segunda-feira, 10 de julho de 2017

CORREIO SUL - 13


             XI

            Para quê? À sua volta fervilhava o inútil rebuliço da cidade. Sabia perfeitamente que nunca mais sairia daquela confusão. Subia a passos lentos, misturando-se à massa indiferente dos transeuntes. Pensava: “E como se eu não estivesse aqui." Daqui a pouco partiria outra vez: tinha a certeza. Tinha a certeza também de que seu trabalho o cercava de laços tão materiais que ele voltaria a ser uma realidade. Sabia também que, na vida cotidiana, o menor passo adquire a importância de um feito e o desastre moral perde um pouco de sentido. Até as brincadeiras das suas escalas de piloto conservavam seu sabor. Era estranho e, no entanto, certo. Ele, porém, não se interessava por si próprio.

            Como passava perto de Notre-Dame, entrou, surpreendendo-se com a multidão compacta, e refugiou-se junto a uma coluna. “Por que estava ali?”, perguntou-se. Viera, sobretudo, porque nesse lugar os minutos elevam a alguma coisa; fora, já não levam a nada. E isso: "Fora, os minutos já não conduzem a nada." Tinha também necessidade de reconhecer-se e oferecia-se à fé, como a qualquer outra disciplina do pensamento. Dizia consigo: “Se encontrar uma fórmula para exprimir-me e reconhecer-me, esta, para mim, será a verdadeira." Depois acrescentou com desinteresse: “Entretanto, nem assim eu acreditaria."

            Sentiu de súbito que se tratava, mais uma vez, de um cruzeiro e que toda a sua vida se perdera, assim, tentando fugir. O começo do sermão inquietou-o como um sinal de partida.




            — O reino dos céus — começou o pregador —, o reino dos céus...

            Apoiou as mãos no largo encosto do púlpito... inclinou-se para a multidão. Multidão amontoada e que tudo absorve. Nutrir. As imagens surgiam-lhe com um extraordinário caráter de evidência. Pensava nos peixes presos na rede e do nada, acrescentou:

            — Quando o pescador da Galileia...

            Empregou apenas palavras que arrastavam um cortejo de reminiscências, que persistiam. Parecia-lhe exercer sobre a multidão uma influência poderosa, aumentando gradativamente seu ímpeto como as passadas do corredor. "Se soubésseis... se soubésseis quanto amor..." Interrompeu-se, ofegando um pouco: seus sentimentos eram plenos demais para exprimir-se. Compreendeu que as menores palavras, as mais usadas, pareciam-lhe carregadas de um sentido intenso e não mais discernia as palavras convenientes. A luz dos círios empalideceu-lhe o rosto. Endireitou-se, com as mãos apoiadas, a cabeça erguida, ereto. Quando ele relaxou, o povo agitou-se um pouco, como o oceano.




            Voltaram-lhe depois as palavras e ele falou. Falava com uma surpreendente segurança. Tinha a alegria do estivador consciente de sua força. Enquanto concluía uma frase, outras ideias formavam-se independentes dele, como fardos que alguém lhe atirasse, e sentia de antemão dominá-lo, confusamente, a imagem em que se apoiava, a fórmula que o levaria ao povo.

            Bemis agora ouvia a conclusão:

            — Sou a fonte de toda vida. Sou a maré que penetra em vós, que vos anima e se vai. Sou o mal que penetra em vós, que vos dilacera e se vai. Sou o amor que penetra em vós e subsiste pela eternidade.

            "E vindes opor-me Marcos e o quarto evangelho. E vindes falar-me de interpolações. E vindes lançar-me à face vossa miserável lógica humana, quando eu sou aquele que está além, quando é dessa lógica que vos liberto!

            “O prisioneiros, compreendei-me! Liberto-vos de vossa ciência, de vossas fórmulas, de vossas leis, dessa escravidão do espírito, desse determinismo mais duro que a fatalidade. Sou o defeito na armadura. Sou a janela na prisão. Sou o erro no cálculo: sou a vida.

