quinta-feira, 27 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 23


            Antoine crescera com uma visão totalmente romântica das mulheres. Para ele, elas eram criaturas virtuosas, cultas e meigas como a mãe, as irmãs e primas provincianas. Dizia muitas vezes que teria se sentido muito feliz se vivesse na época do Renascimento, quando o amor cortês correspondia a suas tentativas de sedução de adolescente lânguido. Várias mocinhas virginais foram homenageadas em alexandrinos escritos numa caligrafia caprichosa. Entre elas se encontrava Odette de Sinéty, dois anos mais velha que Antoine e irmã de um colega de classe em Le Mans.

            No primeiro romance de Saint-Exupéry, Correio Sul, ela empresta algumas de suas características facilmente reconhecíveis ao personagem compósito de Geneviève, a amante casada do piloto Jacques Bernis. No livro, ela aparece tal como Antoine a conheceu, no castelo paterno de Sillé-le-Philippe, com os traços de uma jovem vaidosa de 15 anos, de olhos azuis, apaixonada pela poesia romântica. No retrato romanceado da Geneviève criada por Saint-Exupéry, também podem ser encontrados traços de Gabrielle, sua irmã mais moça e predileta, primeiramente como criança em Saint-Maurice e depois como mãe de família. Em 1923 Gabrielle casou-se com Pierre de Giraud d’Agay, antigo colega do irmão. O primeiro filho deles, Melchior, nasceu em Saint-Maurice, porém morreu um ano mais tarde no castelo d’Agay, perto de Saint-Raphaél. Um dos principais temas de Correio Sul é a angústia de uma mãe com a morte de seu filho pequeno. Essa angústia também se reflete numa carta a Marie, em 1924, na qual ele se refere à morte de um bebê de uma amiga próxima, descrevendo o acontecimento como “uma coisa horrível”.

            Embora o personagem de Geneviève tenha diversos modelos, a principal fonte de inspiração da heroína adulta e de seus sentimentos era facilmente identificável. Correio Sul foi concluído em 1929, quando Antoine emergiu de uma experiência emocionalmente agitada e insatisfatória. A mulher que originou a desastrosa aventura de Jacques Bernis era na verdade a primeira namorada de Saint- Exupéry, Louise de Vilmorin, poeta e romancista.

            Antoine tinha 23 anos quando começou a namorar a bela e elegante Louise, que se tornou a causa de diversos anos de desgosto amoroso. O romance representou uma espécie de terapia. Como exercício literário, era uma combinação mal equilibrada de emoções e aventuras destinadas ao fracasso, porém foi a única ocasião em que Saint-Exupéry se permitiu expor sua vida sentimental num romance publicado. É possível que tenha se arrependido de ter sido tão franco, pois seus amigos puderam decifrar facilmente a intriga mal dissimulada que transformava Bernis num herói enquanto voava e num idiota romântico em terra firme.

            A apreciação dos talentos de Saint-Exupéry por Louise de Vilmorin também não correspondia às suas expectativas. Ela se mostrou também surpreendentemente insensível às provas materiais da paixão sentida por ele. Vendeu sem hesitar o anel de safiras presenteado por Antoine, que era uma jóia de família, para pagar as dívidas de outro namorado. Tratou levianamente sua amizade com Saint- Exupéry num artigo que escreveu para a crônica de mexericos mundanos de uma revista feminina, Marie-Claire, trinta anos mais tarde. Também se desfez do presente mais importante, o manuscrito original de Correio Sul, publicado seis anos após a ruptura do namoro, num gesto estranhamente leviano da parte de uma mulher que também era escritora.

            Saint-Exupéry pouco aprendeu com essa sua tentativa de auto- análise. O que separava Bernis e Geneviève, exatamente como o que separava Antoine de Louise, era o contraste entre seus estilos de vida. Bernis-Saint-Exupéry era um homem que só poderia se casar com uma mulher totalmente submissa. Bernis tinha necessidade de aventura, e Geneviève, de segurança. Ele voava para a imensidão do deserto, enquanto ela sonhava apenas com as distrações de uma vida mundana.

            Advertido por suas reflexões sobre uma união tão infrutífera, Saint-Exupéry deveria ter escolhido uma companheira disposta a tolerar suas ambições egoístas e longas ausências. No entanto, muito do caráter caprichoso e independente de Louise será encontrado na personalidade de Consuelo, a esposa sul-americana de Antoine.

