Em 1917, a Alemanha recuperara vantagem na guerra, e esta
dava a impressão de que duraria bem mais do que fora previsto. Um jovem de 17
anos estava praticamente certo de que seria mobilizado. Muitos colegas de
classe de Saint-Exupéry, em Le Mans ou Friburgo, já tinham sido convocados.
Após os massacres de Marne e Verdun, a escolha das armas não era mais uma
simples consideração téorica mas sim uma questão de sobrevivência. Os vínculos
tradicionais da família com o exército predestinavam-no à infantaria, a exemplo
do padrinho Roger. O conselho de família, porém, pronunciou-se a favor da
marinha. Além de ter a vantagem de ser menos mortífera, a marinha era uma praça
forte monarquista, apelidada de la Royale. Os mesmos motivos que compeliam as
famílias conservadoras a enviar seus filhos a escolas jesuítas influíam na
escolha da corporação militar.
A herança familiar era bastante gloriosa para justificar
uma carreira naval. No livro redigido por Fernand de Saint-Exupéry sobre a
história de sua linhagem, que Antoine folheara em Le Mans, um dos ancestrais mais
aventureiros fora Georges de Saint-Exupéry. Oficial de infantaria, relatou suas
experiências na Guerra da Independência Americana, em que assistira à rendição
britânica. Efetuou parte da campanha em um navio e participou de uma batalha
contra a frota inglesa.
Sua esposa, Victoire Green de Saint-Marsault, filha de um
oficial da marinha, era sobrinha de um tenente morto a bordo de La Belle Poule
durante um combate com a nau de guerra britânica Arethusa, em 1778.
Para se preparar para prestar o exame de admissão para a
escola naval, Saint-Exupéry foi enviado a uma classe preparatória em Paris, no Liceu
Saint-Louis, boulevard Saint-Michel. Outros estudantes estavam destinados a grandes écoles
ou academias militares, e se dividiam em quatro turmas. Candidato à escola
naval, Antoine era um flottard, e suas cartas à mãe denotavam profundo desprezo
pelos outros grupos: os pistons, que esperavam entrar na Ecole Centrale, escola
de engenharia civil; os taupins, que tinham escolhido a escola Politécnica de
engenharia militar; e os cyrards, que se preparavam para uma carreira no
exército passando pela academia militar de Saint-Cyr.
Uma lista dos estudantes da época mostra o sucesso obtido
pela campanha promocional dos jesuítas para alimentar as grandes escolas com
jovens de origem aristocrática ou burguesa. Isso era particularmente
impressionante no que se refere aos flottards, pois todos os amigos mencionados
por Saint-Exupéry em sua correspondência eram provenientes da nobreza
provinciana. Vários estudantes que freqüentaram o Liceu Saint-Louis ao mesmo
tempo que Saint-Exupéry se tornariam quadros na área civil ou militar dos anos
30 e, em 1940, teriam de optar pelo regime de Vichy ou pela França livre.
Nos últimos meses da guerra de 1914-1918 houve uma
notável diminuição da disciplina em Saint-Louis, onde a maioria dos jovens
estava esperando a convocação. Antoine também foi contagiado pelo clima de
rebelião, acentuado pela rivalidade freqüentemente física entre as quatro
tendências das classes preparatórias. Alguns de seus desafios eram pueris, como
acender rojões para perturbar as aulas e chamar em seguida os bombeiros. Mas era
também seu primeiro contato com a vida numa capital na qual a frivolidade era
só levemente refreada pelo perigo dos tiros do canhão alemão Grosse Bertha ou
pelos ataques dos bombardeiros Gotha. À noite, aqueles que eram internos como
Antoine pulavam os muros para se dirigir aos cafés onde soldados que estavam de
licença misturavam-se com moças de pouca virtude. Uma noite, Saint-Exupéry
quase foi surpreendido por um professor quando escapulia da escola através de
um cano de escoamento das águas de chuva, após ter dito aos colegas que tinha
um encontro com uma mignonne, termo que se utilizava para descrever uma relação
casual.
