quarta-feira, 19 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 15

 A odisséia do chapéu

            A lição mais importante que Saint-Exupéry aprendeu em Le Mans foi sem dúvida o conforto da camaradagem nos momentos de adversidade. Ao mesmo tempo, teve de aceitar seu quinhão de importunações, especialmente sob a forma de alcunhas. Em casa, era chamado de Tonio. Em Le Mans, foi ridicularizado com dois apelidos que o contrariaram a vida inteira. O primeiro, Tatane, deve-se aos pés grandes, que seriam fonte perpétua de chacota, chegando a ser a recordação mais notável de uma mocinha de 16 anos com a qual Saint-Exupéry dançou na véspera de sua morte, em 1944. Logo depois, Tatane seria substituído pelo apelido ainda mais irritante de Pique la Lune, atraindo a atenção para seu nariz arrebitado e seu ar distraído.

            No âmbito acadêmico, seus resultados não eram nada brilhantes, embora em parte isso fosse resultado de sua má vontade. O número de alunos de sua classe variava entre dezenove e onze, porém Antoine sempre esteve entre os últimos. Suas piores notas eram em história, geografia, alemão, latim e ortografia. Os melhores resultados eram em francês, embora aparentemente sua gramática fosse muito falha. Seu interesse por matemática e geografia, matérias em que sempre teve dificuldade, só foi despertado quando pôde aplicá- las como aviador ou inventor. Ao entrar na vida adulta, o desgosto que sentia pela matemática em Le Mans foi substituído pela paixão pela geometria.

            O único campo no qual se destacou constantemente foi a expressão escrita, que lhe servia como avaliação pessoal e refúgio em períodos de angústia. As melhores notas obtidas por Antoine foram em narração, a atual dissertação, entre 12 e 14 anos, período que coincidiu com sua indisciplina e impertinência.

            Não foi um jesuíta intelectual que incentivou o talento de Antoine. Em 1900, a ordem fora expulsa da França e proibida de ensinar. Em Notre-Dame, bem como em vários outros colégios, os jesuítas desafiaram o governo, deixando sub-repticiamente os padres jesuítas nos bastidores e confiando o ensino a padres recrutados fora de ordens religiosas estabelecidas. Esses sacerdotes diocesanos de povoados e pequenas cidades dos arredores de Le Mans prometeram seguir ao pé da letra as palavras de ordem dos jesuítas, a tal ponto que Notre-Dame-de-Sainte-Croix continuou a ser um santuário do conservadorismo e da monarquia até a Segunda Guerra Mundial. Embora seja de admirar sua coragem em defender sua fé contra as intrigas governamentais, este fato levou antigos alunos a fazerem uma escolha questionável, associando-se, após a queda da França, ao regime de Vichy de Philippe Pétain e à ideologia da Action Française.

            Felizmente, o engajamento político dos padres não os impedia de reconhecer um talento natural. O abade Auguste Launay teve o mérito de discernir antes que todos as excepcionais qualidades de narrador manifestadas por Antoine. O abade pode ser visto numa das mais notáveis fotos de grupo tiradas em Le Mans: dezessete rapazinhos de 13 anos com o olhar solene rodeiam, de pé ou sentados, um sacerdote de rosto severo e com os cabelos cortados á escovinha. Sob uma aparência austera, Auguste Launay, inevitavelmente apelidado de César, era um crítico literário nato. Antes de Antoine chegar à oitava série, suas qualidades de escritor já tinham sido observadas por outros professores, porém o abade Launay foi o único a ver a perfeição do estilo além do talento criador, e passou a utilizar as redações de Saint-Exupéry como modelo pedagógico bem antes que este se tornasse um autor reconhecido e publicado.

            Auguste Launay nasceu e morreu na cidade vizinha de Sillé-le- Guillaume, onde seu pai exercera o ofício de marceneiro. Naquela época não havia nenhuma escola pública, e sua educação foi assegurada devido à vocação religiosa, um favor que ele retribuiria durante seus 34 anos de ensino em Le Mans. A impressão severa da fotografia foi confirmada por antigos alunos, que se recordam de um personagem distante, vestido com uma batina impecável e que, durante as aulas, raramente levantava-se do assento colocado sobre um estrado. Recusava-se a tocar no giz e fazia os alunos escreverem em seu lugar na lousa, interrogando-os interminavelmente sobre a gramática latina.

            Além de latim, ele ensinava grego e religião, matérias contra as quais Antoine se insurgirá violentamente com 14 anos. Mas a prova de seu fascínio pelo francês aparece em duas redações que o abade utilizou em classe como modelos de narração até sua partida de Le Mans, no início da Segunda Guerra Mundial. A mais conhecida é “A Odisséia do Chapéu”, que relata o declínio de uma cartola, que termina como o chapéu do cacique de uma longínqua tribo africana. A redação rendeu a Antoine uma excepcional recompensa quando da entrega dos prêmios de fim de ano.

            Auguste Launay repetiu a sucessivas gerações de alunos de 13 anos que “A Odisséia...” tinha sido brilhantemente construída por meio de um fio condutor consistente e lógico, e que o texto contradizia formalmente os testemunhos dos colegas de Saint-Exupéry que o descreviam como um aluno pouco cuidadoso, cujos trabalhos estavam sempre manchados. Talvez isso fosse verdade quando os temas não lhe pareciam interessantes, porém “A Odisséia...” foi redigida com segurança e maturidade, denotadas na escrita limpa e quase adulta.

