XI
Para
quê? À sua volta fervilhava o inútil rebuliço da cidade. Sabia perfeitamente que
nunca mais sairia daquela confusão. Subia a passos lentos, misturando-se à massa
indiferente dos transeuntes. Pensava: “E como se eu não estivesse aqui."
Daqui a pouco partiria outra vez: tinha a certeza. Tinha a certeza também de
que seu trabalho o cercava de laços tão materiais que ele voltaria a ser uma
realidade. Sabia também que, na vida cotidiana, o menor passo adquire a
importância de um feito e o desastre moral perde um pouco de sentido. Até as
brincadeiras das suas escalas de piloto conservavam seu sabor. Era estranho e,
no entanto, certo. Ele, porém, não se interessava por si próprio.
Como
passava perto de Notre-Dame, entrou, surpreendendo-se com a multidão compacta,
e refugiou-se junto a uma coluna. “Por que estava ali?”, perguntou-se. Viera,
sobretudo, porque nesse lugar os minutos elevam a alguma coisa; fora, já não
levam a nada. E isso: "Fora, os minutos já não conduzem a nada."
Tinha também necessidade de reconhecer-se e oferecia-se à fé, como a qualquer
outra disciplina do pensamento. Dizia consigo: “Se encontrar uma fórmula para
exprimir-me e reconhecer-me, esta, para mim, será a verdadeira." Depois
acrescentou com desinteresse: “Entretanto, nem assim eu acreditaria."
Sentiu
de súbito que se tratava, mais uma vez, de um cruzeiro e que toda a sua vida se
perdera, assim, tentando fugir. O começo do sermão inquietou-o como um sinal de
partida.
—
O reino dos céus — começou o pregador —, o reino dos céus...
Apoiou
as mãos no largo encosto do púlpito... inclinou-se para a multidão. Multidão
amontoada e que tudo absorve. Nutrir. As imagens surgiam-lhe com um
extraordinário caráter de evidência. Pensava nos peixes presos na rede e do
nada, acrescentou:
—
Quando o pescador da Galileia...
Empregou
apenas palavras que arrastavam um cortejo de reminiscências, que persistiam.
Parecia-lhe exercer sobre a multidão uma influência poderosa, aumentando
gradativamente seu ímpeto como as passadas do corredor. "Se soubésseis...
se soubésseis quanto amor..." Interrompeu-se, ofegando um pouco: seus
sentimentos eram plenos demais para exprimir-se. Compreendeu que as menores palavras,
as mais usadas, pareciam-lhe carregadas de um sentido intenso e não mais discernia
as palavras convenientes. A luz dos círios empalideceu-lhe o rosto.
Endireitou-se, com as mãos apoiadas, a cabeça erguida, ereto. Quando ele
relaxou, o povo agitou-se um pouco, como o oceano.
Voltaram-lhe
depois as palavras e ele falou. Falava com uma surpreendente segurança. Tinha a
alegria do estivador consciente de sua força. Enquanto concluía uma frase,
outras ideias formavam-se independentes dele, como fardos que alguém lhe
atirasse, e sentia de antemão dominá-lo, confusamente, a imagem em que se
apoiava, a fórmula que o levaria ao povo.
Bemis
agora ouvia a conclusão:
—
Sou a fonte de toda vida. Sou a maré que penetra em vós, que vos anima e se
vai. Sou o mal que penetra em vós, que vos dilacera e se vai. Sou o amor que
penetra em vós e subsiste pela eternidade.
"E
vindes opor-me Marcos e o quarto evangelho. E vindes falar-me de interpolações.
E vindes lançar-me à face vossa miserável lógica humana, quando eu sou aquele
que está além, quando é dessa lógica que vos liberto!
“O
prisioneiros, compreendei-me! Liberto-vos de vossa ciência, de vossas fórmulas,
de vossas leis, dessa escravidão do espírito, desse determinismo mais duro que
a fatalidade. Sou o defeito na armadura. Sou a janela na prisão. Sou o erro no
cálculo: sou a vida.
