sábado, 8 de julho de 2017

TERRA DOS HOMENS - 13

OÁSIS

            Já vos falei tanto do deserto que, antes de falar mais, gostaria de descrever um oásis. Aquele cuja imagem me vem agora à lembrança não está perdido no fundo do Saara. Mas um outro milagre do avião é que ele nos mergulha diretamente no centro do mistério. Se fôsseis o biologista, estudando, através da vigia de bordo, o formigueiro humano, haverieis de considerar sem emoção as cidades pousadas em suas planícies, no centro das estradas que se abrem em forma de estrela e que alimentam essas cidades, como artérias, com a seiva dos campos. Mas uma agulha treme sobre um manómetro — e aquela moita verde, lá embaixo, transforma-se num universo. Sois prisioneiros de um tabuleiro de relva num parque adormecido.

            Não é a distância que mede o afastamento. O muro de um jardim de nossa casa pode encerrar mais segredos que a Muralha da China, e a alma de uma simples mocinha é melhor protegida pelo silêncio do que os oásis do Saara pela extensão das areias.

            Contarei uma curta escala em algum lugar do mundo. Foi perto de Concórdia, na Argentina, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar: o mistério está em toda parte.

            Eu havia aterrissado num campo e não sabia que ia viver um conto de fadas. O velho Ford em que me levavam não oferecia nada de particular. Nem aquele casal pacato que me havia recolhido:

            — O senhor ficará conosco hoje à noite...

            Mas em uma curva da estrada surgiram, ao luar, umas árvores e, atrás das árvores, aquela casa. Que estranha casa! Grossa, maciça, quase uma cidadela. Um castelo de lenda que oferecia, uma vez passado o portal, um abrigo tão pacífico, tão seguro, tão protegido como um mosteiro.

            Logo apareceram duas moças. Olharam-me gravemente, como dois juízes no limiar de um reino proibido: a mais nova fez um leve muxoxo e bateu no chão com uma varinha verde. Feitas as apresentações, elas me estenderam as mãos sem dizer palavra, com um ar de curioso desafio, e desapareceram.

            Eu estava divertido e ao mesmo tempo encantado. Tudo aquilo era simples, silencioso, furtivo como a primeira palavra de um segredo.

            — Eh, eh, essas meninas são uns bichos do mato — disse simplesmente o pai.

            E entramos.

            Eu amava, no Paraguai, um irônico matinho que aparece entre as pedras do calçamento da capital como se viesse, de parte da mata virgem invisível, mas presente, ver se os homens ainda ocupavam a cidade, se ainda não era chegada a hora de os troncos crescerem, afastando as pedras. Amava aquela espécie de descuido que exprime apenas uma grande riqueza. Mas ali, naquela casa, eu me maravilhei.

            Ali tudo estava descuidado, adoravelmente em ruínas qual uma velha árvore coberta de musgo que a velhice alquebrou. Como um banco de madeira em que os pares amorosos vão se sentar através de gerações. O madeiramento apodrecido, os batentes roídos, as cadeiras cambaias. Mas, se nada era consertado, tudo estava limpo, limpo com uma espécie de fervor. Tudo areado, encerado, brilhante.

            A sala de visitas tinha uma fisionomia extraordinariamente intensa, como a de uma velha cheia de rugas. Rachas das paredes» rasgões do forro, tudo isso eu admirava, e, acima de tudo, o assoalho que afundava aqui e oscilava mais adiante, como ponte malsegura, mas sempre envernizado, polido, lustroso. Estranha casa que não sugeria nenhuma negligência, nenhuma displicência, e sim um extraordinário respeito. Cada ano juntava, sem dúvida, alguma coisa ao seu encanto, à complexidade de sua fisionomia, ao fervor de sua atmosfera amiga e também aos perigos da viagem que era preciso fazer para ir da sala de visitas à sala de jantar.

            — Cuidado!

            Era um buraco. Fizeram notar que eu podia facilmente quebrar uma perna caindo em um buraco daqueles. Quanto ao buraco, ninguém era responsável por ele: era obra do tempo. Aquele desprezo soberano pela necessidade de pedir desculpas tinha alguma coisa de fidalgo. Não me disseram: “Poderíamos mandar tapar esses buracos, temos dinheiro, mas..." Também não me disseram — o que, todavia, era verdade: "Alugamos isto à municipalidade por trinta anos. O governo é que deve fazer os consertos. Ficamos discutindo, teimando..." Desdenhavam dar explicações, e isso me encantava. No máximo, o dono da casa notava:

            — Eh! Eh! Está um pouco estragado isso...

            Mas dizia isso de um modo tão descuidado que suspeitei de que aquilo não entristecia nada o meu bom amigo. Na verdade, o que aconteceria se uma turma de pedreiros, carpinteiros, marceneiros e estucadores viesse trazer para aquele passado seus instrumentos sacrílegos? Eles fariam em oito dias uma outra casa, uma casa desconhecida onde os antigos donos se sentiriam como visitas. Uma casa sem mistérios, sem recantos, sem alçapões sob nossos pés, sem masmorras ocultas — uma espécie de salão de prefeitura...

            Fora com toda a naturalidade que as moças haviam desaparecido naquele casarão misterioso. Como deveriam ser os porões se a sala de visitas já continha as riquezas de um porão! Quando já se adivinhava ali que bastava abrir um armário qualquer para que aparecessem maços de cartas amareladas, maços de recibos do bisavô, e chaves em maior número que todas as fechaduras da casa, chaves das quais nem uma, com certeza, serviria em fechadura nenhuma... Chaves maravilhosamente inúteis que perturbam a razão, que fazem sonhar com subterrâneos, cofres ocultos, moedas de ouro...

            — Vamos para a mesa, sim?

            Fomos para a mesa. Eu respirava naquelas salas, como um incenso, esse cheiro de velha biblioteca que vale todos os perfumes do mundo. E sobretudo admirava o transporte dos lampiões. Verdadeiros lampiões pesados que eram levados de uma sala a outra como nos tempos mais profundos de minha infância, lançando nas paredes sombras maravilhosas. Grandes lampiões que despejavam florões de luz e palmas de sombra. Uma vez colocados os lampiões em seus lugares, as praias de claridade se imobilizavam, cercadas pelas vastas reservas de noite onde havia estalidos de madeira.

            As duas moças reapareceram tão misteriosamente, tão silenciosamente como haviam sumido. Sentaram-se gravemente à mesa. Sem dúvida haviam dado comida aos seus cães e aos seus pássaros, tinham aberto suas janelas para a noite clara e respirado com doçura o cheiro de mato trazido pelo vento noturno. Agora, desdobrando o guardanapo, elas me vigiavam disfarçadamente, com prudência, perguntando-se talvez se deviam me incluir na lista de seus animais domésticos. Pois possuíam, além de cães e pássaros, uma iguana, um mangusto, uma raposa, um macaco e abelhas. Todos esses bichos vivendo em promiscuidade, entendendo-se maravilhosamente, compondo um novo paraíso terrestre. Elas reinavam sobre todos os animais da criação, encantando-os com as suas mãos pequenas, dando-lhes água e comida, contando-lhes histórias que todos — das abelhas ao mangusto — ouviam com atenção.

            Senti que as duas moças tão vivas empregavam todo o seu espirito crítico, toda a sua agudez para lançar sobre o homem que estava em sua frente um julgamento rápido, secreto e definitivo. Assim também na minha infância as minhas irmãs davam notas aos convidados que pela primeira vez honravam a nossa mesa. Quando a nossa conversa enfraquecia, ouvia-se de repente, no silêncio:

            — Onze!

            E ninguém, a não ser minhas irmãs e eu, sabia o que queria dizer aquele "onze”.

            A lembrança dessa brincadeira perturbava-me um pouco. O que mais me constrangia ainda era sentir a argúcia de meus juízes. Juízes que conheciam as manhas de todos os bichos; que, pela maneira de andar da raposa, sabiam se ela estava de bom ou mau humor, que possuíam um conhecimento tão profundo dos movimentos interiores.

            Agradavam-me aqueles olhares aguçados e aquelas duas pequenas almas tão justiceiras — mas como seria preferível que elas mudassem de jogo! Entretanto, com medo do "onze”, eu ia, baixamente, lhes passando o sal, servindo o vinho — mas quando erguia os olhos encontrava sempre aquela mesma doce gravidade de juízes incorruptíveis.

            A própria lisonja não teria efeito: elas ignoravam a vaidade. A vaidade, mas não o belo orgulho. Pensavam de si mesmas, sem meu auxilio, muito mais bem do que eu ousaria dizer. Não pensei nem mesmo em procurar prestígio na minha profissão de aviador. É tão mais audacioso subir até os últimos galhos de uma árvore só para dar bom-dia à ninhada dos passarinhos e saber se eles já estão se emplumando!

            E as duas fadas silenciosas me vigiavam tanto, e eu encontrava tantas vezes seus olhares furtivos que parei de falar. Fez-se um silêncio — e durante esse silêncio alguma coisa sibilou levemente no assoalho, fez um pequeno barulho sob a mesa e silenciou. Ergui os olhos, intrigado. Então, sem dúvida satisfeita com seu exame, mas usando a última pedra de toque e mordendo o pão com seus jovens dentes selvagens, a mais nova me explicou simplesmente, com uma candura com que ela pretendia espantar o bárbaro, se eu o fosse:

            — São as víboras.

            E calou-se, como se essa explicação devesse bastar para qualquer pessoa que não fosse muito tola. Sua irmã lançou-me um olhar rápido para julgar meu primeiro movimento, e ambas baixaram para os pratos os rostos mais doces e ingênuos do mundo.

            — Ah, são víboras...

            Naturalmente, essas palavras me escaparam. Aqueles bichos haviam passado entre minhas pernas, junto a meus calcanhares, e eram víboras...

            Felizmente para mim, sorri. E sorri sem constrangimento: elas o teriam notado. Sorri porque me sentia contente, porque aquela casa, decididamente, de minuto a minuto, me agradava mais; e também porque queria saber mais alguma coisa a respeito das víboras. A mais velha veio em meu auxílio:

            — Elas fizeram o ninho num buraco, debaixo da mesa.

             — Às dez horas da noite, elas voltam — acrescentou a irmã. — Durante o dia, caçam.

            Agora, por minha vez, eu olhava disfarçadamente as duas moças. Aquela fineza de espirito, aqueles sorrisos silenciosos sob a fisionomia calma. E admirava o reinado que elas exerciam...


            Hoje, fico pensando. Tudo isso foi há muito tempo. Que terá sido daquelas duas fadas? Com certeza estão casadas. Mas terão mudado? É tão grave passar da condição de moça para a de mulher... Que fazem em suas casas novas? Como vão suas relações com as ervas daninhas e as cobras? Elas estavam ligadas a qualquer coisa de universal. Mas vem o dia em que a mulher despeita dentro da mocinha. Ela sonha com um visitante que mereça a nota 19. Um 19 pesa no fundo de seu coração. Então um imbecil se apresenta. Pela primeira vez, aqueles olhos tão agudos se enganam — e veem o imbecil pintado em cores lindas. Se o imbecil diz versos, ela o julga poeta. Pensa que ele compreende o assoalho esburacado, que ele adora os mangustos. Pensa que ele se alegra com a confiança das víboras brincando em seus pés, debaixo da mesa. Dá-lhe o coração que é um jardim selvagem — a ele, que só ama os parques bem-tratados. E o imbecil leva a princesa como sua escrava.


Nenhum comentário:

Postar um comentário