domingo, 16 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 12


         Artigo de La Croix du Littoral, 20 de março de 1904:

            Acidente na estação de La Foux

      Na tarde de segunda-feira, o genro de Monsieur de Fonscolombe, que viajava com sua jovem esposa, foi repentinamente abatido na estação de La Foux por uma congestão cerebral, Foi atendido rapidamente na sala de espera e o médico, chamado com urgência, chegou logo em seguida, porém infelizmente tudo foi inútil. O pobre doente expirou nos braços da esposa desconsolada, após ter recebido a bênção do padre e os últimos sacramentos. Logo após, o corpo foi transportado para La Môle, onde foi realizado o funeral,

       Este acidente comoveu profundamente os viajantes que estavam chegando naquele momento à estação de La Foux, provenientes de Saint-Tropez, Llyères, Saint-Raphaël e Cogolin. Cruéis surpresas da Morte! Nossas respeitosas condolências às famílias enlutadas por este mortal acidente.

            La Croix, jornal nacional católico e monarquista que publicava edições locais para a região mediterrânea, foi o único que noticiou a morte do pai de Antoine, ocorrida em 14 de março de 1904. Por notável ironia, o nome do defunto não fora mencionado, embora o jornalista deva ter suposto que o sogro do morto, Charles de Fonscolombe, um dos mais influentes proprietários das áridas colinas provençais de Maures, fosse conhecido pelos leitores. A intenção do artigo era clara, embora o repórter anônimo aumentasse ainda mais a confusão dando o título de “acidente” à tragédia de La Foux. A matéria acabava com os boatos, insistindo no fato de que Saint-Exupéry recebera os últimos sacramentos e morrera na presença da esposa. A morte súbita, em circunstâncias tão pouco dignas, de um homem de apenas 41 anos, cuja esposa esperava o quinto filho, necessariamente suscitaria inúmeras especulações.

            Não foi mencionada a presença de nenhuma das crianças quando Jean de Saint-Exupéry pereceu às 19 horas, embora isso fosse perfeitamente possível. As primeiras recordações de Antoine referem-se justamente às visitas da família ao castelo dos avós maternos. Em Piloto de Guerra., ele o descreve como um lugar sinistro, repleto de sombras assustadoras e do assobio angustiante do mistral, durante o qual costumava correr para o quarto da babá austríaca, Paula, em busca de proteção. Estivesse ou não presente na estação de La Foux ou nas exéquias realizadas em Saint-Maurice quatro dias mais tarde, Antoine certamente ficou perturbado pela tristeza do ritual de luto e pelo desaparecimento do principal personagem masculino de seu ambiente.

            A discrição sobre certos aspectos de sua vida pessoal priva-nos de qualquer revelação quanto ao pai, o que foi apenas em parte compensado em sua obra filosófica, Cidadela. Nela existem referências enigmáticas à morte do pai do chefe berbere: “Ele ensinou-me a morte e obrigou-me, quando jovem, a olhá-la de frente, pois ele nunca abaixava os olhos”.

            Ao deixar de mencionar a identidade do pai de Antoine em seu artigo, o jornalista de La Croix refletia involuntariamente a opinião geral da família, segundo a qual Jean de Saint-Exupéry não estava destinado a distinguir-se em nada. Nada havia de notável na sua vida de solteiro quando ele se casou aos 33 anos, provavelmente sob pressão familiar, para dar uma finalidade à sua vida até então sem objetivo. Fora oficial num regimento de dragões, como seu irmão mais moço, Roger, antes de aceitar um emprego de agente de seguros na empresa do pai. Em sua certidão de casamento, descreve a si mesmo como “sem profissão”.

            Antes de se casar, Jean de Saint-Exupéry tivera, nas cidades onde se estabelecia a guarnição, todas as vantagens com que um oficial solteiro e nobre podería sonhar. Uma certa força de caráter seria necessária para abandonar a inconseqüência dessa vida fácil e adaptar-se a uma existência doméstica e rural, dominada pela autoridade feminina e pelo crescente número de nascimentos que logo transformariam a casa em creche.

            O legado mais importante que ele deixou para Antoine foi o título familiar de nobreza. “Tenho um belo nome”, diría Antoine a um amigo, Jean Escot, durante seu serviço militar na aviação, em 1921. Naquela época, ele ainda não decidira se era melhor impressionar seus amigos com o título ou se era preferível não chamar a atenção sobre seu berço de ouro.