"Determinastes
a marcha das estrelas, ó geração dos laboratórios, e não mais as conheceis.
Tudo isso não passa de fórmulas da vossa ciência, mas não é luz: saístes mais ignorantes
que uma criança. Descobristes até as leis que regem o amor humano, mas mesmo
este escapa às vossas interpretações: sois mais ignorantes que uma donzela. Ah!
Vinde a mim. Eu vos restituo a doçura e a luz do amor. Não vos subjugo:
salvo-vos. Eu vos liberto do primeiro homem que calculou a queda de um fruto e
vos encerrou nesta escravidão. Meu reino é a única solução; que seria de vós
fora do meu reino?
“Que
seria de vós fora do meu reino, fora deste navio onde o fluxo das horas adquire
seu sentido pleno, como o fluxo do mar na proa luzidia? O fluxo do mar que,
embora silencioso, desgasta as ilhas, o fluxo do mar...
“Vinde
a mim, vós, para quem a ação, que a nada conduz, foi amarga.
“Vinde
a mim, vós, para quem o pensamento, que só conduz às leis, foi amargo.”
Abriu
os braços:
—
Pois eu sou o que acolhe. Suportei sobre os ombros os pecados do mundo. Carreguei
seu mal. Carreguei vossas amarguras de animais que perderam seus filhotes,
vossas doenças incuráveis e aliviei-vos. Mas vosso mal, ó meu povo de hoje, é
uma miséria bem maior e mais irreparável e, não obstante, eu a carregarei como
as demais. Arcarei com as mais pesadas cadeias do espírito.
"Eu
sou o que leva os fardos do mundo.”
O
pregador pareceu a Bemis um homem desesperado: ele não gritava para obter um
Sinal, não proclamava um Sinal, respondia apenas a si próprio.
—
Vós sereis como as crianças que brincam.
"Vinde
a mim; eu darei um sentido aos vossos esforços vãos e cotidianos que vos esgotam
e eles se edificarão em vosso peito — farei deles uma coisa humana.”
A
palavra penetra na multidão. Bernis já não entende a palavra, mas alguma coisa
que está nele e que surge como um argumento.
—...
Farei deles uma coisa humana.”
Ele
se inquieta.
—
Vinde a mim, ó amantes de hoje, e de vossos amores cruéis, secos e desesperados
farei uma coisa humana.
“Vinde
a mim, que farei uma coisa humana de vossa precipitação para a carne e do
triste retomo...”
Bemis
sente aumentar a sua tristeza.
—
Pois eu sou o que está maravilhado com o homem...
Bemis
sente-se desorientado.
—
Eu sou o único que pode restituir o homem a si próprio.
O
padre calou-se. Cansado, voltou-se para o altar. Adorou esse Deus que acabava
de estabelecer. Sentiu-se humilde como se houvesse dado tudo, como se fosse um
dom o esgotamento da came. Identificou-se com Cristo sem saber. Com uma
espantosa lentidão, prosseguiu, voltado para o altar
—
Meu Pai, acreditei neles, eis por que dei minha vida...
E
inclinou-se uma última vez sobre a multidão:
—
Pois eu os amo... — Depois tremeu.
O
silêncio pareceu divino a Bemis.
—
Em nome do Pai...
Bemis
pensava: "Que desespero! Onde está o ato de fé? O que ouvi não foi um ato
de fé, mas um grito perfeitamente desesperado."
Saiu.
Logo se acenderiam os lampiões. Bemis caminhava ao longo das margens do Sena.
As árvores permaneciam imóveis, com seus ramos em desordem, presos no visgo do
crepúsculo. Bemis caminhava. Sentiu uma tranquilidade, trazida pela trégua do
dia e que se podería julgar ter sido provocada pela solução de um problema.
E,
no entanto, este crepúsculo... Tela de fundo bem teatral que já serviu para as
ruínas do império, para as noites de derrota e para o fim de amores indecisos,
que servirá amanhã para outras comédias. Tela de fundo que inquieta, se a tarde
é calma, se a vida se arrasta, pois não se sabe que drama se representa. Ah!
Que venha qualquer coisa, para salvá-lo de uma inquietude tão humana...
Simultaneamente,
todos os lampiões se acenderam.
XII
Táxis,
ônibus. Uma indescritível agitação onde é tão bom perder-se, não é verdade,
Bernis? Um estúpido plantado no asfalto. "Anda, sai da frente!"
Mulheres com que nos cruzamos apenas uma vez na vida: oportunidade única. Lá
embaixo está Montmartre, com uma luz mais crua. Moças que pretendem nos
abordar. “Meu Deus!..." Lá embaixo, outras mulheres. Carros luxuosos, como
cofres de joias, que dão às mulheres, mesmo às sem beleza, uma carne preciosa.
Milhões em pérolas sobre os ventres, e quantos anéis! A carne de uma matéria de
luxo! E uma prostituta ansiosa diz: “Deixe-me. Você! Eu o conheço, seu bruto,
saia da frente. Deixe-me passar, quero viver!"
Aquela
mulher comia na sua frente, num vestido de noite aberto em triângulo sobre o
dorso nu. Ele vê apenas a nuca, os ombros, o dorso obcecante onde a carne
estremece rapidamente. Matéria sempre recomposta e inatingível. A mulher curvou
a cabeça e apoiou o queixo na mão, fumando um cigarro, e ele já não viu senão
uma extensão deserta.
“Uma
barreira”, pensou.
As
dançarinas começaram seu jogo. Seus passos eram elásticos, pois a alma do balé emprestava-lhes
outra alma. Bernis amava esse ritmo que as mantinha em equilíbrio. Um
equilíbrio tão ameaçado mas que elas recuperavam sempre com uma segurança
espantosa. Inquietavam os sentidos como se desenvolvessem a imagem que já
estava prestes a estabelecer-se, no limiar do repouso e da morte como se a
transformassem ainda em movimento. Eram a expressão do desejo personificado.
À
sua frente, o dorso misterioso, liso como a superfície de um lago. Porém, um
gesto esboçado, um pensamento ou um arrepio propagaram neles uma longa
tremulação de sombra. Bemis pensava: “Necessito de tudo o que se move ali
debaixo obscuramente."
As
dançarinas cumprimentavam, depois de desenhar e apagar alguns enigmas na areia.
Bemis fez sinal à mais leve.
“Você
dança bem.” Adivinhava o peso de sua came, como a polpa de um fruto, e era-lhe
uma revelação ver que ela pesava. Uma riqueza. A bailarina sentou-se. Tinha o
olhar fixo e alguma coisa de animal na nuca descoberta, que era a articulação
menos flexível do corpo. Não possuía finura alguma de traços, mas todo o seu
corpo deslizava e difundia uma grande paz.
Depois
Bemis notou seus cabelos colados pelo suor. Uma ruga cavada na pintura do
rosto. Um enfeite envelhecido. Retirada da dança, como do seu elemento, parecia
derrotada e inábil.
“Em
que está pensando?” Ela esboçou um gesto desajeitado.
Toda
essa agitação noturna adquiria um sentido: a dos criados, dos choferes de táxi,
do maftre. Exerciam seu ofício, que, afinal, é empurrar a alguém o champanhe e
a mulher cansada. Bemis olhava a vida pelos bastidores, onde tudo é profissão.
Onde não há vício, virtude, emoção turva, mas apenas um trabalho tão rotineiro,
tão neutro como o dos homens de equipe. Até a dança, que reunia os gestos para
compor uma linguagem, podia comunicar apenas ao estrangeiro. Só o estrangeiro
descobria aqui a imagem que eles e elas há muito tempo esqueceram. Assim como o
músico, que, pela milésima vez, sopra a mesma ária a tal ponto que não mais a
entende. Aqui, elas realizam passos, expressões, à luz dos refletores, mas sabe
Deus com que dificuldade. Uma, preocupada unicamente com a perna que doía;
outra, com um encontro — ah, miserável — depois da dança; outra ainda que
pensava: “Devo cem francos...“, e mais outra, reclamando sempre: “Não me sinto
bem."
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