            "Determinastes a marcha das estrelas, ó geração dos laboratórios, e não mais as conheceis. Tudo isso não passa de fórmulas da vossa ciência, mas não é luz: saístes mais ignorantes que uma criança. Descobristes até as leis que regem o amor humano, mas mesmo este escapa às vossas interpretações: sois mais ignorantes que uma donzela. Ah! Vinde a mim. Eu vos restituo a doçura e a luz do amor. Não vos subjugo: salvo-vos. Eu vos liberto do primeiro homem que calculou a queda de um fruto e vos encerrou nesta escravidão. Meu reino é a única solução; que seria de vós fora do meu reino?

            “Que seria de vós fora do meu reino, fora deste navio onde o fluxo das horas adquire seu sentido pleno, como o fluxo do mar na proa luzidia? O fluxo do mar que, embora silencioso, desgasta as ilhas, o fluxo do mar...

            “Vinde a mim, vós, para quem a ação, que a nada conduz, foi amarga.

            “Vinde a mim, vós, para quem o pensamento, que só conduz às leis, foi amargo.”

            Abriu os braços:

            — Pois eu sou o que acolhe. Suportei sobre os ombros os pecados do mundo. Carreguei seu mal. Carreguei vossas amarguras de animais que perderam seus filhotes, vossas doenças incuráveis e aliviei-vos. Mas vosso mal, ó meu povo de hoje, é uma miséria bem maior e mais irreparável e, não obstante, eu a carregarei como as demais. Arcarei com as mais pesadas cadeias do espírito.

            "Eu sou o que leva os fardos do mundo.”

            O pregador pareceu a Bemis um homem desesperado: ele não gritava para obter um Sinal, não proclamava um Sinal, respondia apenas a si próprio.

            — Vós sereis como as crianças que brincam.

            "Vinde a mim; eu darei um sentido aos vossos esforços vãos e cotidianos que vos esgotam e eles se edificarão em vosso peito — farei deles uma coisa humana.”

            A palavra penetra na multidão. Bernis já não entende a palavra, mas alguma coisa que está nele e que surge como um argumento.

            —... Farei deles uma coisa humana.”

            Ele se inquieta.

            — Vinde a mim, ó amantes de hoje, e de vossos amores cruéis, secos e desesperados farei uma coisa humana.

            “Vinde a mim, que farei uma coisa humana de vossa precipitação para a carne e do triste retomo...”

            Bemis sente aumentar a sua tristeza.

            — Pois eu sou o que está maravilhado com o homem...

            Bemis sente-se desorientado.

            — Eu sou o único que pode restituir o homem a si próprio.

            O padre calou-se. Cansado, voltou-se para o altar. Adorou esse Deus que acabava de estabelecer. Sentiu-se humilde como se houvesse dado tudo, como se fosse um dom o esgotamento da came. Identificou-se com Cristo sem saber. Com uma espantosa lentidão, prosseguiu, voltado para o altar

            — Meu Pai, acreditei neles, eis por que dei minha vida...

            E inclinou-se uma última vez sobre a multidão:

            — Pois eu os amo... — Depois tremeu.

            O silêncio pareceu divino a Bemis.

            — Em nome do Pai...

            Bemis pensava: "Que desespero! Onde está o ato de fé? O que ouvi não foi um ato de fé, mas um grito perfeitamente desesperado."

            Saiu. Logo se acenderiam os lampiões. Bemis caminhava ao longo das margens do Sena. As árvores permaneciam imóveis, com seus ramos em desordem, presos no visgo do crepúsculo. Bemis caminhava. Sentiu uma tranquilidade, trazida pela trégua do dia e que se podería julgar ter sido provocada pela solução de um problema.

            E, no entanto, este crepúsculo... Tela de fundo bem teatral que já serviu para as ruínas do império, para as noites de derrota e para o fim de amores indecisos, que servirá amanhã para outras comédias. Tela de fundo que inquieta, se a tarde é calma, se a vida se arrasta, pois não se sabe que drama se representa. Ah! Que venha qualquer coisa, para salvá-lo de uma inquietude tão humana...

            Simultaneamente, todos os lampiões se acenderam.