            A morte precoce do pai causou-lhe certos efeitos subconscientes que somente aparecerão mais tarde, quando Saint-Exupéry passar a manifestar tendências hipocondríacas. Mas, na época, ele apenas partilhava o destino de muitas crianças de tenra idade que ficavam órfãs de pai. Dois escritores contemporâneos de Saint-Exupéry, Jean-Paul Sartre e Albert Camus, perderam seus pais muito cedo; Sartre ainda não tinha 1 ano, e Camus, 3. André Malraux tinha 3 anos quando o pai o abandonou. Todos eles foram criados em famílias dirigidas por mulheres, porém cada um deles elaboraria uma visão muito pessoal sobre as questões morais, sociais e emocionais.

            Saint-Exupéry não exagerava quando se gabava de possuir um “belo nome”. Em 1991, seu sobrinho em segundo grau Frédéric d’Agay fez uma recapitulação das árvores genealógicas dos quatro avós de Antoine, que se orgulhavam de ter ancestrais de grande prestígio. Os aspectos contraditórios do caráter de Saint-Exupéry, simultaneamente homem de ação e de letras, eram conseqüência da fusão de influências culturais e militares de seu passado.

            Os quatro ramos genealógicos tinham em comum a mesma determinação de conservar a linhagem aristocrática graças a casamentos cuidadosamente arranjados em função de nível social ou de fortuna. Quando Antoine rompeu essa tradição ao casar-se com uma obscura estrangeira, sua decisão foi considerada herética, assim como o abandono da religião. Era preciso uma certa coragem para rejeitar as vantagens de um “belo nome”, com tudo o que ele representava em matéria de privilégios e de promessas de apoio familiar. Até o momento em que se tornou evidente o valor financeiro da obra de Saint-Exupéry, após sua morte, a maioria dos membros de sua família o considerava um desclassificado e um exemplo deplorável.

            Um dos documentos aos quais Frédéric d’Agay teve acesso foi a “Informação sobre a família Saint-Exupéry”, escrita por Fernand de Saint-Exupéry, avô de Antoine, que segue suas origens até as cruzadas. Quando Antoine estava interno num colégio em Le Mans, o livro de seu ancestral deve ter inflamado sua imaginação, embora sem dúvida fosse jovem demais para compreender por que o descendente de tão nobre linhagem tinha de se contentar com viver numa casa modesta em vez de numa residência imponente. O avô, apesar do cargo de diretor da companhia de seguros Du Soleil, não manifestara um grande talento para os negócios, e foi criticado devido a maus investimentos que diminuíram a fortuna familiar.

            A verdadeira riqueza da família era constituída pela árvore genealógica referente ao primeiro Saint-Exupéry conhecido, em 1235, à frente de seu feudo no Limousin. Parece que o sobrenome da família originou-se num povoado de Corrèze, perto de Ussel, chamado Saint-Exupéry-des-Roches. No século XVI, ele passou a ter sangue real, quando uma certa Madeleine de Saint-Exupéry casou-se com um Bourbon que era camareiro do rei. No século XVII, sua lealdade à coroa valeu a Jean-Antoine de Saint-Exupéry, capitão do exército, a consideração pessoal de Luís XIV, e a partir de então cada geração passaria a produzir heróis militares. A maioria era composta de soldados, e alguns participaram da Guerra de Independência Americana, enquanto outros engrossaram as fileiras dos emigrados monárquicos após a Revolução.

            Os laços militares com a monarquia foram reforçados durante a Restauração e o Segundo Império; a queda deste acabou com a carreira administrativa de Fernand de Saint-Exupéry como subprefeito. Sua lealdade aos Bourbons não lhe permitia servir uma república.

            O avô de Antoine nascera em 1833, em Bordéus, no castelo Malescot, no vinhedo de Margaux. A mãe de Fernand era filha de um rico comerciante de vinhos, porém infelizes investimentos vinícolas e os estragos da filoxera em 1870 abalaram a fortuna da família. A mesma readquirira certa saúde financeira mediante o casamento de Fernand com Alix Blouquier de Trélan, cuja família era proveniente de Tours. Foi assim que a ascendência viu-se intimamente vinculada às causas militares que opuseram a família de Trélan e o exército revolucionário na Vendée. Não é surpreendente que as duas famílias dos avós paternos de Antoine tenham sido ardentes defensoras da monarquia legitimista dos Bourbons e tenham conquistado inimigos entre os republicanos ao apoiar uma nova restauração. Sua obsessão pela causa monarquista influenciaria fortemente a adolescência de Saint-Exupéry.


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