domingo, 30 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 26

Didier Daurat

            A importância de Didier Daurat na vida e na obra de Saint-Exupéry é enorme. Ele aparece no último e mais importante livro de Saint-Ex na figura do “Pai”, que forma o caráter do narrador, líder da Cidadela no Saara. Esse personagem do livro é talvez o mais marcante, o mais citado nas histórias, nas parábolas, nos ensinamentos morais, éticos, humanos, e filosóficos. Para entender “Cidadela” é importante entender e conhecer Daurat.

            Nomeado Diretor de Operações da Latécoère no outono de 1920, ele era um homem atarracado, de ombros fortes como um buldogue, com olhos penetrantes e um bigode que criava uma barreira no seu rosto. Herdou do pai — um chofer-mecânico empregado da empresa de gás de Paris — o jeitão direto e sem rodeios do pessoal da região de Auvergne. Com quinze anos foi enviado para a Ecole d’Horlogerie et de Mécanique de Paris, quando desenvolveu um enorme interesse por astronomia bem como por relojoaria, geometria sólida, projetos de engenharia e resistência dos metais. Mas veio a Primeira Guerra, com todo o horror que caracterizou o conflito.

Foi enviado para o Front, onde viveu toda a intensa ferocidade que o amadureceu prematuramente. Noites geladas em galpões onde o medo da morte aparecia nos rostos sujos e barbados iluminados por uma vela bruxuleante; trincheiras de inverno e abrigos gelados cavados atrás de montes de cadáveres; combates de tronco a tronco em florestas destruídas; o interminável, contínuo, ensurdecedor bombardeio de Verdun abrindo crateras por quilômetros sem fim — viu e sobreviveu a tudo. Certo dia, nas ruínas do que fora uma igreja, se viu frente a um solitário general que ordenou avançasse completamente sozinho para libertar sua brigada capturada. “Avance, continue a avançar, que você consegue!” foi a ordem que recebeu do oficial com um gesto largo — que para Daurat pareceu ser a síntese da loucura da guerra.

            Evacuado para Vichy com pedaços de metal no crâneo e no tornozelo, Daurat inicialmente tinha um desdém típico do soldado de infantaria pelos aviadores cheios de medalhas cuja passagem pelos salões era acompanhada por olhos brilhantes e palpitações de corações femininos. Mas a curiosidade venceu o preconceito e logo se viu voluntário para serviço na Força Aérea. Na base aérea de La Cheppes, próximo a Chalons-sur-Marne, foi designado como piloto de reconhecimento fotográfico sobre as linhas alemãs, a fim de guiar a artilharia francesa. Lá conheceu Beppo de Massimi, cujo domínio do Latim era igualado por incríveis reservas de coragem. Foi Daurat que colocou o antigo boêmio para montar e desmontar metralhadoras e lhe ensinou os rudimentos de reconhecimento aéreo; e embora  Massimi fosse dez anos mais velho do que ele, os dois com o tempo construíram uma solida amizade.

            A guerra no ar, como Daurat logo descobriu, era quase tão letal como em terra. Certa vez atacado por cinco Fokkers, conseguiu trazer o avião perfurado por tiros de volta à base, para só na hora de descer da cabine descobrir que seu observador estava morto. Pilotando um biplano Bréguet 14 certo dia sobrevoou o Quartel-General do castelo de Kronprinz e avistou cinquenta caças alemães subindo em sua direção tentando chegar aos 5 mil metros onde estava. Mais tarde, durante um voo noturno de reconhecimento, pôde ver o clarão provocado pelo enorme e gigantesco “Big Bertha”, ajudando a localizar o monstro que bombardeava Paris. Destacado para bombardear pontes alemãs durante a Segunda Batalha do Marne, foi o único sobrevivente de quatro dias de pesadelo em um esquadrão de 64 pilotos! Depois de derrubar um avião alemão, foi atacado por cinco caças inimigos, que transformaram as asas e a fuselagem de seu avião em uma peneira. Um projétil passou raspando por sua cabeça, e outro destroçou três dedos de sua mão direita. Enfraquecido pela perda de sangue, refugiou-se em uma nuvem, e conseguiu com dificuldade achar o caminho de volta, segurando a mão ferida contra o vidro da cabine para estancar a hemorragia.

