domingo, 23 de julho de 2017

PILOTO DE GUERRA - 15

XIV

            Envelheci tanto, que deixei tudo paia trás. Olho a grande lâmina espelhada da minha vitrine. Ali embaixo, estão homens. Infusórios numa lâmina de microscópio. Podemos nos interessar pelos dramas de família de infusórios?

            Não fosse por essa dor no coração que me parece viva, afundaria nos meus vagos devaneios, como um tirano envelhecido. Há dez minutos, eu estava inventando essa história de figurante. Era falso de vomitar. Quando vi os caças, pensei em temos suspiros? Pensei em vespas pontudas. Isso sim. Minúsculas, essas porcarias.

            Pude inventar sem desgosto essa imagem de vestido de cauda! Não pensei num vestido de cauda, pela simples razão de que jamais vi minha própria trilha! Desta carlinga onde estou encaixotado como um cachimbo no estojo, me é impossível observar qualquer coisa atrás de mim. Eu olho para trás pelos olhos de meu artilheiro. E ainda assim! Se os laringofones não estiverem quebrados! E meu artilheiro nunca me disse: “Aí estão nossos pretendentes apaixonados, que seguem a cauda de nosso vestido..

            Não há aí mais do que ceticismo e malabarismo. Decerto, eu gostaria de crer, gostaria de lutar, gostaria de vencer. Porém, por mais que se finja crer, lutar e vencer incendiando suas próprias cidades, é muito difícil tirar alguma exaltação disso.

            É difícil existir. O homem é apenas um nó de relações e eis que meus laços não valem mais grande coisa.




            O que há em mim que não funciona? Qual é o segredo das trocas? Como, noutras circunstâncias, o que me é agora abstrato e longínquo, consegue me transtornar? Como, de uma palavra, um gesto, conseguem fazer infinitas voltas num destino? Como, se eu fosse Pasteur, o jogo dos próprios infusórios poderia me tomar patético a ponto de uma lâmina de microscópio me parecer um território tão vasto quanto a floresta virgem e me permitir viver, debruçado sobre ela, a mais alta forma de aventura?

            Como esse ponto negro que é uma casa de homens, lá embaixo...

            E me vem uma recordação.




            Quando eu era menino... Remonto longe na minha infância. A infância, esse grande território de onde cada um veio! De onde sou? Sou da minha infância. Sou da minha infância como de um território...I Então, quando eu era menino, vivi uma noite uma experiência divertida.

            Eu tinha cinco ou seis anos. Eram oito horas. Oito horas, a hora em que as crianças devem dormir. Sobretudo no inverno, pois já é noite. No entanto, tinham me esquecido.

            E havia no térreo dessa grande casa de campo um vestíbulo que me parecia imenso e para o qual dava o cômodo quente onde nós, as crianças, jantávamos. Eu sempre tivera receio daquele vestíbulo por causa, talvez, do abajur fraco que, perto do centro, mal o tirava de sua escuridão, parecia mais um sinal do que um abajur por causa dos lambris, que estalavam no silêncio, e também do frio. Pois ali se desembocava de cômodos luminosos e quentes, como se fosse numa caverna.

            Mas naquela noite, vendo-me esquecido, cedi ao demônio do mal, ergui-me sobre a ponta dos pés até a maçaneta da porta, empurrei-a devagarinho no vestíbulo e fui, fraudulento, explorar o mundo.

            Os estalos dos lambris, entretanto, pareceram-me um aviso da cólera celeste. Via vagamente, na penumbra, os grandes painéis reprovadores. Não ousando prosseguir, subi como deu num aparador e, com as costas apoiadas na parede, fiquei ali, com as pernas pendentes, o coração batendo, como fazem todos os náufragos em seu recife em pleno mar.

            Foi então que se abriu a porta de uma sala e, dois tios, os quais me inspiravam um terror danado, fechando aquela porta atrás de si, no burburinho e sob as luzes, começaram a perambular no vestíbulo.

