terça-feira, 11 de julho de 2017

PILOTO DE GUERRA - 13

             XII

            Exerço corretamente meu ofício. Não impede que eu seja um tripulante em derrota. Estou embebido na derrota. Transpira- se a derrota por todo lado, haja vista minhas mãos.

            Os manetes de potência estão congelados. Estou condenado a manobrar em potência máxima. E eis que essas duas sucatas me trazem problemas inextricáveis.

            No avião que estou pilotando, o aumento do passo de hélice é limitado, baixo demais. Eu não posso pretender, picando em regime pleno, evitar uma velocidade de aproximadamente oitocentos quilômetros por hora e o aumento de rotação de meus motores. Todavia, o aumento de rotação de um motor traz riscos de falha.

            A rigor, me seria possível cortar os contatos. Mas eu me infligiria assim uma pane definitiva. Essa pane levaria ao fracasso da missão e à eventual perda do avião. Nem todos os terrenos favorecem a aterrissagem de um aparelho que toca o solo a cento e oitenta quilômetros por hora.

            É então essencial que eu destrave os manetes. Em consequência de um primeiro esforço, vou ao limite do manete esquerdo. Mas o da direita continua resistindo.

            Seria possível agora efetuar minha descida numa velocidade de voo tolerável, se eu reduzisse ao mínimo o motor sobre o qual já pude agir, o esquerdo. Mas se eu reduzir o motor esquerdo, precisarei compensar a potência assimétrica do motor direito — a qual tenderá, obviamente, a fazer girar o avião para a esquerda. Terei de resistir a essa tendência. No entanto, os pedais, dos quais dependem essas manobras, também estão completamente congelados. Fico impossibilitado, assim, de compensar. Se eu reduzir o motor esquerdo, caio em espiraL

            O único recurso será arriscar ultrapassar, durante a descida, o limite de regime teórico de ruptura. Três mil e quinhentos giros: risco de falha catastrófica.

            Tudo isso é absurdo. Nada está ajustado. Nosso mundo é feito de engrenagens que não se ajustam umas às outras. Não são os materiais que estão em questão, mas o Relojoeiro. Falta o Relojoeiro.

            Depois de nove meses de guerra, ainda não conseguimos fazer com que as indústrias adaptassem metralhadoras e comandos ao clima em grande altitude. E não é com a incúria dos homens que nos deparamos. Os homens, na maioria, são honestos e conscienciosos. Sua inércia, quase sempre, é um efeito, e não uma causa, de sua ineficácia.

            A ineficácia pesa sobre nós todos como uma fatalidade. Pesa sobre soldados da infantaria armados de baionetas diante de tanques. Pesa sobre os tripulantes que lutam, um contra dez. Pesa até mesmo sobre aqueles que deveriam ter por missão modificar as metralhadoras e os comandos.

             Vivemos no ventre cego de uma administração. Uma administração é uma máquina. Quanto mais uma administração é aperfeiçoada, mais elimina a arbitrariedade humana. Numa administração perfeita, onde o homem desempenha seu papel de engrenagem, a preguiça, a desonestidade, a injustiça não têm mais oportunidade de alastrar-se.

            Mas, assim como a máquina é construída para administrar uma sucessão de movimentos previstos de uma só vez, a administração também não cria mais. Ela gere. Aplica tal sanção para tal falta, tal solução a tal problema. Uma administração não é concebida para resolver problemas novos. Se, numa máquina de chapear, introduzirem-se peças de madeira, não vão sair móveis. Seria preciso, a fim de adaptar a máquina, que um homem dispusesse do direito de mexer nela. Mas numa administração, concebida para prevenir os inconvenientes da arbitrariedade humana, as engrenagens recusam a intervenção do homem. Recusam o Relojoeiro.




            Faço parte do Grupo 2/33 desde novembro. Meus camaradas, assim que cheguei, avisaram:

            — Você vai passear na Alemanha sem metralhadoras nem comandos.

            Depois, para me consolar:

            — Fique tranquilo. Você não perde nada. Os caças abatem sempre antes de serem vistos.

            Em maio, seis meses mais tarde, as metralhadoras e os comandos ainda congelam.

             Penso numa fórmula tão velha quanto meu país: “Na França, quando tudo parece perdido, um milagre salva o país". Entendi por quê. Aconteceu às vezes de um desastre, tendo destrambelhado a bela máquina administrativa, e tendo esta se mostrando irreparável, substituírem-na, por falta de melhor, por simples homens. E os homens salvaram tudo.

            Quando um torpedo tiver reduzido a cinzas o Ministério da Aeronáutica, convocarão, com urgência, um cabo qualquer, e lhe dirão:

            — Você está encarregado de descongelar os comandos. Você tem carta branca. Vire-se. Mas se em quinze dias eles ainda gelarem, você será preso.

            Os comandos, talvez, então, descongelem.




            Conheço uns cem exemplos desse vício. As comissões de requisição de um departamento do norte, por exemplo, requisitaram novilhas prenhes e transformaram assim os abatedouros em cemitério de fetos. Nenhuma engrenagem da máquina, nenhum coronel do serviço de recrutamento estava qualificado para agir de outro modo senão como engrenagem. Eles obedeciam todos a uma outra engrenagem, como num relógio. Qualquer revolta era inútil É por isso que essa máquina, uma vez que tenha começado a destrambelhar, foi alegremente empregada em abater novilhas prenhes. Talvez tenha sido um mal menor. Ela poderia, se mais gravemente destrambelhada, começar a abater coronéis.

            Eu me sinto desencorajado até o pescoço por essa degradação universal Mas como me parece inútil dar um

             tranco num dos meus motores, exerço contra o manete esquerdo um novo peso. Em meu desgosto, exagero o esforço. Depois, abandono. Esse esforço me custou uma nova pontada no coração. Decididamente, o homem não foi feito para o culto físico a dez mil metros de altitude. Essa pontada é uma dor em surdina, uma espécie de consciência local estranhamente despertada na escuridão dos órgãos.

            Os motores vão estourar se quiserem.

            Pouco me importa. Esforço-me para respirar. Parece-me que não respiraria mais se me distraísse. Eu me lembro dos foles de outrora, com a ajuda dos quais a gente reanimava o fogo. Reanimo meu fogo. Eu queria muito convencê-lo a "pegar".

            O que estraguei de irreparável? A dez mil metros, um esforço físico um pouco brusco pode acarretar uma ruptura dos músculos do coração. É muito frágil um coração. Precisa servir muito tempo. É absurdo comprometê-lo com trabalhos tão grosseiros. É como se queimássemos diamantes para cozinhar uma maçã.


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