses gestos de loucura.
Entretanto,
a história de El Mammoun foi a de muitos outros árabes. Ele envelhecia. Quando
a gente envelhece, começa a meditar. Assim, uma tarde, descobriu que havia
traído o Deus do Islã e que havia sujado a sua mão selando na mão dos cristãos
um pacto em que perdia tudo.
Que
lhe importavam, com efeito, a cevada e a paz? Guerreiro decaído que se tomou
pastor, ele de repente se lembra de haver habitado um Saara onde cada dobra de
areia era rica de ameaças escondidas, onde o acampamento, noite alta, destacava
sentinelas em todas as direções, onde as notícias que chegavam dos movimentos
dos inimigos faziam bater os corações em volta dos fogos noturnos. Lembra-se de
um gosto de alto-mar— um gosto que uma vez provado por um homem, nunca mais é
esquecido.
Hoje,
ele erra ingloriamente por uma terra pacificada, vazia de todo o prestígio.
Hoje, somente hoje, o Saara é um deserto.
Talvez
ele venere os oficiais que vai assassinar. Mas primeiro vem o amor de Alá.
—
Boa noite, El Mammoim.
—
Que Deus o proteja!
Os
oficiais enrolam-se em suas cobertas esticadas na areia como numa jangada, sob
os astros. E agora as estrelas caminham lentamente — um céu inteiro marcando a
hora. Agora, a lua desce atrás das areias, reconduzida ao nada pela Suprema
Sabedoria. Os cristãos não tardam a dormir. Ainda alguns minutos, e só as
estrelas brilharão. Então, para que as tribos abastardadas sejam restabelecidas
em seu passado esplendor, para que retomem suas correrias que dão um sentido luminoso
ao deserto, bastará um grito fraco desses cristãos que serão afogados em seu
próprio sono... Ainda alguns segundos e do irreparável nascerá um mundo...
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