quarta-feira, 26 de julho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 16

   III
            
Plantada na fronteira dos territórios insubmissos, Port-Etienne não é uma cidade. Existe ali um fortim, um hangar e um barracão de madeira para nossas tripulações. O deserto, em volta, é tão absoluto que, apesar de seus pequenos recursos militares, Port-Etienne é quase invencível. Para atacá-la é preciso transpor um tal cinturão de areia e fogo que os rezzous só podem atingi-la quase sem força, com as provisões de água esgotadas.

            Entretanto, desde os tempos imemoriais, houve sempre, em algum lugar do Norte, um rezzou em marcha para Port-Etienne. Toda vez que vem ao nosso barracão, tomar chá, o capitão-governador mostra a marcha desse rezzou no mapa, como se nos contasse a história de uma bela princesa. Mas esse rezzou não chega nunca, como um rio que fosse sendo bebido aos poucos pela areia do caminho. Por isso, nós o chamamos rezzou fantasma. As granadas e os cartuchos que nos entregam à noite dormem em suas caixas, no chão. O único inimigo que devemos enfrentar é o silêncio, protegidos, antes de tudo, pela nossa tristeza. E Lucas, o chefe do aeroporto, faz rodar dia e noite o seu gramofone que aqui, tão longe da vida, nos fala em uma linguagem meio perdida e provoca uma espécie de melancolia sem objetivo, curiosamente semelhante à sede.




            Naquela noite, jantamos no forte, e o capitão-govemador nos levou para admirar seu jardim. Recebeu da França três caixas cheias de terra verdadeira que viajaram quatro mil quilômetros. Ali crescem três folhinhas verdes, que acariciamos com os dedos como se fossem joias. O capitão diz: “É o meu parque." E quando sopra o vento de areia, que faz secar tudo, leva o seu parque para o subterrâneo.

            Moramos a um quilômetro do forte, e voltamos para casa ao luar, depois da ceia.

            Ao luar, a areia é rósea. Nós aqui somos infinitamente pobres, mas a areia é rósea. De repente o grito de uma sentinela restabelece o patético no mundo. E todo o Saara que se assusta com as nossas sombras e nos interroga, porque um rezzou está em marcha.

            No grito da sentinela soam todas as vozes do deserto. O deserto não é mais uma casa vazia: uma caravana moura eletriza a noite.

            Pensávamos estar em segurança. Contudo, a doença, o desastre, o rezzou, quantas ameaças caminham para nós! O homem é um alvo para esses atiradores ocultos. E a sentinela senegalesa, como um profeta, nos faz lembrar isso.

            Respondemos: "Franceses!” — e passamos diante do anjo negro. E respiramos melhor.

            Aquela vaga ameaça de um rezzou dá uma certa nobreza à nossa vida. Ameaça muito distante ainda, muito afastada, amortecida pela imensidão da areia: mas o mundo já não é o mesmo. O deserto torna- se suntuoso. Um rezzou em marcha em algum lugar, um rezzou que não chegará, faz o deserto divino.




            Onze da noite. Lucas vem do posto de rádio e me diz que o avião de Dacar chegará à meia-noite. Tudo vai bem a bordo. A meia-noite e dez, a bagagem estará baldeada para meu avião e decolarei para o Norte.

            Faço atentamente a barba diante de um espelho rachado. De vez em quando, com a toalha no pescoço, vou até a porta e olho a areia nua: o tempo está bom, mas o vento cai. Volto ao espelho. Fico pensando. Um vento que sopra durante meses... Quando ele cessa, às vezes perturba todo o céu. Apanho meus apetrechos: as lanternas de emergência, que prendo à cintura, o altímetro, os lápis. Vou até Néri, que será meu radiotelegrafista esta noite. Também está se barbeando.

            — Então, como vão as coisas?

            Por enquanto, vão bem. Essa operação preliminar é a menos difidl do voo. Mas ouço um leve ruído: uma lavadeira bate em minha lanterna. Sem que eu saiba por quê, esse pequeno inseto parece dar uma picada em meu coração.

             Saio outra vez e olho: tudo está puro, limpo. Um rochedo destaca-se no horizonte, nítido, como se fosse dia. Sobre o deserto reina um grande silêncio de casa em ordem. Mas uma borboleta verde e duas lavadeiras batem as asas contra minha lanterna. E percebo em mim um sentimento surdo, talvez de alegria, talvez de temor, mas que vem do fundo de mim mesmo, ainda muito obscuro, quase indistinto. Alguém me fala alguma coisa, de muito longe. Será meu instinto? Ando mais: o vento parou. Mas o ar continua fresco. Recebi um aviso. Adivinho, creio adivinhar o que me espera: terei razão? Nem o céu nem a areia me fizeram nenhum sinaL Mas duas lavadeiras me falaram: duas lavadeiras e uma borboleta verde.

            Subo a uma duna e sento-me virado para leste. Se estou com a razão, "aquilo" não deve demorar muito. Que procurariam aqui essas lavadeiras, a centenas de quilômetros dos oásis do interior?

            Leves destroços numa praia provam que um ciclone devastou o mar. Assim, esses insetos mostram que uma tempestade de areia está em marcha; uma tempestade que vem do leste, que varreu as borboletas verdes de suas palmeiras distantes. Seu anúncio chega até mim. E solene, porque é uma prova, solene, porque é uma pesada ameaça, solene, por conter uma tempestade, o vento de leste começa a soprar. Mal sinto seu leve suspiro. Sou o limite extremo que a espuma de sua onda lambe. A vinte metros atrás de mim, ele não teria força para estremecer uma teia de aranha. Seu hálito quente envolveu-me uma vez, uma só, com uma caricia que parecia morta. Mas eu sei: durante os instantes que se seguem, o Saara toma respiração e vai dar seu segundo suspiro. Em menos de três minutos, a biruta do hangar vai se encher. Em menos de dez minutos, a areia turbilhonará no céu. Decolaremos naquele fogo, naquela roda de chamas do deserto.

             Mas não é isso que me comove. O que me enche de uma alegria bárbara é haver compreendido por um leve sinal uma linguagem secreta, é haver farejado a tempestade como um primitivo, em que todo o futuro se anuncia por leves rumores. É ter lido a cólera do deserto no fremir das asas de uma lavadeira.



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