            Esse era o homem que se juntou à Latécoère e ao próprio Massimi em agosto de 1919 e que um ano depois se tornou Diretor de Operações da empresa. Com apenas vinte e nove anos de idade, mas com um acúmulo de experiência humana nos seis anos anteriores suficientes para durar várias encarnações. Toda essa fibra foi necessária naquele sombrio outono, quando no espaço de três dias duas mensagens chegaram informando que Rodier havia desaparecido no mar ao largo de Perpignan e que Genthon, outro veterano, havia perecido no incêndio de seu avião ao tentar uma aterrissagem forçada em um campo rochoso entre Valencia e Alicante. Um clima de profundo desestimulo se abateu sobre a empresa, alimentado por uma sensação de que os obstáculos eram por demais formidáveis e o azar intransponível. “Discussões haviam tomado o lugar da coragem e o ceticismo havia substituído a inteligência,” relatou Daurat anos depois em sua autobiografia admiravelmente sincera, Dans le Vent des Hélices (No Vento das Hélices). “Lamentei ter de demitir muitos colegas cujo valor eu reconhecia e aos quais era ligado por uma sincera amizade. Mas eles haviam se tornado um perigo para empresa.  Haviam perdido sua fé e começado a difundir um espirito critico destrutivo; passaram a usar sua experiência ao contrário; para corromper o entusiasmo dos outros. Alguns deles haviam criado o hábito de não comparecer no aeroporto ao menor sinal de um vento mais forte nas persianas do Hôtel du Grand Balcon, onde estavam hospedados.

            Um ônibus foi alugado para trazer os aviadores relutantes para Montaudran, e todos aqueles que não chegavam a tempo foram sumáriamente demitidos. Esposas e namoradas que costumavam se agrupar para admirar a perícia de seus aviadores em acrobacias e que imploravam a eles que não decolassem com vento e chuva foram proibidas de se aproximar do campo de aviação.

            Os “heróis” e “azes” que se recusaram a se submeter ao novo regime foram mandados embora. Para substitui-los Daurat teve de contratar outros veteranos de guerra – na época não havia muita escolha – e todos tiveram de passar pelas oficinas, tal como ele havia feito com Massimi em La Cheppes. “Para quebrar a carapaça de orgulho que caracterizava a maioria deles, tive de impor um período de estágio nas oficinas de manutenção. Alguns acharam que aparafusar peças, limpar motores, e chegar no horário era um vexame inaceitável. Saíram rapidamente, simplificando meu problema de seleção.”

            Os resultados dessa postura de “pé-no-chão” logo começaram a surgir. Em lugar de se sentir superiores aos mecânicos, até então considerados como uma classe de  “inferiores”, os pilotos desenvolveram um sentimento de companheirismo com os homens que tinham a tarefa de manter seus motores funcionando, e como ocorria frequentemente, ir até eles consertar motores quando tinham de fazer alguma aterrissagem forçada em uma praia ou num campo. A imagem da companhia começou a mudar – deixaram de ser um grupo de aventureiros arrojados arriscando a vida,  para se tornarem  uma empresa séria de correio aéreo, que se empenhava em voar a favor, e não contra, os elementos da natureza. Os padrões exigidos eram considerados como os mais severos no setor, e conseguir ser admitido na Latécoère era um privilégio para  poucos.

            Quase imperceptivelmente implantou-se um novo “espírito de corpo” que se tornou o bem mais precioso da empresa, embora intangível. Era acompanhado por uma crescente mitologia, à medida que os “veteranos” se tornavam protagonistas de um número cada vez maior de “histórias”.

Um caso exemplar ocorreu com Jean Mermoz, que viria a ser o piloto mais famoso da linha, e que quase foi reprovado quando se apresentou para admissão em Montaudran dois anos antes de Saint-Exupéry. Levado ao escritório de Daurat, uma sala sóbria e simples com apenas uma mesa e um enorme mapa da Espanha marcado a lápis com linhas coloridas, Mermoz confiantemente tirou do bolso seu histórico de voos e seus certificados militares. Com um cigarro pendurado abaixo do bigode, Daurat passou os olhos pelos papeis. O rosto impassível.

            “Estou vendo” finalmente disse, os olhos negros friamente fitando os olhos do jovem Mermoz, “até agora você não fez nada.”

            “Mas eu tenho seiscentas horas de voo!” protestou Mermoz veementemente. Um general francês havia até escrito uma carta de recomendação extremamente elogiosa.

            “Isso não é nada... nada demais,” resmungou Daurat. Olhou Mermoz de alto a baixo, observando os ombros largos, o torso evidentemente atlético, o terno que o infeliz havia passado horas escovando, e o cabelo comprido, arrumado cuidadosamente por trás das orelhas.

            “Você tem um cabelo cuidado, concorda?” comentou ele, com um ligeiro toque de sarcasmo. “Mas não tem a cabeça de um operário.”

            “Mas eu vim aqui para ser piloto!”

            “Aqui, se você quer ser piloto, começa por ser um operário. Irá seguir as etapas normais, como todos os outros. Vou te contratar como mecânico. Vá procurar o chefe da oficina e peça-lhe um macacão.”

            “Está bem, Monsieur le Directeur,” disse Mermoz, engolindo em seco, “mas quando será que eu poderei voar?”...

            “Aqui não se aceita perguntas... Você saberá no devido tempo quando poderá voar... caso venha a ser autorizado a voar,” retrucou Daurat rispidamente.

            E nas três semanas seguintes Jean Mermoz e seis outros iniciantes enrijeceram as mãos esfregando cilindros em um tonel de potássio. Depois disso foram colocados para montar e desmontar motores. “Eu estava começando a achar a vida enormemente monótona,” Mermoz contou posteriormente, “quando um dia Monsieur Daurat rosnou para nós, de passagem: “Estejam no aeroporto amanhã as 6:30 da manhã.

            Exuberante, Mermoz se apresentou na manhã seguinte e já encontrou meia dúzia de anciens (veteranos) agrupados para curtir o espetáculo. Entre eles estava um alsaciano chamado Doertlinger, um “ás” da guerra de 14-18 que havia derrubado treze aviões franceses, voando pelos alemães.

            O aeroplano que os “aprendizes” iam voar era um Bréguet 14, um biplano de nariz quadrado com um motor Renault de 300 HP. Era um avião que parecia um “caixão voador”, desengonçado, com um radiador enorme retangular na frente e uma peça que parecia uma bota encravada bem atrás da hélice. Esta peça,  frequentemente chamada de “chifre do rinoceronte”, era simplesmente o cano de descarga do motor colocada de forma a soltar a fumaça sobre a asa de cima e a cabeça do piloto, sentado pouco atrás em uma cabine aberta, logo embaixo da borda de trás da asa.

            Os primeiros dois candidatos fizeram decolagens e aterrissagens desastradas e foram sumáriamente dispensados por Daurat; depois deles chegou a vez de Mermoz. Ainda furioso com o descaso do chefe por suas 600 horas de voo como “nada”, Mermoz decolou, decidido a mostrar-lhe a que vinha.

O avião padrão da linha, o Bréguet 14, seria mais comparável a um cavalo robusto Percheron do que a um cavalo de corrida, não era feito para voos acrobáticos - que haviam tanto impressionado o Capitão René Bouscat; mas Mermoz estava com o sangue fervendo, e decidido a impressionar o público com as façanhas que seu caixote podia fazer.
Acelerando na pista a toda potência, esperou até o limite até puxar o manche, e colocar o pesado avião em uma subida espetacular, depois do que realizou uma serie de loops admiráveis antes de aterrissar o avião bem no meio do círculo de giz que havia sido desenhado no meio da pista de terra para testes de precisão.

            Satisfeito com sua exibição, Mermoz desceu confiante do Bréguet, e para sua surpresa Daurat sumira. Os “veteranos” ainda estavam lá, observando sardonicamente, tocos de cigarro pendurados nos lábios, mãos enfiadas nos bolsos de suas jaquetas de couro. Pareciam nada impressionados.

            “Nem se preocupe em tentar achá-lo,” um deles finalmente disse, com um forte sotaque de Marselha. “Você pode arrumar suas malas.”

            “Então você está satisfeito?” disse Daurat, aparecendo de um hangar já com seu chapéu de feltro e sua capa de chuva.

            “Sim, Monsieur le Directeur

            “Bem, eu não. Aqui não contratamos pilotos de acrobacia. Se você quer ser um artista de circo, pode ir se exibir em outro lugar.”

            Mermoz arrancou o capacete de couro da cabeça, e foi para o vestiário onde começou a jogar seus poucos pertences em uma mala, decidido a sacudir a poeira de Montraudan de seus pés para sempre. Mas de repente aparece Daurat atrás dele, observando em um enigmático silêncio.

            “Então você está indo,” disse ele finalmente, ao mesmo tempo em que tirava um maço de cigarros Caporal do bolso.

            “Sim” respondeu lacônicamente Mermoz.

            “Um... Você não é disciplinado... é convencido... se acha o tal... um... naturalmente...”

            “Sim, me acho bom.”

            “E você tem coragem de me rebater.”

            “Claro, já que o senhor me faz perguntas.”

            “Você tem pavio curto.”

            “Não, Monsieur le Directeur,” retrucou Mermoz, “mas detesto injustiça. Eu sei que pilotei bem,”

            “Como eu pensava... pretencioso...On vous dressera,” continuou Daurat. E dito isso, mal acreditando no que ouvia, Mermoz foi mandado a entrar no Bréguet de novo, e levá-lo até 600 pés, efetuar uma lenta curva horizontal, e depois trazer o avião para uma aterrissagem elegante e suave. Daurat nem se deu ao trabalho de presenciar o final de seu segundo voo, que Mermoz realizou conforme as instruções; mas para a lição ficar clara, colocou o orgulhoso piloto de volta à oficina por mais uma semana, apertando parafusos, a fim de, como ele posteriormente comentou, “inculcar nele uma noção mais exata de suas responsabilidades como aviador.”

            Esse era o homem que se tornou o personagem principal de “Cidadela”, o mentor e exemplo profissional para Saint-Exupéry.

Didier Daurat,
Diretor de Operações da Latécoère e mentor de Saint-Exupéry
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário