A amante do rei François e outras
histórias
Saint-Exupéry descobriu uma grande
parte de seus ancestrais paternos graças às pesquisas efetuadas pelo avô; por
outro lado, o contato com a família materna tornou-se mais pessoal e foi
notavelmente embelezado pelo talento de contadora de histórias de Marie, cujo
nome de solteira era Boyer de Fonscolombe. A característica militar
predominante no lado paterno foi compensada pela veia artística presente na
ascendência materna.
Oriunda da nobreza do século XVIII,
a família deixou em Aix- en-Provence uma herança cultural secular. Contam-se
entre seus descendentes numerosos pintores, músicos, escritores, colecionadores
de arte e cientistas. Desde sua infância, Marie foi incentivada a pintar e a
escrever, e seus filhos cresceram num universo do qual conservaram
particularmente a lembrança da mãe contando histórias, enquanto pintava seus
retratos.
Aliás, os vínculos de Saint-Exupéry com
Le Mans, onde ele estudou com os jesuítas, nunca tiveram o encanto criado pela
atmosfera mais calorosa e ensolarada da terra natal da mãe. Ao ficar viúva, Marie
refugiou-se com os filhos no castelo familiar de Aix. Quarenta anos mais tarde,
a Provença seria a última imagem que Antoine levaria da França, antes de seu
avião desaparecer no Mediterrâneo.
O castelo provençal de La Môle,
perto de Saint-Tropez, onde Marie crescera, fora adquirido em 1770. Seu avô, Emmanuel
de Fonscolombe, barão de La Môle, casou-se com a filha de um armador marselhês
e tornou-se prefeito do povoado, embora passasse parte de seu tempo compondo
música. As opiniões monárquicas da família de Fonscolombe eram ainda mais
impressionantes que as dos Saint- Exupéry. O tio de Marie, barão Fernand, casado
com a herdeira de um Ijanco de Marselha, fora ajudante do conde de Paris,
pretendente ao trono da França. O castelo do tio Fernand, em Aix, foi uma das
numerosas mansões aristocráticas onde Antoine passou parte de suas férias.
O sobrenome de solteira da mãe de Marie
era Romanet de Lestrange, família feudal com múltiplas ramificações. Entre seus
ancestrais figurava uma amante de François I, no século XVI, e um superior da
ordem dos trapistas, durante o Primeiro Império, que teria persuadido Napoleão
a adotar uma atitude compreensiva com relação às ordens religiosas. Marie possuía
apenas um reduzido dote e a condessa de Tricaud precisou ter muita astúcia e
perseverança para encontrar-lhe um partido conveniente. Ela se dedicou exaustivamente
à busca de um marido possível, especialmente em seu próprio meio.
Entre seus ancestrais, um marquês, Joseph
de Lestrange, fora nomeado barão por Napoleão, em 1814. O marquês casou-se com
uma nobre, Adélaïde Green de Saint-Marsault. Em 1790, a prima de Adélaïde,
Victoire Green de Saint-Marsault, desposou um fidalgo provinciano, Georges de
Saint-Exupéry, conde de Saint-Amans. Esse vínculo tênue lhe foi suficiente para
iniciar as negociações de aliança com a família de Saint-Exupéry. O candidato, Jean
de Saint-Exupéry, foi enviado a Lyon como agente de seguros para representar a companhia
Du Soleil. Marie, que na época tinha apenas 18 anos, foi sondada nos jantares
semanais das quartas-feiras e nos saraus musicais oferecidos por tia Gabrielle
em seu apartamento lionês da Place Bellecour.
Um século após o casamento, ainda considera-se
que Marie teve sorte ao casar-se com um tão “belo nome”, apesar da posição
social de sua própria família e da falta de fortuna de Jean de Saint-Exupéry. No
entanto, todos os talentos de casamenteira da tia De Tricaud não foram
suficientes para encontrar marido para a irmã de Marie, Madeleine de
Fonscolombe, que morreu solteira. Madeleine viria a fazer parte da roda
feminina de Saint-Maurice. Uma fotografia sua de perfil, observando o sobrinho,
é particularmente interessante, pelos traços herdados dos Fonscolombe. O nariz
arrebitado de Antoine, que o tornaria vítima de tanta chacota desde a infância
até a idade adulta, provinha de sua família materna.
Obscuras forças políticas também
estiveram presentes nos primeiros anos de Saint-Exupéry. Vista do interior, a
identidade de opinião de todos os aristocratas não era tão evidente quanto
poderia se supor. O clã monárquico legitimista de Fernand de Saint-Exupéry nutria
algumas suspeitas em relação à casta dos Fonscolombe, vinculados ao pretendente
orleanista.
Segundo André de Fonscolombe, atualmente
diplomata aposentado, que era o primo preferido de Antoine, suspeitava-se que
sua família tivesse sido conspurcada pelas perigosas idéias socialistas pregadas
por um dos seus ancestrais do século XVIII, um compositor chamado Emmanuel de
Fonscolombe. Na época, os aristocratas esclarecidos tinham sofrido a influência
do conde Claude de Saint-Simon, precursor das campanhas em favor da igualdade e
divisão da propriedade. Emmanuel era amigo do compositor Félicien David, discípulo
de Saint-Simon. Quando as famílias Saint-Exupéry e Fonscolombe uniram-se em
1896, as idéias de Saint-Simon ainda eram consideradas uma traição por muitos monarquistas.
Para a linhagem militar dos
Saint-Exupéry, o compositor Emmanuel de Fonscolombe era considerado um
personagem um pouco extravagante. Foi mestre de capela em Aix-en-Provence e
membro da academia Santa Cecília, em Roma. Compôs missas e motetes e redigiu um
estudo sobre o músico veneziano Carissimi.
O pai de Marie, Charles de
Fonscolombe, também era compositor, e quis que suas duas filhas estudassem
piano — lições que elas continuaram em Saint-Maurice. Todos os filhos de Marie
aprenderam a tocar algum instrumento, enquanto ela acrescentava a seus múltiplos
talentos o de compor música sacra sobre textos em provençal.
André de Fonscolombe ia
freqüentemente a Saint-Maurice, onde recorda ter ouvido, sob a direção de
diversos maestros, trechos de Hahn, Fauré, Schumann, Schubert e Massenet. Antoine
aprendeu a tocar violino, e seu principal talento consistia num repertório de
canções folclóricas que deliciaria seus colegas de escola e mais tarde seus
amigos, após ter-se tornado piloto. Nem sempre manifestava grande respeito pelo
interesse da mãe pela música contemporânea, particularmente pela de Debussy.
Repetia de bom grado uma brincadeira musical, que consistia em fazer rolar
laranjas sobre o teclado do piano, desafiando seus âmigos a dizerem que o
resultado equivalia a uma partitura de Debussy.
A abertura de espírito de Marie de
Saint-Exupéry em matéria de cultura moderna manifestava-se também na pintura,
como pode ser comprovado pelos seus talentos na técnica do pastel. Um dos seus
ancestrais, Jean-Baptiste de Fonscolombe, fora membro da Academia de Belas
Artes de Marselha e da Academia Italiana Del Di- segno. Sua inspiração pessoal
era mais contemporânea e seus últimos retratos se parecem com as obras de Marie
Laurencin.
Levando em consideração a ameaçadora
influência filosófica de Saint-Simon, é pouco provável que Fernand de
Saint-Exupéry tenha acolhido de bom grado a tendência da nora ao individualismo
e à tolerância, bem como sua vontade de situar a cultura praticamente no nível
da religião. No entanto, no âmbito familiar, Marie exerceu apenas uma
autoridade limitada sobre a educação dos filhos. A lei afirmava que as mulheres
eram incapazes de exercer uma decisão independente, devendo conseqüentemente
ficar subordinadas aos homens. Não eram consideradas as necessidades afetivas.
Antoine e seu irmão François viveram
sob a tutela de facto de um conselho de família dirigido pelo avô paterno,
Fernand. No plano espiritual, Antoine devia acatar as opiniões de seu tio e
padrinho, Roger, ao qual a honra obrigava, na ausência de um pai, a incentivar uma
forte vocação religiosa. Quando Antoine fez 9 anos, decidiu-se que deveria
preparar-se para seu futuro papel de chefe de família e de militar. De um
momento para o outro, foi arrancado da indulgência feminina do universo de
Saint-Maurice e jogado na atmosfera austera e viril de um colégio de jesuítas,
em Le Mans, onde seu pai e tio tinham estado internos.
Casamento de Marie e Jean de Saint-Exupéry. Em primeiro plano, tia Gabrielle |
Nenhum comentário:
Postar um comentário