Durante sua estada em Paris, alguns familiares ficaram
encarregados de vigiar o comportamento de Antoine e de enviar relatórios ao
conselho de família. As primeiras cartas de Antoine à mãe foram
tranqüilizadoras. Ele afirmava estar resistindo às tentações de uma sociedade
liberada, lendo a Bíblia e dedicando o tempo livre aos estudos. Assegurando que
a imoralidade não era encontrada nos dormitórios, acrescentava: “É evidente que
existem alguns que farreiam na cidade, mas até eles respeitam a moral dos
outros e admiram aqueles que se comportam”.
Seu respeito pelo regulamento foi recompensado quando
eleito brigadeiro dos gendarmes, com uma dúzia de alunos sob suas ordens, para
fazer respeitar a disciplina. Porém, sua vida social era o assunto predominante
das cartas, que refletiam um fervor monarquista intacto. Após um almoço com a
duquesa de Vendôme, irmã do rei da Bélgica, escreveu que estava “louco de
alegria” e que a duquesa o convidara para acompanhá-la à Comédie Française.
Antoine de Saint-Exupéry durante o período de preparação para a Escola Naval |
No outono de 1918 foi enviado a Besançon para fazer
exames médicos, que confirmaram sua boa saúde. Já não havia qualquer obstáculo
para sua mobilização imediata, porém ele encarava essa perspectiva com bom
humor, ilustrando suas cartas com divertidas caricaturas. À mãe, que devia
estar extremamente ansiosa após ter visto tantas mutilações e tanto desespero
nos trens sanitários que passavam por Ambérieu, ele escrevia que estava fazendo
progressos em alemão.
A guerra terminou praticamente no dia em que ele teria de
enfrentar suas obrigações militares. Embora nenhuma carta relate o que deve ter
sentido na época, sua exclusão da Grande Guerra reforçaria mais tarde sua
determinação de combater o regime nazista, quando poderia pedir dispensa devido
à idade. Saint-Exupéry não conheceu a experiência nem o prestígio de uma
geração de jovens que, praticamente com sua idade, tinham posto sua coragem à
prova do fogo. A celebração heróica do armistício no pós-guerra, com seus
desfiles e monumentos aos mortos patrióticos, apenas acentuou a decepção sentida
por ter ficado à margem da maior aventura de sua vida. Como muitos homens de
sua idade que por pouco não foram convocados, teve de enfrentar as questões
referentes a seu atraso em ir ao front.
Como ficaria evidente durante a Segunda Guerra Mundial, Antoine sempre foi possuído
pelo medo de ser considerado um desertor.
Para muitas personalidades de sua geração, e
particularmente para um grupo de escritores contemporâneos como Céline, Montherlant,
Aragon e Drieu la Rochelle, a futura opção política seria influenciada pela sua
participação no front durante a
Grande Guerra. De todos os autores que aliavam a ação e a literatura, sem
dúvida o exemplo mais contundente foi o de Joseph Kessel, que tinha apenas dois
anos mais que Saint-Exupéry mas já analisava as experiências físicas e
psicológicas dos combates aéreos antes mesmo que Antoine tivesse terminado seu
serviço militar no período de paz.
Após uma longa preparação para uma carreira militar heróica,
o anti-clímax do retorno de Saint-Exupéry a uma realidade decepcionante precipitou
a queda de seu interesse já declinante pela marinha. Em junho de 1919, foi
reprovado no exame de admissão à escola naval, tirando apenas sete sobre vinte
na prova de francês, cujo tema era a volta de um soldado alsaciano a sua
cidade, após a assinatura do armistício de novembro de 1918. Mais tarde, Saint-
Exupéry esmerou-se em fornecer pistas falsas aos jornalistas ao ser questionado
sobre seu lamentável fracasso no exame, embora sua falta de entusiasmo fosse a
explicação mais evidente. Após quatro anos de glória prometida, durante os quais
o exército francês cobrira-se de honras inigualáveis desde Napoleão, uma
carreira militar em tempo de paz era decepcionante.
Numa carta à irmã Simone, ele confessa: “Não posso me
apresentar ao exame da escola naval porque não estou estudando o programa.
Enfim, é preciso ser fatalista”. Sua decisão de abandonar a marinha revelou ser
sensata a longo prazo. A maioria dos aspirantes de sua época, que se tornaram
oficiais da Royale, foram envolvidos num dos mais tristes episódios da Segunda
Guerra Mundial, quando o almirante François Darlan, ministro de Philippe Pétain,
opôs-se à reunião da marinha francesa à frota britânica. Em 1942, jovens oficiais,
alimentados pela ambição de vingar a derrota de Trafalgar, preferiram colocar a
pique toda a frota francesa a se unir às forças anglo-saxãs para libertar a
França.
Entre os oficiais da marinha que escaparam da infâmia do
colaboracionismo figurava o primo e amigo de Antoine, Honoré d’Estienne
d’Orves, que estudou em Paris na mesma época que ele e se tornou um dos
primeiros heróis da resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Seu
itinerário pessoal como gaullista, aristocrata e oficial da marinha parecerá
ainda mais nitidamente notável em 1940, quando Saint-Exupéry opta por Pétain.
Nas primeiras semanas em que esteve interno no Liceu
Saint- Louis, Saint-Exupéry fez o que pôde para garantir à sua mãe que
permanecia fiel à fé católica, porém suas cartas, nas quais diz ter se
emocionado com a Bíblia e os cânticos de Salomão, não parecem sinceras. Embora
a linguagem e o estilo da Bíblia tivessem influenciado posteriormente sua Cidadela, a vida na capital incitava-o
cada vez mais a contrariar seus princípios, provocando uma crescente
inquietação na rede de parentes e amigos que vigiava seu comportamento.
O Liceu Saint-Louis na época em que Saint-Exupéry foi seu aluno |
Em 1918, Maurice Sudour foi nomeado provedor-adjunto,
assumindo futuramente total responsabilidade pela escola. Tranformou-se no
herói legendário dos jovens que, pela idade, não tinham podido participar da
guerra. Homem grande e distinto, de cerca de 40 anos, ganhara a cruz de guerra
nas trincheiras, onde servira como capelão dos exércitos. Seu ato mais corajoso
estava longe de ser guerreiro. No dia de Natal de 1917, no campo de batalha de
Verdun, cantara Minuit Chrétien para os alemães que estavam à frente, em suas
trincheiras. Um capelão alemão respondeu-lhe em sua própria língua.
Tendo sobrevivido a um massacre tão absurdo, o abade
Sudour mostrou-se pródigo em afeição e dedicação aos jovens que ele considerava
felizes sobreviventes. Em Bossuet, seu grande apartamento estava diariamente
aberto a conversas intermináveis, acompanhadas por uma xícara de chá ou de
café, quando não os levava para uma escalada nos Alpes. Havia outras duas
razões para sua popularidade: era considerado um professor excessivamente
indulgente e possuía o recorde de rapidez da escola para rezar a missa. O
serviço em latim fora cronometrado em 16 minutos, quando habitualmente durava
pelo menos meia hora.
Esse padre era do interior, nascido numa família de
agricultores de Corrèze, não longe do povoado de Saint-Exupéry-les-Roches, que
deve seu nome a Saint-Exuperius, bispo de Toulouse no século V. Filho de granjeiro,
Maurice Sudour sentia-se particularmente cômodo com os rapazes provenientes do
meio rural, como Antoine — tendo que lutar, de maneira cada vez mais evidente,
para conservar uma fé que estava diminuindo.
Não resta vestígio algum das longas conversas espontâneas
que compartilharam na época, nas quais Saint-Exupéry revelou seu empenho em
compreender as contradições inerentes a uma fé cristã e a um Deus que levara
seu irmão. Mas entre eles existia uma compreensão, tanto espiritual como intelectual,
que se transformaria numa amizade duradoura. Em 1931, mais de dez anos após ter
abandonado Bossuet, Antoine pediu que Maurice Sudour abençoasse sua união com
Consuelo Suncin.
Em termos bíblicos, o sacerdote era também um instrumento
de Deus, pois recomendou Antoine a um emprego de piloto de linha em 1926, ano
no qual este publicou seu primeiro conto. No período cinzento após sua
formatura, antes de ter encontrado seu rumo e a carreira que o salvaria da
mediocridade, Saint-Exupéry freqüentemen- te viu nele um conselheiro
espiritual. Sem o abade Sudour, talvez não tivesse emergido com sucesso dos
meses de provações que forjaram sua personalidade, depois de caminhar
longamente sem rumo tendo conhecido simultaneamente a exaltação e o desânimo.
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