terça-feira, 25 de julho de 2017

A VIDA DE SAINT-EXUPÉRY - 21


            Em 1917, a Alemanha recuperara vantagem na guerra, e esta dava a impressão de que duraria bem mais do que fora previsto. Um jovem de 17 anos estava praticamente certo de que seria mobilizado. Muitos colegas de classe de Saint-Exupéry, em Le Mans ou Friburgo, já tinham sido convocados. Após os massacres de Marne e Verdun, a escolha das armas não era mais uma simples consideração téorica mas sim uma questão de sobrevivência. Os vínculos tradicionais da família com o exército predestinavam-no à infantaria, a exemplo do padrinho Roger. O conselho de família, porém, pronunciou-se a favor da marinha. Além de ter a vantagem de ser menos mortífera, a marinha era uma praça forte monarquista, apelidada de la Royale. Os mesmos motivos que compeliam as famílias conservadoras a enviar seus filhos a escolas jesuítas influíam na escolha da corporação militar.
            A herança familiar era bastante gloriosa para justificar uma carreira naval. No livro redigido por Fernand de Saint-Exupéry sobre a história de sua linhagem, que Antoine folheara em Le Mans, um dos ancestrais mais aventureiros fora Georges de Saint-Exupéry. Oficial de infantaria, relatou suas experiências na Guerra da Independência Americana, em que assistira à rendição britânica. Efetuou parte da campanha em um navio e participou de uma batalha contra a frota inglesa.
            Sua esposa, Victoire Green de Saint-Marsault, filha de um oficial da marinha, era sobrinha de um tenente morto a bordo de La Belle Poule durante um combate com a nau de guerra britânica Arethusa, em 1778.
            Para se preparar para prestar o exame de admissão para a escola naval, Saint-Exupéry foi enviado a uma classe preparatória em Paris, no Liceu Saint-Louis, boulevard Saint-Michel. Outros estudantes estavam destinados a grandes écoles ou academias militares, e se dividiam em quatro turmas. Candidato à escola naval, Antoine era um flottard, e suas cartas à mãe denotavam profundo desprezo pelos outros grupos: os pistons, que esperavam entrar na Ecole Centrale, escola de engenharia civil; os taupins, que tinham escolhido a escola Politécnica de engenharia militar; e os cyrards, que se preparavam para uma carreira no exército passando pela academia militar de Saint-Cyr.
            Uma lista dos estudantes da época mostra o sucesso obtido pela campanha promocional dos jesuítas para alimentar as grandes escolas com jovens de origem aristocrática ou burguesa. Isso era particularmente impressionante no que se refere aos flottards, pois todos os amigos mencionados por Saint-Exupéry em sua correspondência eram provenientes da nobreza provinciana. Vários estudantes que freqüentaram o Liceu Saint-Louis ao mesmo tempo que Saint-Exupéry se tornariam quadros na área civil ou militar dos anos 30 e, em 1940, teriam de optar pelo regime de Vichy ou pela França livre.
            Nos últimos meses da guerra de 1914-1918 houve uma notável diminuição da disciplina em Saint-Louis, onde a maioria dos jovens estava esperando a convocação. Antoine também foi contagiado pelo clima de rebelião, acentuado pela rivalidade freqüentemente física entre as quatro tendências das classes preparatórias. Alguns de seus desafios eram pueris, como acender rojões para perturbar as aulas e chamar em seguida os bombeiros. Mas era também seu primeiro contato com a vida numa capital na qual a frivolidade era só levemente refreada pelo perigo dos tiros do canhão alemão Grosse Bertha ou pelos ataques dos bombardeiros Gotha. À noite, aqueles que eram internos como Antoine pulavam os muros para se dirigir aos cafés onde soldados que estavam de licença misturavam-se com moças de pouca virtude. Uma noite, Saint-Exupéry quase foi surpreendido por um professor quando escapulia da escola através de um cano de escoamento das águas de chuva, após ter dito aos colegas que tinha um encontro com uma mignonne, termo que se utilizava para descrever uma relação casual.
            Durante sua estada em Paris, alguns familiares ficaram encarregados de vigiar o comportamento de Antoine e de enviar relatórios ao conselho de família. As primeiras cartas de Antoine à mãe foram tranqüilizadoras. Ele afirmava estar resistindo às tentações de uma sociedade liberada, lendo a Bíblia e dedicando o tempo livre aos estudos. Assegurando que a imoralidade não era encontrada nos dormitórios, acrescentava: “É evidente que existem alguns que farreiam na cidade, mas até eles respeitam a moral dos outros e admiram aqueles que se comportam”.
            Seu respeito pelo regulamento foi recompensado quando eleito brigadeiro dos gendarmes, com uma dúzia de alunos sob suas ordens, para fazer respeitar a disciplina. Porém, sua vida social era o assunto predominante das cartas, que refletiam um fervor monarquista intacto. Após um almoço com a duquesa de Vendôme, irmã do rei da Bélgica, escreveu que estava “louco de alegria” e que a duquesa o convidara para acompanhá-la à Comédie Française.
           
