NO DESERTO
I
Essas
doçuras nos eram interditas quando, pilotos da linha do Saara, ficávamos prisioneiros
da areia, navegando, durante semanas, meses, anos, de um fortim a outro, sem ir
à França. O deserto não oferecia oásis como aquele. Jardins e moças ali eram
lendas. Certamente, lá longe, na terra, onde, acabado o trabalho, poderíamos
reviver, mil moças nos esperavam. Certamente, ali, entre seus livros e seus
mangustos, elas estavam compondo com paciência suas almas saborosas.
Certamente, elas cresciam em beleza...
Mas
eu conheço a solidão. Três anos de deserto me ensinaram bem o seu gosto. O que
nos contrista não é a mocidade que se gasta numa paisagem mineral É o
pensamento de que, longe de nós, é o mundo que envelhece. As árvores formaram
seus frutos, as terras deram seu trigo, as mulheres se fizeram belas. Mas a
estação avança. Seria necessário voltar para lá depressa... Mas a estação
avança — e estamos presos, a distância. E os bens da terra deslizam entre
nossos dedos como a fina areia das dunas.
A
passagem do tempo não é, em geral, sentida pelos homens. Eles vivem numa paz
provisória. Mas nós a provávamos ao descer em um ponto de escala quando
sentíamos no rosto aqueles ventos alísios, sempre em marcha. Éramos como o
viajante do rápido cheio dos ruídos das ferragens que se sacodem na noite, e que
adivinha, pelas golfadas de luz na vidraça do carro, que passam lá fora,
desperdiçando-se, o murmúrio dos campos, de suas aldeias, de seus domínios
encantados sem deles nada reter, porque está em viagem. Nós também, animados de
uma ligeira febre, o ruído do voo ainda zunindo nos ouvidos, nos sentíamos em
viagem, apesar da calma do posto de escala. Nós nos surpreendíamos também
levados para um destino desconhecido, ao sabor dos ventos, pelas batidas de
nossos corações.
E,
além do deserto, os revoltosos do deserto. As noites de cabo Juby eram
marcadas, de 15 em 15 minutos, como pelo gongo de um relógio: as sentinelas, de
posto em posto, alertavam-se com um grande grito regulamentar. 0 forte espanhol
de cabo Juby, perdido na terra dos revoltosos, precavia-se assim contra as
ameaças inesperadas. E nós, os passageiros daquele navio cego, escutávamos os
gritos das sentinelas se aproximando, crescendo de posto em posto, descrevendo
em volta do forte, em volta de nós, curvas de aves marinhas.
Entretanto,
amamos o deserto.
Se
no começo ele é apenas solidão e silêncio, é que não se entrega aos amantes de
um dia. Mesmo uma simples aldeia de nossa terra se furta assim ao
recém-chegado. Se não renunciamos, por aquela aldeia, ao resto do mundo, se não
volvemos às suas tradições, aos seus costumes, às suas rivalidades, ignoramos
tudo aquilo que é uma pátria para tantos outros. Mesmo um homem, a dois passos
de nós, um homem que se encerrou em seu claustro e vive segundo regras para nós
desconhecidas, é como se habitasse nas solidões do Tibete, longe, tão longe que
nenhum avião nos levaria até lá, nunca. Nada nos adiantaria visitar a sua cela.
Ela está vazia. O império do homem é interior. Assim, também o deserto não é
feito de areia nem dos tuaregues nem dos mouros armados de fuzil...
Mas
acontece que um dia sentimos sede. E aquele poço que já conhecíamos só agora
descobrimos que resplandece na amplidão. Assim uma invisível mulher enche de
encantamento uma casa. Um poço vive a distância, como o amor.
As
areias são, a princípio, desertas. Mas vem o dia em que, temendo a aproximação
de um rezzou, vemos, naquelas areias, as dobras do grande manto em que ele se
envolve. E assim o rezzou também transfigura as areias...
Aceitamos
as regras do jogo: o jogo nos faz, agora, à sua imagem. O Saara, é em nós que
ele se mostra. Abordá-lo não é visitar um oásis. É fazer, de uma fonte, nossa
religião.
N.T. rezzou - bando de beduínos armados formado com a finalidade de pilhar e atacar viajantes do deserto.
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