            Eu tremia de ser descoberto. Um deles, Hubert, era para mim a imagem da severidade. Um delegado da justiça divina. Aquele homem, que nunca dera um peteleco numa criança, me repetia, franzindo as sobrancelhas terríveis, por ocasião de cada um de meus crimes: “Da próxima vez que eu for à América, vou trazer uma máquina de chicotear. Aperfeiçoaram tudo na América. É por isso que as crianças, lá, são tão comportadas. E é um grande sossego para os pais...“.

            Eu não gosto da América.

             Eles perambulavam, sem me ver, de um lado para outro, naquele vestíbulo glacial e interminável. Eu os seguia com os olhos e os ouvidos, prendendo a respiração, tonto. "Na presente época", diziam eles... E se afastavam com seu segredo de gente grande e eu pensava comigo: "A presente época”. Depois, eles voltavam como uma maré que tivesse, de novo, arrastado para a minha direção os seus tesouros indecifráveis. "É insensato, dizia um ao outro, é efetivamente insensato." Eu recolhia a frase como um objeto extraordinário. E repetia lentamente para testar o poder daquelas palavras na minha consciência de cinco anos: “É insensato, efetivamente insensato...”.

            Então, a maré afastava os tios. A maré os trazia de novo. Aquele fenômeno, que me abria perspectivas ainda mal esclarecidas sobre a vida, reproduzia-se com uma regularidade estelar, como um fenômeno de gravitação. Eu estava bloqueado no meu aparador, para a eternidade, ouvinte clandestino de um concilio solene, durante o qual meus dois tios, que sabiam tudo, colaboravam para a criação do mundo. A casa podia durar ainda mil anos, os dois tios, durante mil anos, oscilando ao longo do vestíbulo com a lentidão de um pêndulo de relógio, continuariam a dar-lhe o gosto de eternidade.




            Este ponto que estou olhando é sem dúvida uma casa de homens, a dez quilômetros abaixo de mim. E eu nada recebo dela. No entanto, trata-se, talvez, de uma grande casa de campo, onde dois tios dão cem passos e constroem lentamente, numa consciência de criança, alguma coisa tão fabulosa quanto a imensidão dos mares.

            Descubro, dos meus dez mil metros, um território da envergadura de uma província; todavia, tudo encolheu até sufocar-me. Disponho aqui de menos espaço do que disporia nesse grão escuro.

            Perdi o senso de vastidão. Estou cego à vastidão. Mas é como se tivesse sede dela. E me parece tocar aqui um denominador comum a todas as aspirações de todos os homens.

            Quando um acaso desperta o amor, tudo se ordena no homem segundo esse amor, e o amor lhe traz o senso de vastidão. Quando eu morava no Saara, se árabes, surgindo à noite em volta de nossas fogueiras, advertiam-nos sobre ameaças longínquas, o deserto se enlaçava e ganhava um sentido. Aqueles mensageiros tinham construído sua vastidão. Assim é para o simples cheiro de armário antigo, quando desperta e encadeia lembranças. Patético é o senso de vastidão.




            Mas eu compreendo também que nada do que diz respeito ao homem se conta, nem se mede. A verdadeira vastidão não é para o olhar, só é concedida ao espírito. Valha o que vale a linguagem, pois é a linguagem que enlaça as coisas.

            E me parece doravante entrever melhor o que é uma civilização. Uma civilização é uma herança de crenças, de costumes e de conhecimentos lentamente adquiridos durante séculos, difíceis às vezes de justificar pela lógica, mas que se justificam por si mesmos, como os caminhos, se conduzirem a algum lugar, pois abrem ao homem sua vastidão interior.

            Uma má literatura nos falou da necessidade de evasão. Claro, nós fugimos em viagem em busca da vastidão. Mas a vastidão não se encontra. Ela se funda. E a evasão nunca levou alugar algum.

            Quando o homem precisa, para sentir-se homem, correr em competições, cantar em coro ou fazer guerra, são já os laços que ele se impõe a fim de ligar-se a outrem e ao mundo. Mas, coitados! Se uma civilização é forte, ela completa o homem, mesmo que ele esteja ali imóvel.