             XII

            Táxis, ônibus. Uma indescritível agitação onde é tão bom perder-se, não é verdade, Bernis? Um estúpido plantado no asfalto. "Anda, sai da frente!" Mulheres com que nos cruzamos apenas uma vez na vida: oportunidade única. Lá embaixo está Montmartre, com uma luz mais crua. Moças que pretendem nos abordar. “Meu Deus!..." Lá embaixo, outras mulheres. Carros luxuosos, como cofres de joias, que dão às mulheres, mesmo às sem beleza, uma carne preciosa. Milhões em pérolas sobre os ventres, e quantos anéis! A carne de uma matéria de luxo! E uma prostituta ansiosa diz: “Deixe-me. Você! Eu o conheço, seu bruto, saia da frente. Deixe-me passar, quero viver!"

            Aquela mulher comia na sua frente, num vestido de noite aberto em triângulo sobre o dorso nu. Ele vê apenas a nuca, os ombros, o dorso obcecante onde a carne estremece rapidamente. Matéria sempre recomposta e inatingível. A mulher curvou a cabeça e apoiou o queixo na mão, fumando um cigarro, e ele já não viu senão uma extensão deserta.

            “Uma barreira”, pensou.

            As dançarinas começaram seu jogo. Seus passos eram elásticos, pois a alma do balé emprestava-lhes outra alma. Bernis amava esse ritmo que as mantinha em equilíbrio. Um equilíbrio tão ameaçado mas que elas recuperavam sempre com uma segurança espantosa. Inquietavam os sentidos como se desenvolvessem a imagem que já estava prestes a estabelecer-se, no limiar do repouso e da morte como se a transformassem ainda em movimento. Eram a expressão do desejo personificado.

            À sua frente, o dorso misterioso, liso como a superfície de um lago. Porém, um gesto esboçado, um pensamento ou um arrepio propagaram neles uma longa tremulação de sombra. Bemis pensava: “Necessito de tudo o que se move ali debaixo obscuramente."

            As dançarinas cumprimentavam, depois de desenhar e apagar alguns enigmas na areia. Bemis fez sinal à mais leve.

            “Você dança bem.” Adivinhava o peso de sua came, como a polpa de um fruto, e era-lhe uma revelação ver que ela pesava. Uma riqueza. A bailarina sentou-se. Tinha o olhar fixo e alguma coisa de animal na nuca descoberta, que era a articulação menos flexível do corpo. Não possuía finura alguma de traços, mas todo o seu corpo deslizava e difundia uma grande paz.

            Depois Bemis notou seus cabelos colados pelo suor. Uma ruga cavada na pintura do rosto. Um enfeite envelhecido. Retirada da dança, como do seu elemento, parecia derrotada e inábil.

            “Em que está pensando?” Ela esboçou um gesto desajeitado.

            Toda essa agitação noturna adquiria um sentido: a dos criados, dos choferes de táxi, do maftre. Exerciam seu ofício, que, afinal, é empurrar a alguém o champanhe e a mulher cansada. Bemis olhava a vida pelos bastidores, onde tudo é profissão. Onde não há vício, virtude, emoção turva, mas apenas um trabalho tão rotineiro, tão neutro como o dos homens de equipe. Até a dança, que reunia os gestos para compor uma linguagem, podia comunicar apenas ao estrangeiro. Só o estrangeiro descobria aqui a imagem que eles e elas há muito tempo esqueceram. Assim como o músico, que, pela milésima vez, sopra a mesma ária a tal ponto que não mais a entende. Aqui, elas realizam passos, expressões, à luz dos refletores, mas sabe Deus com que dificuldade. Uma, preocupada unicamente com a perna que doía; outra, com um encontro — ah, miserável — depois da dança; outra ainda que pensava: “Devo cem francos...“, e mais outra, reclamando sempre: “Não me sinto bem."

            Já se desfizera nele todo o entusiasmo. Dizia consigo: "Você não pode me dar nada do que desejo.“ E, entretanto, a sua solidão era tão cruel que teve necessidade da dançarina



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