Antoine de Saint-Exupéry durante o
período de preparação para a Escola Naval
Suas preocupações pessoais, tais como a falta de seus chocolates preferidos, sua necessidade de dinheiro para comprar um chapéu-coco ou sua irritação pela má qualidade dos cordões dos sapatos, pareciam bastante irreais em comparação com sua preocupação primordial: uma impaciência para participar do grande combate que se realizava a poucos quilômetros. Em 1918, um bombardeio de Zepelins e Gothas provocou o deslocamento dos estudantes para a segurança de uma escola de subúrbio. Em junho, Saint-Exupéry expunha planos de fuga a pé numa carta à mãe, se os alemães chegassem a Paris após uma nova ofensiva. Quanto mais o perigo aumentava, mais tornava-se jovial o tom das cartas em que se referia a uma eventual partida para o front. As cartas permitiam entrever também que suas ambições navais tinham se atenuado e que o sonho aeronáutico, que chegara ao auge em 1912, tinha recomeçado a obcecá-lo. Quando seu amigo de Friburgo, Charles Sallès, foi convocado para a artilharia, Antoine anunciou à mãe que se alistaria na mesma unidade, à espera de sua transferência para a aeronáutica.
            No outono de 1918 foi enviado a Besançon para fazer exames médicos, que confirmaram sua boa saúde. Já não havia qualquer obstáculo para sua mobilização imediata, porém ele encarava essa perspectiva com bom humor, ilustrando suas cartas com divertidas caricaturas. À mãe, que devia estar extremamente ansiosa após ter visto tantas mutilações e tanto desespero nos trens sanitários que passavam por Ambérieu, ele escrevia que estava fazendo progressos em alemão.
            A guerra terminou praticamente no dia em que ele teria de enfrentar suas obrigações militares. Embora nenhuma carta relate o que deve ter sentido na época, sua exclusão da Grande Guerra reforçaria mais tarde sua determinação de combater o regime nazista, quando poderia pedir dispensa devido à idade. Saint-Exupéry não conheceu a experiência nem o prestígio de uma geração de jovens que, praticamente com sua idade, tinham posto sua coragem à prova do fogo. A celebração heróica do armistício no pós-guerra, com seus desfiles e monumentos aos mortos patrióticos, apenas acentuou a decepção sentida por ter ficado à margem da maior aventura de sua vida. Como muitos homens de sua idade que por pouco não foram convocados, teve de enfrentar as questões referentes a seu atraso em ir ao front. Como ficaria evidente durante a Segunda Guerra Mundial, Antoine sempre foi possuído pelo medo de ser considerado um desertor.
            Para muitas personalidades de sua geração, e particularmente para um grupo de escritores contemporâneos como Céline, Montherlant, Aragon e Drieu la Rochelle, a futura opção política seria influenciada pela sua participação no front durante a Grande Guerra. De todos os autores que aliavam a ação e a literatura, sem dúvida o exemplo mais contundente foi o de Joseph Kessel, que tinha apenas dois anos mais que Saint-Exupéry mas já analisava as experiências físicas e psicológicas dos combates aéreos antes mesmo que Antoine tivesse terminado seu serviço militar no período de paz.
            Após uma longa preparação para uma carreira militar heróica, o anti-clímax do retorno de Saint-Exupéry a uma realidade decepcionante precipitou a queda de seu interesse já declinante pela marinha. Em junho de 1919, foi reprovado no exame de admissão à escola naval, tirando apenas sete sobre vinte na prova de francês, cujo tema era a volta de um soldado alsaciano a sua cidade, após a assinatura do armistício de novembro de 1918. Mais tarde, Saint- Exupéry esmerou-se em fornecer pistas falsas aos jornalistas ao ser questionado sobre seu lamentável fracasso no exame, embora sua falta de entusiasmo fosse a explicação mais evidente. Após quatro anos de glória prometida, durante os quais o exército francês cobrira-se de honras inigualáveis desde Napoleão, uma carreira militar em tempo de paz era decepcionante.
            Numa carta à irmã Simone, ele confessa: “Não posso me apresentar ao exame da escola naval porque não estou estudando o programa. Enfim, é preciso ser fatalista”. Sua decisão de abandonar a marinha revelou ser sensata a longo prazo. A maioria dos aspirantes de sua época, que se tornaram oficiais da Royale, foram envolvidos num dos mais tristes episódios da Segunda Guerra Mundial, quando o almirante François Darlan, ministro de Philippe Pétain, opôs-se à reunião da marinha francesa à frota britânica. Em 1942, jovens oficiais, alimentados pela ambição de vingar a derrota de Trafalgar, preferiram colocar a pique toda a frota francesa a se unir às forças anglo-saxãs para libertar a França.
            Entre os oficiais da marinha que escaparam da infâmia do colaboracionismo figurava o primo e amigo de Antoine, Honoré d’Estienne d’Orves, que estudou em Paris na mesma época que ele e se tornou um dos primeiros heróis da resistência durante a Segunda Guerra Mundial. Seu itinerário pessoal como gaullista, aristocrata e oficial da marinha parecerá ainda mais nitidamente notável em 1940, quando Saint-Exupéry opta por Pétain.