            Numa certa cidadezinha silenciosa, sob a melancolia de um dia de chuva, vejo uma enferma enclausurada que medita junto à sua janela. Quem é ela? Que foi feito dela? Julgarei a civilização da pequena cidade pela densidade dessa presença. Que valemos, uma vez imóveis?

            No dominicano que reza há uma presença densa. Esse homem nunca é tão homem como quando está prostemado e imóvel. Pasteur retendo a respiração sobre seu microscópio é uma presença densa. Pasteur nunca é tão homem como quando observa. Então, ele progride. Então, ele se apressa. Então avança com passo de gigante, ainda que imóvel, e descobre a vastidão. Assim Cézanne, imóvel e mudo, diante de seu esboço, é de uma presença inestimável. Ele nunca é tão homem como quando se cala, experimenta e avalia. Então, sua tela se toma mais vasta do que o mar.




            Vastidão concedida pela casa da infância, vastidão concedida por meu quarto em Orconte, vastidão concedida a

             Pasteur pelo campo de seu microscópio, vastidão aberta pelo poema, tantos bens frágeis e maravilhosos que somente uma civilização distribui, pois a vastidão é para o espirito não para os olhos, e não há vastidão sem linguagem.




            Mas como reanimar o sentido da minha linguagem na hora em que tudo se confunde? Quando as árvores do parque são ao mesmo tempo navio para as gerações de uma família, e simples entrave que incomoda o atirador. Quando o compressor dos bombardeiros, que desaba pesadamente sobre as cidades, fez soçobrar um povo inteiro ao longo das estradas, como um suco escuro. Quando a França mostra a desordem sórdida de um formigueiro estripado. Quando se luta, não contra um adversário palpável, mas contra os pedais que congelam, manetes que emperram, parafusos que saltam...

            — O senhor pode descer?

            Eu posso descer. Descerei. Irei a Arras a baixa altitude. Tenho mil anos de civilização atrás de mim para me ajudar. Mas eles não me ajudam. Não é hora, sem dúvida, de recompensas.

• • •




            A oitocentos quilômetros por hora e a três mil quinhentas e trinta rotações por minuto, eu perco a altitude.

            Deixei, ao virar, um sol polar exageradamente vermelho. À minha frente, a cinco ou seis quilômetros abaixo de mim, vejo uma banquisa de nuvens de fronte retilínea. Toda uma parte

             da França está enterrada sob sua sombra. Arras está sob sua sombra. Imagino que abaixo de minha banquisa tudo esteja enegrecido. Trata-se do bojo de uma grande sopeira onde borbulha a guerra. Engarrafamento de estradas, incêndios, materiais dispersos, vilas esmagadas, bagunça, imensa bagunça... Eles se agitam no absurdo, sob sua nuvem, como lesmas sob pedras.

            Essa derrocada parece uma ruína. Precisaremos patinar na lama. Voltamos a uma espécie de barbárie degradante. Tudo se decompõe lá embaixo! Somos semelhantes a ricos viajantes que, tendo vivido muito tempo em países de coral e palmeiras, voltam, uma vez arruinados, a compartilhar, na mediocridade natal, pratos gordurosos de uma família avarenta, a acidez das querelas intestinas, os inspetores, a má consciência das preocupações financeiras, as falsas esperanças, os despejos humilhantes, as arrogâncias do pensioneiro, a miséria e a morte fétida no hospital. A morte aqui, ao menos, é limpa! Uma morte de gelo e de fogo. De sol, de céu, de gelo e de fogo. Mas, lá embaixo, essa digestão do barro!


           

* “Je suis de mon enfance comme d'un pays” é uma das frases mais célebres de Saint-Exupéry, sobretudo porque tem uma ampla relação com O pequeno príncipe. De fato, Saint-Ex faz da infância uma espécie de “território”, uma região que, justamente nesta obra, ele visita ou na qual se refugia. A palavra “país" estabeleceria, em português, uma “fronteira” específica a tal domínio. Até poderíamos dizer “Sou da minha infância como de um domínio”, mas entendo que se afaste excessivamente do original Fiz a mesma escolha no Pequeno quando ele diz "pays des larmes'. Mas não é uma tradução única neste caso, poderia haver outras, (n. t.)


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