            Infelizmente perdeu-se o outro texto modelo, que relatava o enterro de uma formiga, porém o esquema geral do mesmo permaneceu nas memórias de diversos alunos. Supunha-se que a procissão fúnebre fora observada pelo escritor Jean de La Fontaine, que a narrava a um amigo. O ponto culminante da redação de Antoine refletia seu interesse pela invenção mecânica. O cortejo era detido por um fio d’água e ele descrevia a forma com que as formigas construíam uma ponte de grama fresca com a ajuda das mandíbulas.

            Seria interessante imaginar Antoine retornando a Le Mans após ter obtido seu primeiro prêmio literário, com Vôo Noturno, em 1931, a fim de agradecer ao antigo professor pela perspicácia e incentivo, porém suas lembranças do colégio eram demasiadamente amargas e ele nunca voltou após sua partida em 1915. Auguste Launay não viveu o suficiente para ver sua intuição confirmada: os livros de Saint-Exupéry tornarem-se referências nacionais e modelos pedagógicos em todas as escolas primárias e secundárias da França.

            O abade Launay deu a nota doze sobre vinte a Saint-Exupéry pela história do chapéu. Tirou um ponto pelos erros de ortografia, porém, em compensação, não fez qualquer comentário sobre a descrição severa e racista de um dos proprietários do chapéu, um trapeiro apresentado como “um judeu horrível”, cujo nariz levemente curvo sobressaía na descrição de um rosto hipócrita e rabugento. Não é possível atribuir essa frase ao simples erro de julgamento de um rapaz de 14 anos que provavelmente nunca encontrara um judeu. A imagem refletia as idéias do meio no qual vivia, onde a maioria dos membros da família só designava a comunidade judaica sob o nome de israelitas. A ligação de Antoine à Action Française na juventude, compartilhada com seus colegas de classe, colocara-o em contato com caricaturas malévolas e com as calúnias que mais tarde seriam utilizadas pelo regime de Vichy como pretexto para a perseguição de uma minoria étnica.

            Durante as férias de verão anteriores à redação de “A Odisséia...”, Antoine confiara a Simone que simpatizava com o movimento monarquista anti-semita. Contara-lhe também que fundaria uma sociedade secreta monarquista da qual seria o presidente, e que esta editaria um folheto de propaganda. No trimestre seguinte, seus colegas de classe produziram um jornal intitulado Echo du Troisième, no qual o humor ofuscava um pouco a ambição política. Ao circular de mão em mão, provocou tal hilaridade que atraiu a atenção de um dos padres, o qual o confiscou e rasgou. Assim, é impossível saber se o Écho du Troisième propagava as idéias da Action Française.

            O trecho anti-semita de sua redação infantil é menos interessante como testemunho de um julgamento pouco prudente e mais uma prova notável de como, mais tarde, Antoine se afastaria da influência perniciosa recebida em Le Mans. Ninguém pode acusar Saint-Exupéry de ter sido anti-semita quando adulto. Sua tolerância ia bem além de uma relação fácil com os judeus, e em Cidadela escreveu uma parábola bastante enérgica em defesa das minorias perseguidas, numa época em que Vichy já instaurara a caça aos judeus.

            De seu período em Le Mans conservaria algumas lições, como o valor da amizade e a capacidade de sofrer sem se queixar. Outras, tais como a imagem cristã de Deus e as dos dogmas católicos, mo- dificaram-se progressivamente ou foram rejeitadas em contato com as realidades da vida. A intolerância religiosa, social ou racial transmitida pelos padres no colégio desapareceu quando ele se convenceu de que a humanidade tendia a uma causa comum, que transcendia as divisões e as verdades supostamente absolutas.

            Ao mesmo tempo em que anunciava a criação de sua sociedade secreta em 1912, Antoine confiou ao irmão e às irmãs, após regressar a Saint-Maurice-de-Rémens, que algum dia poderia vir a ser padre. Porém, nenhuma dessas duas confidências lhe valeu o sensacional sucesso provocado pelo seu novo companheiro, um rato branco. Segundo Paul Gaultier, seu colega, esse rato era o único remanescente de um casal que lhe fora presenteado pela tia Anais de Saint-Exupéry. Como os ratos supostamente tinham pertencido à duquesa de Ven- dôme, talvez tivessem fortificado as opiniões monarquistas de Antoine, que escrevia nos cadernos de autógrafos dos colegas: “Pelo meu Deus, meu Rei e minha Dama”.

            O rato ficara numa gaiola perto dos coelhos domesticados das crianças, mas de manhã a gaiola estava aberta, e o rato desaparecera. É provável que tia Gabrielle tenha ordenado aos empregados que se livrassem do rato, mas essa suspeita nunca pôde ser comprovada.

            Alguns dias mais tarde, o desaparecimento do rato foi relegado a segundo plano pelo acontecimento mais importante da vida de Antoine após a morte do pai. Foi aí, em seu primeiro vôo sobre um campo de aviação próximo ao castelo, que nasceu sua paixão pela aviação, primeira etapa de um percurso que terminará com sua morte violenta e solitária.


            

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