            Nas primeiras semanas em que esteve interno no Liceu Saint- Louis, Saint-Exupéry fez o que pôde para garantir à sua mãe que permanecia fiel à fé católica, porém suas cartas, nas quais diz ter se emocionado com a Bíblia e os cânticos de Salomão, não parecem sinceras. Embora a linguagem e o estilo da Bíblia tivessem influenciado posteriormente sua Cidadela, a vida na capital incitava-o cada vez mais a contrariar seus princípios, provocando uma crescente inquietação na rede de parentes e amigos que vigiava seu comportamento.
           
O Liceu Saint-Louis na época em que Saint-Exupéry foi seu aluno
Muitos de seus colegas no Liceu, particularmente os externos, mostravam-se hostis à religião e demonstravam profundo desprezo pela atitude moralista dos recrutas católicos. Eram considerados uma influência perniciosa e, pouco depois de sua tentativa de escapada noturna, Antoine foi internado na escola particular Bossuet, perto dos jardins de Luxemburgo. Como muitas das instituições católicas da cidade, ela proporcionava moradia e refeição aos estudantes da província inscritos nos liceus do Estado. Vários colegas de Antoine no Liceu Saint-Louis também estavam hospedados lá, e tinham acompanhamento dos professores nos estudos à noite e nos fins de semana. Após dez horas de curso, os internos de Bossuet abandonavam a atmosfera ruidosa e indisciplinada das classes sobrecarregadas do Saint-Louis para encontrar a calorosa calma de um clube de jovens. O toque principal era dado pelo abade Maurice Sudour, o último padre a desempenhar um papel importante na formação do caráter de Saint-Exupéry.
            Em 1918, Maurice Sudour foi nomeado provedor-adjunto, assumindo futuramente total responsabilidade pela escola. Tranformou-se no herói legendário dos jovens que, pela idade, não tinham podido participar da guerra. Homem grande e distinto, de cerca de 40 anos, ganhara a cruz de guerra nas trincheiras, onde servira como capelão dos exércitos. Seu ato mais corajoso estava longe de ser guerreiro. No dia de Natal de 1917, no campo de batalha de Verdun, cantara Minuit Chrétien para os alemães que estavam à frente, em suas trincheiras. Um capelão alemão respondeu-lhe em sua própria língua.
            Tendo sobrevivido a um massacre tão absurdo, o abade Sudour mostrou-se pródigo em afeição e dedicação aos jovens que ele considerava felizes sobreviventes. Em Bossuet, seu grande apartamento estava diariamente aberto a conversas intermináveis, acompanhadas por uma xícara de chá ou de café, quando não os levava para uma escalada nos Alpes. Havia outras duas razões para sua popularidade: era considerado um professor excessivamente indulgente e possuía o recorde de rapidez da escola para rezar a missa. O serviço em latim fora cronometrado em 16 minutos, quando habitualmente durava pelo menos meia hora.
            Esse padre era do interior, nascido numa família de agricultores de Corrèze, não longe do povoado de Saint-Exupéry-les-Roches, que deve seu nome a Saint-Exuperius, bispo de Toulouse no século V. Filho de granjeiro, Maurice Sudour sentia-se particularmente cômodo com os rapazes provenientes do meio rural, como Antoine — tendo que lutar, de maneira cada vez mais evidente, para conservar uma fé que estava diminuindo.
            Não resta vestígio algum das longas conversas espontâneas que compartilharam na época, nas quais Saint-Exupéry revelou seu empenho em compreender as contradições inerentes a uma fé cristã e a um Deus que levara seu irmão. Mas entre eles existia uma compreensão, tanto espiritual como intelectual, que se transformaria numa amizade duradoura. Em 1931, mais de dez anos após ter abandonado Bossuet, Antoine pediu que Maurice Sudour abençoasse sua união com Consuelo Suncin.

            Em termos bíblicos, o sacerdote era também um instrumento de Deus, pois recomendou Antoine a um emprego de piloto de linha em 1926, ano no qual este publicou seu primeiro conto. No período cinzento após sua formatura, antes de ter encontrado seu rumo e a carreira que o salvaria da mediocridade, Saint-Exupéry freqüentemen- te viu nele um conselheiro espiritual. Sem o abade Sudour, talvez não tivesse emergido com sucesso dos meses de provações que forjaram sua personalidade, depois de caminhar longamente sem rumo tendo conhecido simultaneamente a exaltação e o desânimo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário