A odisséia
do chapéu
A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu em Le
Mans foi sem dúvida o conforto da camaradagem nos momentos de adversidade. Ao
mesmo tempo, teve de aceitar seu quinhão de importunações, especialmente sob a
forma de alcunhas. Em casa, era chamado de Tonio. Em Le Mans, foi
ridicularizado com dois apelidos que o contrariaram a vida inteira. O primeiro,
Tatane, deve-se aos pés grandes, que seriam fonte perpétua de chacota, chegando
a ser a recordação mais notável de uma mocinha de 16 anos com a qual
Saint-Exupéry dançou na véspera de sua morte, em 1944. Logo depois, Tatane
seria substituído pelo apelido ainda mais irritante de Pique la Lune, atraindo
a atenção para seu nariz arrebitado e seu ar distraído.
No âmbito acadêmico, seus resultados não eram nada
brilhantes, embora em parte isso fosse resultado de sua má vontade. O número de
alunos de sua classe variava entre dezenove e onze, porém Antoine sempre esteve
entre os últimos. Suas piores notas eram em história, geografia, alemão, latim
e ortografia. Os melhores resultados eram em francês, embora aparentemente sua
gramática fosse muito falha. Seu interesse por matemática e geografia, matérias
em que sempre teve dificuldade, só foi despertado quando pôde aplicá- las como
aviador ou inventor. Ao entrar na vida adulta, o desgosto que sentia pela
matemática em Le Mans foi substituído pela paixão pela geometria.
O único campo no qual se destacou constantemente foi a expressão
escrita, que lhe servia como avaliação pessoal e refúgio em períodos de
angústia. As melhores notas obtidas por Antoine foram em narração, a atual
dissertação, entre 12 e 14 anos, período que coincidiu com sua indisciplina e impertinência.
Não foi um jesuíta intelectual que incentivou o talento
de Antoine. Em 1900, a ordem fora expulsa da França e proibida de ensinar. Em
Notre-Dame, bem como em vários outros colégios, os jesuítas desafiaram o
governo, deixando sub-repticiamente os padres jesuítas nos bastidores e
confiando o ensino a padres recrutados fora de ordens religiosas estabelecidas.
Esses sacerdotes diocesanos de povoados e pequenas cidades dos arredores de Le
Mans prometeram seguir ao pé da letra as palavras de ordem dos jesuítas, a tal
ponto que Notre-Dame-de-Sainte-Croix continuou a ser um santuário do
conservadorismo e da monarquia até a Segunda Guerra Mundial. Embora seja de
admirar sua coragem em defender sua fé contra as intrigas governamentais, este
fato levou antigos alunos a fazerem uma escolha questionável, associando-se,
após a queda da França, ao regime de Vichy de Philippe Pétain e à ideologia da Action
Française.
Felizmente, o engajamento político dos padres não os
impedia de reconhecer um talento natural. O abade Auguste Launay teve o mérito
de discernir antes que todos as excepcionais qualidades de narrador
manifestadas por Antoine. O abade pode ser visto numa das mais notáveis fotos
de grupo tiradas em Le Mans: dezessete rapazinhos de 13 anos com o olhar solene
rodeiam, de pé ou sentados, um sacerdote de rosto severo e com os cabelos
cortados á escovinha. Sob uma aparência austera, Auguste Launay,
inevitavelmente apelidado de César, era um crítico literário nato. Antes de
Antoine chegar à oitava série, suas qualidades de escritor já tinham sido
observadas por outros professores, porém o abade Launay foi o único a ver a perfeição
do estilo além do talento criador, e passou a utilizar as redações de
Saint-Exupéry como modelo pedagógico bem antes que este se tornasse um autor
reconhecido e publicado.
Auguste Launay nasceu e morreu na cidade vizinha de
Sillé-le- Guillaume, onde seu pai exercera o ofício de marceneiro. Naquela
época não havia nenhuma escola pública, e sua educação foi assegurada devido à
vocação religiosa, um favor que ele retribuiria durante seus 34 anos de ensino
em Le Mans. A impressão severa da fotografia foi confirmada por antigos alunos,
que se recordam de um personagem distante, vestido com uma batina impecável e
que, durante as aulas, raramente levantava-se do assento colocado sobre um
estrado. Recusava-se a tocar no giz e fazia os alunos escreverem em seu lugar
na lousa, interrogando-os interminavelmente sobre a gramática latina.
Além de latim, ele ensinava grego e religião, matérias
contra as quais Antoine se insurgirá violentamente com 14 anos. Mas a prova de
seu fascínio pelo francês aparece em duas redações que o abade utilizou em
classe como modelos de narração até sua partida de Le Mans, no início da
Segunda Guerra Mundial. A mais conhecida é “A Odisséia do Chapéu”, que relata o
declínio de uma cartola, que termina como o chapéu do cacique de uma longínqua
tribo africana. A redação rendeu a Antoine uma excepcional recompensa quando da
entrega dos prêmios de fim de ano.
Auguste Launay repetiu a sucessivas gerações de alunos de
13 anos que “A Odisséia...” tinha sido brilhantemente construída por meio de um
fio condutor consistente e lógico, e que o texto contradizia formalmente os
testemunhos dos colegas de Saint-Exupéry que o descreviam como um aluno pouco
cuidadoso, cujos trabalhos estavam sempre manchados. Talvez isso fosse verdade
quando os temas não lhe pareciam interessantes, porém “A Odisséia...” foi redigida
com segurança e maturidade, denotadas na escrita limpa e quase adulta.
Infelizmente perdeu-se o outro texto modelo, que relatava
o enterro de uma formiga, porém o esquema geral do mesmo permaneceu nas
memórias de diversos alunos. Supunha-se que a procissão fúnebre fora observada
pelo escritor Jean de La Fontaine, que a narrava a um amigo. O ponto culminante
da redação de Antoine refletia seu interesse pela invenção mecânica. O cortejo
era detido por um fio d’água e ele descrevia a forma com que as formigas
construíam uma ponte de grama fresca com a ajuda das mandíbulas.
Seria interessante imaginar Antoine retornando a Le Mans
após ter obtido seu primeiro prêmio literário, com Vôo Noturno, em 1931, a fim
de agradecer ao antigo professor pela perspicácia e incentivo, porém suas
lembranças do colégio eram demasiadamente amargas e ele nunca voltou após sua
partida em 1915. Auguste Launay não viveu o suficiente para ver sua intuição
confirmada: os livros de Saint-Exupéry tornarem-se referências nacionais e
modelos pedagógicos em todas as escolas primárias e secundárias da França.
O abade Launay deu a nota doze sobre vinte a
Saint-Exupéry pela história do chapéu. Tirou um ponto pelos erros de
ortografia, porém, em compensação, não fez qualquer comentário sobre a descrição
severa e racista de um dos proprietários do chapéu, um trapeiro apresentado
como “um judeu horrível”, cujo nariz levemente curvo sobressaía na descrição de
um rosto hipócrita e rabugento. Não é possível atribuir essa frase ao simples
erro de julgamento de um rapaz de 14 anos que provavelmente nunca encontrara um
judeu. A imagem refletia as idéias do meio no qual vivia, onde a maioria dos
membros da família só designava a comunidade judaica sob o nome de israelitas.
A ligação de Antoine à Action Française na juventude, compartilhada com seus
colegas de classe, colocara-o em contato com caricaturas malévolas e com as
calúnias que mais tarde seriam utilizadas pelo regime de Vichy como pretexto
para a perseguição de uma minoria étnica.
Durante as férias de verão anteriores à redação de “A Odisséia...”,
Antoine confiara a Simone que simpatizava com o movimento monarquista anti-semita.
Contara-lhe também que fundaria uma sociedade secreta monarquista da qual seria
o presidente, e que esta editaria um folheto de propaganda. No trimestre
seguinte, seus colegas de classe produziram um jornal intitulado Echo du
Troisième, no qual o humor ofuscava um pouco a ambição política. Ao circular de
mão em mão, provocou tal hilaridade que atraiu a atenção de um dos padres, o
qual o confiscou e rasgou. Assim, é impossível saber se o Écho du Troisième
propagava as idéias da Action Française.
O trecho anti-semita de sua redação infantil é menos
interessante como testemunho de um julgamento pouco prudente e mais uma prova
notável de como, mais tarde, Antoine se afastaria da influência perniciosa
recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint-Exupéry de ter sido anti-semita quando
adulto. Sua tolerância ia bem além de uma relação fácil com os judeus, e em Cidadela
escreveu uma parábola bastante enérgica em defesa das minorias perseguidas,
numa época em que Vichy já instaurara a caça aos judeus.
De seu período em Le Mans conservaria algumas lições,
como o valor da amizade e a capacidade de sofrer sem se queixar. Outras, tais
como a imagem cristã de Deus e as dos dogmas católicos, mo- dificaram-se
progressivamente ou foram rejeitadas em contato com as realidades da vida. A
intolerância religiosa, social ou racial transmitida pelos padres no colégio
desapareceu quando ele se convenceu de que a humanidade tendia a uma causa
comum, que transcendia as divisões e as verdades supostamente absolutas.
Ao mesmo tempo em que anunciava a criação de sua
sociedade secreta em 1912, Antoine confiou ao irmão e às irmãs, após regressar
a Saint-Maurice-de-Rémens, que algum dia poderia vir a ser padre. Porém,
nenhuma dessas duas confidências lhe valeu o sensacional sucesso provocado pelo
seu novo companheiro, um rato branco. Segundo Paul Gaultier, seu colega, esse
rato era o único remanescente de um casal que lhe fora presenteado pela tia Anais
de Saint-Exupéry. Como os ratos supostamente tinham pertencido à duquesa de
Ven- dôme, talvez tivessem fortificado as opiniões monarquistas de Antoine, que
escrevia nos cadernos de autógrafos dos colegas: “Pelo meu Deus, meu Rei e
minha Dama”.
O rato ficara numa gaiola perto dos coelhos domesticados
das crianças, mas de manhã a gaiola estava aberta, e o rato desaparecera. É
provável que tia Gabrielle tenha ordenado aos empregados que se livrassem do rato,
mas essa suspeita nunca pôde ser comprovada.
Alguns dias mais tarde, o desaparecimento do rato foi
relegado a segundo plano pelo acontecimento mais importante da vida de Antoine
após a morte do pai. Foi aí, em seu primeiro vôo sobre um campo de aviação
próximo ao castelo, que nasceu sua paixão pela aviação, primeira etapa de um
percurso que terminará com sua morte violenta e solitária.
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