            Louise de Vilmorin tinha uma grande imaginação criadora, era divertida, inconstante, frívola, sexualmente liberada e muito egocêntrica. Sua alegria e sua espontaneidade atraíam uma multidão de admiradores. Em certa medida, essa descrição também pode ser aplicada a Consuelo, que possuía um temperamento essencialmente artístico e era tão excêntrica quanto o próprio Saint-Exupéry.

            Louise e Consuelo são as únicas exceções femininas do mundo literário predominantemente viril criado por Saint-Exupéry, e por essa razão podemos supor que foram os dois únicos amores de sua vida. A Geneviève-Louise era a heroína adulta de sua primeira obra, enquanto Consuelo tornou-se a rosa em O Pequeno Príncipe, último livro a ser publicado antes da morte do autor.

            Entre seu namoro com Saint-Exupéry e seu relacionamento com André Malraux no fim da vida, a lista de pretendentes de Louise de Vilmorin inclui de Ali Khan a Orson Welles, tendo ela se casado e divorciado duas vezes. Segundo a descrição de sua cunhada, An- drée de Vilmorin, Antoine era apenas um dos múltiplos partidos que Louise tinha a sua disposição.

            “Ele estava sinceramente apaixonado por ela, porém ela era uma grande sedutora e não parava de mudar de namorado”, diz Andrée. “Louise apenas gostava dele. Um namorado durava uma ou duas semanas, depois ela partia para outro. Conseguia ser ao mesmo tempo a pior e a melhor das mulheres. Também era generosa e divertida e, acima de tudo, sabia fazer rir.”

            Os primeiros encontros com Louise remontam ao período da escola Bossuet, antes do final da Primeira Guerra Mundial. A partir de maio de 1919, Louise passou a morar em Saint-Jean-de-Luz para se tratar de uma artrite tuberculosa no quadril, que a obrigou a permanecer acamada durante três anos. Seus irmãos e muitos dos seus amigos internos em Bossuet visitavam-na em Saint-Jean durante as férias. Ao fazer companhia à garota, que na época tinha 17 anos, Antoine ficou cativado pelo seu charme.

            A partir de seu regresso a Paris, em 1922, ela passou a integrar o ambiente social freqüentado por Antoine e numerosos ex-alunos de Bossuet. Os Vilmorin possuíam duas residências: um castelo nos subúrbios de Paris, em Verrières-le-Buisson, e uma mansão na rue de la Chaise, em Paris. Com seus quatro irmãos e uma irmã, ela desfrutava do prestígio conferido pela influência de uma família cujas origens remontavam ao século XV e da fortuna cuja base era uma indústria de grãos extremamente próspera, que era sua fonte de recursos.

            O castelo e a mansão tinham se transformado oficiosamente em agências matrimoniais para partidos ricos e nobres, particularmente devido à mãe de Louise, bela viúva que possuía uma corte assídua de admiradores. Adorada e mimada pelos irmãos, Louise atraía uma multidão de pretendentes. Sua imaginação e curiosidade tinham desabrochado durante sua longa doença, que a deixou com um defeito nos quadris e uma leve claudicação não desprovida de sedução.

            Com exceção de seu belo nome, Antoine tinha pouco a oferecer a Louise. Seu porvir material era de dar dó. A pequena herança do avô Fernand foi rapidamente gasta e alguns observadores bem-intencionados da família Vilmorin passaram a considerá-lo um caçador de dotes. Sua negligência financeira era ainda mais preocupante porque Louise, extremamente gastadora, dilapidava todo o dinheiro disponível em roupas caras e em presentes para seus irmãos ou admiradores.

            O interesse comum pela literatura explicava sua grande atração intelectual, embora só Malraux tenha conseguido persuadi-la de que valia a pena publicar sua obra. Também havia entre Antoine e Louise uma afinidade musical não mencionada em Correio Sul. Ainda que seu relacionamento fosse visto com maus olhos, eram freqüentemen- te chamados para cantar duetos clássicos em que suas vozes de soprano e barítono brilhavam. Mais tarde, quando Antoine se recuperou de sua decepção sentimental, eles retomariam essa prática.

            Ao longo dos anos, suas impressões sobre esse período de namoro assumirão formas divergentes. Saint-Exupéry evoca em Correio Sul as recordações de uma aventura sem alegria nem esperança, que termina com um acidente de aviação no deserto. Toda a alegria de Louise desapareceu na história, baseada na repugnância manifestada por Geneviève de abandonar o conforto e as vantagens materiais de seu ambiente. A única coisa que permanece intacta é o choque das emoções essenciais. Bernis, à semelhança de Saint-Exupéry, apaixona-se loucamente por uma mulher que não joga o mesmo jogo que ele.

            Os últimos dias de sua ligação com Geneviève assumiram a forma de uma lúgubre excursão de carro, durante a qual, sob forte chuva, Bernis tenta ajudar sua amante doente e tem de enfrentar um mundo hostil, no qual os hotéis batem suas portas nas caras dos viajantes atrasados. A alegoria, a análise pessoal, a ficção e a realidade finalmente se encontram. Na vida real, o relacionamento acaba da mesma forma que em Correio Sul: Geneviève-Louise está apegada demais à sua gaiola dourada para fugir com um aventureiro, e assim ela o abandona.

            Contrapondo-se ao fatalismo de Saint-Exupéry, a versão apresentada por Louise de Vilmorin na revista Marie-Claire faz sua aventura parecer um idílio frívolo e pueril. Ela descreve sua relação com Antoine como “namoro risível”; segundo o artigo, seu momento culminante foi uma viagem com acompanhante, em agosto, para o Jura suíço. Antoine, que terminara seu serviço militar em Le Bourget dois meses antes, foi obrigado a vender sua máquina fotográfica para pagar as passagens de trem. Eles fizeram longos passeios e colheram ramos de flores para a festa de Saint-Louis. Numa pequena estação de trem, beijaram-se como dois amantes que se despedem, “conscientes de estar trapaceando”, acrescenta ela. O artigo também menciona as preocupações de Antoine com sua incipiente calvície, aos 23 anos. Louise conta que os dois estavam preocupados com os cabelos e que deram uma passada imprevista por Genebra especialmente para conseguir um “elixir capilar”.

            Dois meses mais tarde, ela partia sem se despedir para Saint- Jean-de-Luz, e nunca respondeu a suas cartas desesperadas.

            Entre o outono de 1923, quando abandonou Antoine, e o momento em que escreveu seu artigo, em outubro de 1952, Louise de Vilmorin teve uma vida conjugal tumultuada, com diferentes maridos em Las Vegas e Budapeste, porém não se esqueceu de mencionar uma das razões fundamentais que tornavam Antoine um partido impossível. Na Suíça, seu ardente pretendente não parava de falar da aviação e dos “momentos terríveis e sublimes passados entre céu e terra”, enquanto ela desejava apenas o conforto de uma lareira, deitada num sofá estofado perto do fogo.

            O mórbido prazer de Saint-Exupéry, enquanto descrevia suas aventuras de arrepiar os cabelos, deve ter deixado Louise cética quanto a sua promessa de renunciar à aviação. No entanto, essa era a condição ineludível para um eventual casamento. Após o acidente de Antoine em Le Bourget, em 1923, a família Vilmorin declarou que ele teria de optar entre Louise e uma carreira na aeronáutica. Depois desse ultimato, ele optou por permanecer em terra firme, mas logo perderia seu amor e seus aviões.

            A aventura e a liberdade foram substituídas pelo tédio do tempo passado no escritório parisiense da fábrica de telhas onde trabalhava. Antes de abandonar a aviação, a vantagem de Saint-Exupéry sobre seus rivais consistia na aura que o risco lhe dava. Ele a trocou por uma rotina asfixiante, esperando assim salvar seu namoro em perigo. Embora Louise provavelmente amasse mais do que gostaria de admitir esse aristocrata imprudente e sem nenhum tostão, de repente sentiu-se embaraçada pela devoção de um medíocre funcionário administrativo e partiu em busca de outro sedutor.

            Em 1929, seis anos mais tarde, Antoine quis mostrar a Louise o primeiro esboço de Correio Sul. Como sua amiga estava ausente, ele lhe escreveu lamentando que o tivesse considerado “uma criança fraca” durante o namoro, e manifestou seu desespero por ter apresentado uma imagem de moço tímido e melancólico. Esse era o eco de outra carta na qual confessava sem pudor: “Eu era uma criança, você era uma mulher... Eu era um garoto deslumbrado. Isso não podia ser suficiente para você.”

            Anos após a ruptura, sua correspondência ainda manifestava uma persistente inibição diante da segurança e da arrogância de Louise. Sobre Correio Sul, ele confessava, quase se desculpando: “Queria escrevê-lo um pouco para você e gostaria de lhe falar dele. E talvez pudesse dedicá-lo a você, se me sugerisse uma maneira de fazê-lo...”.


            Seu amor parecia intacto ao acrescentar: “Quanto a mim, você podería me pedir tudo, sabe muito bem disso. Não importa que sacrifício, não importa quando... E sempre lhe perdoarei tudo, mesmo que você me magoe vez por outra.”

              Louise De Vilmorin, (Loulou) (1902-1969) 

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